Foi a audição mais curta, mas será uma das que mais vão marcar a comissão de inquérito às perdas do Novo Banco. Mas não porque tenha sido esclarecedora. Antes pelo contrário. E foi por isso que, primeiro a deputada que estava a fazer as perguntas e depois o presidente Fernando Negrão (depois de receber o sinal verde de todos os partidos presentes), decidiram cortar a ligação com o Brasil. Apesar da grande expetativa que rodeava a inquirição a Nuno Vasconcellos.

Novo Banco. Nuno Vasconcellos faz perder a paciência aos deputados, que páram a audição

Antes de “desligar”, o antigo dono da Ongoing (um dos maiores devedores do Novo Banco que não pagou), Nuno Vasconcellos, falou muito, mas respondeu pouco. Agradeceu a oportunidade para esclarecer rumores sobre si e sobre a sua família e repor a verdade e atirou um conjunto de informações, valores e até acusações (ao BCP) que os deputados não têm como verificar. E evitou logo a primeira pergunta feita de forma insistente por Mariana Mortágua.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Quando vai pagar a dívida?

Quando é que vai pagar os 600 milhões que deve ao Novo Banco (a dívida total à banca portuguesa passa dos 1.000 milhões)?

O antigo dono da Ongoing contornou o Novo Banco (que é tema da comissão de inquérito) e concentra-se a explicar porque é que não tem dívida ao BCP, que foi o maior credor bancário do grupo. Indica que essa dívida, que chegou aos 400 milhões de euros, foi comprada e regularizada. Em quatro anos foram pagos 120 a 130 milhões e os 290 milhões de euros foram “comprados” por 80 milhões de euros, o valor dos ativos que terá entregue ao banco e que, diz, foram aceites.

A deputada do Bloco de Esquerda estranha: “Mas é acusado de insolvência culposa pelo BCP…”

O empresário diz não ter conhecimento disso, mas acrescenta que, a ser assim, “o BCP é um banco mentiroso e o presidente também (não diz a quem se está a referir) ”. Nuno Vasconcellos explica então que deu um aval pessoal de 10 milhões de euros para cobrir juros. E conta que chegou a ir ao BCP com o presidente do Banco Pactual do Brasil – que apresenta como sendo um dos maiores da América Latina – para fazer uma oferta de 140 milhões pela dívida.

Nuno Vasconcellos diz que mudou a sua agenda para estar num sítio com rede (São Paulo) para esta audição

O banco português terá recusado. Refere que mais tarde foi feito um acordo — os tais 80 milhões de euros de ativos que foram entregues ao BCP (e que nunca identifica). Esse acordo permitiria limpar toda a dívida, segundo Nuno Vasconcellos. “Mas o BCP acusa-me de não pagar o aval pessoal, mas disse que ia perdoar esse aval. Isso não foi cumprido. Essa historia está muito mal contada, como muitas historias sobre a Ongoing e a minha família”.

Mariana Mortágua insiste com a dívida ao Novo Banco.

Nuno Vasconcellos diz que essa pergunta deve ser feita não a si (o principal acionista e fundador da Ongoing), mas à Ongoing, a empresa que foi declarada insolvente em 2016. Conta que a tal dívida (que admite ser de 520 milhões de euros) foi provisionada ainda no tempo do BES, em 2014, quando o banco estava já à beira da queda, e por insistência do Banco de Portugal. Nessa altura, Vasconcellos vendeu as ações que tinha na Impresa e na Zon (atual Nos) por 70 milhões de euros, que ficaram num depósito como colateral do que faltava provisionar (100 milhões de euros).

Mariana Mortágua interrompe: “Sabe o que quer dizer provisionar?”.

O empresário atira “diga-me lá a senhora deputada o que entende por isso”.

“É quando o banco dá esse valor como perdido”, responde Mortágua.

Nuno Vasconcellos insiste que os ativos existiam e cita um relatório de auditoria no final de 2013 da Ongoing que tem uma avaliação de mais de mil milhões em ativos, terrenos, ações, prédios, terrenos e armazéns. Mas não esclarece que o ativo mais valioso (pela cotação das ações e dividendos recebidos que eram a principal receita do grupo) era a participação de 10% na Portugal Telecom cuja derrocada provocada pelo investimento no GES arrastou consigo a Ongoing, como, aliás, o Observador explicou em 2015.

