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“Tenho boa memória, não padeço de amnésia seletiva ou total”. A frase – dita na intervenção inicial na comissão parlamentar de inquérito às perdas do Novo Banco, em jeito de piada a outros depoentes – parecia a premonição de uma audição longa e esclarecedora com Rafael Mora, ex-administrador da Ongoing, ex-sócio (ex-amigo) de Nuno Vasconcellos.
Apontado durante anos como o estratega da Ongoing, holding de investimentos criada com o património da mãe de Nuno Vasconcellos e da família Rocha dos Santos, Rafael Mora auto-relegou para um papel secundário as suas funções no grupo. Dedicou a maior parte do tempo que lhe deu o partido que o chamou — o PSD — a atacar o antigo sócio e ex-amigo (que não renega) e adiantou alguma informação sobre o circuito que terão feito os ativos da Ongoing para escapar ao credor Novo Banco (e outros) rumo ao Brasil, mas via Panamá.
Foi menos esclarecedor sobre o seu envolvimento e conhecimento das operações financeiras e esquemas de financiamento da Ongoing (via BES/GES). Apesar de o seu nome constar de contratos de financiamento.
Mora diz que assinava, mas não negociava, apenas cumpria ordens (na área financeira). Não se considera “tecnicamente” devedor do Novo Banco, apesar de as empresas que geriu terem contraído dívidas ao BES e de assumir a responsabilidade nesses contratos. Mas garante que quando saiu do grupo não havia incumprimento. As razões pelas quais esses créditos se tornaram “calotes” ultrapassam-no e são posteriores à sua saída, garantiu.
Pelo meio contou histórias paralelas aos temas da comissão de inquérito, desde a guerra com Pinto Balsemão pela Impresa, passando pela compra do Diário Económico conseguida a um preço muito alto e apesar “da pressão política” em favor do Grupo Lena. E recordou como tudo correu mal na fusão entre a PT e a brasileira Oi, as duas empresas das quais Mora foi administrador.
Mora demarca-se da área financeira da Ongoing que era “amigo íntimo” do BES
O arranque da audição ficou marcado pela demarcação extrema face ao ex-amigo e ex-dono da Ongoing, o que se acentuou na inquirição feita por Hugo Carneiro, do PSD, o partido que o chamou a esta comissão de inquérito.
Nunca foi acionista (foi sócio de Vasconcellos na consultora Heiddrick & Struggles e tem um real (cerca de 15 cêntimos) numa empresa no Delaware — dona de ativos no Brasil — da qual já nem se lembrava. Afirmou que o seu cargo era do de COO (administrador com o pelouro operacional e área tecnológica). Nunca teve responsabilidades financeiras na Ongoing e quem tratava dos financiamentos — em particular com BES — era Nuno Vasconcellos, até pelas relações pessoais entre as duas famílias (Rocha dos Santos e Espírito Santo).
Mas fez o acerto de contas em público com o acionista da Ongoing, responsabilizando-o por erros que levaram à queda do grupo. E sem deixar de lado considerações de natureza pessoal e da vida privada.
Quando foi questionado sobre se Vasconcellos mentiu na inquirição interrompida feita a um mês, foi cáustico, lançando uma pergunta: “Disse alguma verdade? Mentiras disse muitas, daquilo que é do meu conhecimento”. E acusou o ex-parceiro de negócios de manobras de evasão de ativos das empresas da Ongoing para o Brasil, que deixaram os credores em Portugal, Novo Banco em destaque, de mãos a abanar. Até uma queixa na Procuradoria Geral da República apresentou contra Vasconcellos por suspeitas de desvio de ativos via uma sociedade com sede no Panamá, a Affera. Rafael Mora fez questão de indicar aos deputados o número deste processo que está no DIAP (Departamento de Investigação e Ação Penal).
Foram as perguntas sobre a já famosa Affera (feitas por Mariana Mortágua) que precipitaram o fim da audição a Vasconcellos, acusado pelos deputados de que não querer colaborar com a comissão de inquérito. Segundo Mora, isso aconteceu porque a deputada “pôs o dedo na ferida”.
Rafael Mora deixou funções na Ongoing no início de 2015 quando já se antecipada que os problemas para o grupo de Nuno Vasconcellos iam ser mais do que muitos. “Sou católico e não tenho nenhuma vocação para o suicídio. E estava num comboio que seguia a 200 quilómetros por hora“. A Portugal Telecom, na qual era acionista e recebia dividendos (já então para pagar dívidas), ia a caminho do desastre após a perda de 900 milhões de euros na Rioforte e uma fusão desastrosa com uma empresa praticamente falida, a brasileira Oi. O BES de Ricardo Salgado que tinha sido aliado e financiador de Vasconcellos — Rafael Mora classificou a Ongoing de “amigo íntimo” do banco em vez de testa de ferro — caiu com estrondo.
A insolvência da Ongoing Strategy Investments, a principal holding do grupo foi declarada em 2016 deixando um rasto de dívidas de mais de mil milhões de euros. Mora ainda continuou administrador da PT, rebatizada Pharol, e da própria Oi, da qual saiu em 2017. Inseparáveis nos tempos de prosperidade da Ongoing agora até um oceano os separa. Rafael Mora voltou a Portugal. Nuno Vasconcellos continua no Brasil a gerir os seus negócios que escaparam ao Novo Banco.