Ongoing. Tudo a PT deu e tudo a PT levou

A Ongoing terá sido o grande devedor que mais perdas gerou para o Novo Banco, mas a maioria do prejuízo estava já reconhecido quando o banco foi vendido em 2017. Ainda assim, o devedor terá gerado perdas de 80 milhões que foram ao Fundo de Resolução no quadro do acordo de capital contingente. O Novo Banco ainda tentou incluir o crédito num dos pacotes que vendeu a fundos, mas o ativo foi retirado depois do “chumbo” da comissão de acompanhamento. Miguel Athayde Marques salientou a natureza imaterial dos ativos, como marcas (Diário Económico, por exemplo) e sites.

O caso da Ongoing “deixou-nos desconfortáveis”, diz ex-membro da comissão de acompanhamento do Novo Banco

Para além das dívidas das empresas, sobretudo da holding Ongoing Strategy, o Novo Banco era também contraparte numa operação de financiamento associada a Crédit Default Swaps contratada com o Crédit Suisse que foi acionada quando as ações da Portugal Telecom que serviam de colateral perderam grande parte do seu valor a partir de 2014 e 2015.

A exposição do banco ao grupo passou por operações criativas que demoraram a ser identificadas. Eduardo Stock da Cunha explicou que existiam 200 milhões de euros de liquidez do Novo Banco aplicados num produto emitido pela BES Vida. Esse produto tinha na sua base fundos que aplicaram em outros fundos que tinham títulos emitidos em fundos no Luxemburgo que, por sua vez, tinham na base um crédito à Ongoing.

Executar grandes devedores da banca? “Somos um país de brandos costumes”, diz Eduardo Stock da Cunha, ex-presidente do Novo Banco

Não tem dívidas? A dívida é da Ongoing (empresa que faliu em 2016)

Sobre o património do grupo, Mariana Mortágua contrapõe: a empresa tinha ativos de 1,3 mil milhões e uma dívida de mil milhões de euros. “Nunca teve nada que não fosse comprado com dinheiro emprestado por Ricardo Salgado” (e pelo BCP). E regressa ao Novo Banco. “Em 2016, a Ongoing devia mais de 500 milhões ao Novo Banco e não tinha garantias”.

O empresário contesta a conclusão: “O grupo não é da minha família. A empresa insolveu em 2016.”

“Vai dizer que não tem dívidas?”, pergunta Mariana Mortágua.

“Quem tem dívidas é a Ongoing e nós demos garantias e amortizámos dividas, acedemos a todas as solicitações de BCP e BES”.

Em outro ponto da audição, Nuno Vasconcellos elenca um conjunto de ativos imobiliários que entregou ao BES (não ao Novo Banco) para reforçar as garantias. Alguns desses bens, sublinha, eram seus e da família. Terrenos da Rua da Artilharia 1 (em Lisboa), prédios no Estoril, casas, empreendimentos em Alcácer do Sal, um armazém em Valejas (Oeiras), que diz estava avaliado em sete a oito milhões de euros, propriedades na Quinta do Peru, uma quinta “lindíssima” no Norte que era um dos ativos do grupo Ongoing.

Afirmou ainda ter dado um aval pessoal ao BES um mês antes de o banco cair, até a pedido do Banco de Portugal. A propósito desse aval, disse ter informado o banco que não tinha ativos em nome pessoal, mas também referiu ter entregado antes ativos imobiliários em seu nome ao BES, como uma parte de um terreno na zona da Expo e na antiga Fundição de Oeiras.

“Todos os ativos em meu nome ficaram no BES”. Essa história do BCP está muito mal contada, e eu tenho provas. Se calhar o ideal era que o Ministério Público abrisse uma investigação para saber de quem é a culpa. Eu gostaria muito. Tenho muita coisa para contar”, salienta Nuno Vasconcellos.

Nuno Vasconcellos recusa ser tratado como arguido, aceitou esclarecer a comissão de inquérito como convidado

“A coisa que eu mais queria era que o Ministério Público o investigasse”, solta Mariana Mortágua, antes de ser interrompida novamente por Nuno Vasconcellos. A deputada do Bloco de Esquerda não lho permite: “Nós já temos a dificuldade de estar a ser ouvido do outro lado, mas se não se importa quem conduz a inquirição sou eu“.