Os documentos na posse da comissão de inquérito indicam uma dívida de 600 milhões do grupo e seu acionista ao Novo Banco (que terá sido reduzida para 530 milhões de euros após execução de algumas garantias). Rafael Mora diz que só consegue identificar 400 milhões de euros de dívida do tempo do BES que identifica assim: 200 milhões de euros empréstimo para comprar ações da Portugal Telecom, 24 milhões para comprar o Diário Económico, 80 milhões para a compra de um grupo brasileiro de media e 100 milhões de euros para o grupo de tecnologia Real Time Corporation.
O primeiro grande erro apontado a Nuno Vasconcellos
Rafael Mora identificou Nuno Vasconcellos como o decisor fundamental da Ongoing, que agia como queria sem muitas vezes acolher os conselhos dados pelo então o seu braço direito na empresa, mas também da família e da própria mãe (que era a capitalista do grupo, a par do dinheiro obtido junto de empréstimos na banca).
E uma dessas decisões que, na opinião de Mora, representa o princípio do fim para a ambição da Ongoing em Portugal foi desafiar o domínio de Francisco Pinto Balsemão na Impresa, da qual a família Rocha dos Santos tinha sido uma acionista histórica e sempre aliada do empresário dono do Expresso.
Rafael Mora diz que avisou Nuno Vasconcellos (tal como a família) a não comprar uma guerra com Balsemão – “Vais ser trucidado”, advertiu – mas o empresário ambicionava ter um grupo de media depois de ter comprado o Diário Económico, um título cuja integração na Impresa até fazia sentido, admitiu Mora. A guerra começou com uma proposta de aumento de capital da Impresa por parte da Ongoing, que reduziria a posição de Balsemão. Vasconcellos foi expulso da administração da Impresa e as duas empresas foram para tribunal.
Hugo Carneiro (PSD) sugeriu, e Mora disse que concorda. No seu entender, houve influência de Ricardo Salgado nesta estratégia de Vasconcelos. “É a minha teoria”, que sustenta na constatação de que o BES era um alvo de estimação do Expresso (com notícias negativas), o que deixou de acontecer quando a Ongoing passou a ser o inimigo número de Balsemão, que até fez as pazes com Salgado.
As contratações exóticas e os “amigos de infância” que seriam da Maçonaria
A cereja em cima do bolo, acrescenta, foi a contratação de Silva Carvalho, o ex-espião do SIED para liderar a Ongoing Shared Services, cujo nome compara à primeira designação dada à CIA [OSS – Office of Strategic Services é a sigla do serviço de espionagem norte-americano durante a II Grande Guerra, e que deu lugar à CIA]. Mora foi contra esta contratação, mas Vasconcellos terá argumentado que era por não querer perder protagonismo para outros quadros. Foram muitas as contratações “exóticas” da Ongoing nesses anos, afirmou quando questionado por João Paulo Correia, do PS, sobre o convite ao deputado do PSD. Mas depois do desacordo sobre Silva Carvalho, Rafael Mora diz que deixou de questionar estas opções.
O ano de 2014, depois de algumas crises pessoais, acabou por assistir à rutura entre os dois homens fortes da Ongoing, numa relação que já estava degradada. Com a queda do BES, era necessária uma estratégia para reduzir a dívida que o presidente do grupo, diz Mora recusou porque tinha um fundo (cavaleiro branco) para investir. Por trás da separação definitiva entre Mora/Vasconcellos estará um divórcio, o do dono da Ongoing. A nova mulher não compreendia porque Vasconcellos não era presidente também da holding para a tecnologia (liderada por Mora e na versão de Mora). Terá sido o ponto final que levou à sua saída em janeiro de 2015.
Os processos kafkianos e as guerras jurídicas
Apesar da saída formal, o nome de Mora ainda consta de algumas empresas ligadas a Vasconcellos. É o caso de uma sociedade em Malta e da tal empresa do Delaware (estado americano que é visto como uma offshore), a Web Spectator, onde tem um real. É mais um nome societário a juntar a uma teia de participações com nomes em inglês e siglas como a HIS Brasil, HIS Portugal, IBT, Real Time Corporation que, segundo Mora, foi considerada uma das startups mais promissoras num jornal internacional.
Que ativos tinham estas empresas tecnológicas e e quanto valiam, não ficou claro. O que foi dito com todas as letras foi a acusação de que Nuno Vasconcellos desviou esses ativos para o Brasil, através de expedientes que foram várias vezes descritos como kafkianos.
Uma das “revelações” da audição é a investigação que a PJ estará a fazer de uma investigação após a queixa apresentada em 2018 por Rafael Mora e pelo seu sócio André Parente contra Vasconcellos após se aperceber que vários ativos estariam a ser transferidos. Entre estes estava a Real Time Corporation que apesar de estar sediada no Brasil, o seu principal mercado, tinha a dívida financiada pelo BES em Portugal. Mora revela que avisou os gestores das empresas para este risco — e também mandou um whatsApp para António Ramalho, mas o Novo Banco demorou um ano a reagir. Afirmou ainda que os gestores que recusaram a aprovar a transação foram despedidos. Na versão dada por Rafael Mora a RealTime tinha potencial, mas foi para “buraco” ou melhor, “foi para o Panamá”.
As guerras jurídicas entre os dois antigos sócios e ex-BF (sigla inglesa para melhores amigos) estenderam aos Estados Unidos e à tal Web Spectator, empresa do Delaware onde Mora permanece como acionista mas que é controlada pela família Rocha dos Santos, cujo software terá sido alvo de pirataria, dando origem a um pedido de indemnização de milhões de dólares.