Vasconcellos contrapõe que a deputada do BE pode “conduzir a Inquisição que quiser”. Mas insiste: “Não vim aqui como arguido”. O que aproveita, perante a insistência de Mortágua, é para – no seu entender – “desfazer o mito urbano” de que teria apenas uma mota de água em seu nome quando foi alvo de uma execução bancária dos seus bens em Portugal. “Não tenho uma mota de água”.

Mariana Mortágua corrige-o: “Era uma motoquatro (uma mota todo-o-terreno)”. E contrapõe que as garantias na posse do Novo Banco são “empresas vazias” — que foram declaradas insolventes, que não tinham operação e que os imóveis associados valem apenas seis milhões de euros.

“Aguardo a sua resposta, como é que a sua dívida vai ser paga e quando?”

Do outro lado do Atlântico o tom de Nuno Vasconcellos sobe: “Quer que responda ao que quer ouvir, mas não vai ter essa sorte. Mas vou falar-lhe a verdade. Só por isso estou aqui”. E pede para aceitarem ouvir a sua parte.

Nesta fase, Fernando Negrão interrompe pela primeira vez para pedir outro tom e respostas mais claras. Vasconcellos riposta: “O meu tom tem muita consideração por esta CPI. A deputada é que não está com o tom certo e faz considerações que não deve. Não posso ser desconsiderado. Não estou aqui para ser desrespeitado. O respeito tem duas vias”.

As empresas fora do universo Ongoing e as não respostas que fizeram entornar o copo

Com o ambiente cada vez mais crispado, Mariana Mortágua faz mais uma tentativa para extrair informação a Nuno Vasconcellos, perguntando-lhe sobre a Real Time Corporation. “Diz aqui num documento do Novo Banco que as únicas garantias reais estão concentradas numa empresa brasileira chamada Real Time Corporation. Confirma?”, perguntou.

“É totalmente falso, a Ongoing tinha uma participação nessa holding, que tem empresas de tecnologia e internet. E que até ia fazer um IPO (oferta em bolsa) no Brasil”, respondeu o empresário, antes de mais um longo período em que o som do seu microfone não estava ligado. “Todas as garantias reais estão contratualizadas com o Novo Banco. Não tem garantias na Real Time, nem nunca teve”, acrescentou.

Mariana Mortágua diz que a Real Time tem uma dívida de 47 milhões de euros junto do Novo Banco. “Não, na dívida do Novo banco não consta nada disso”, atira Vasconcellos.

A audição aqueceu novamente quando Mariana Mortágua perguntou pela empresa panamiana Affera, que subscreveu um aumento de capital da empresa brasileira HIS Tecnologia e Sistemas. Segundo a deputada, um artifício para escapar ao controlo dos credores da Ongoing, entre eles o Novo Banco. Em 2017, diz a deputada do Bloco, a administração desta empresa era composta por Rafael Mora, Guilherme Dray, Nuno Dias e Nuno Vasconcellos. “Não me recordo, em altura nenhuma, de ser administrador de nenhuma empresa chamada Affera”, remata Nuno Vasconcellos. Mariana Mortágua estranha que o empresário não se lembre, e que também não saiba quem são os acionistas.

A deputada do Bloco de Esquerda (BE) Mariana Mortágua intervém no debate que marca o início da discussão na Especialidade do Orçamento do Estado para 2021, na Assembleia da República, em Lisboa, 20 de novembro de 2020. ANTÓNIO COTRIM/LUSA

Mariana Mortágua foi a primeira e última deputada a inquirir o fundador da Ongoing. Desistiu para não dar palco ao fundador da Ongoing

“Eu sei quem são os acionistas. Já lhe falei aqui deles, até lhe falei que um é padrinho do meu filho. Onde é que a senhora deputada quer chegar?”, pergunta Nuno Vasconcellos, visivelmente agastado. ”Quero chegar à lista completa dos acionistas da Affera”. “Isso tem de perguntar à Affera ou às entidades onde a Affera está registada”, diz o empresário.

Sobre o padrinho do seu filho – que não identificou – Vasconcellos diz que “foi a pessoa que mais me ajudou”. Isto porque, na altura, “o Novo Banco não quis saber de mais nada, nem quis emprestar mais dinheiro”, salienta.

O grupo “que não deve” ao Novo Banco e os bancos cheios de dívida pública

Mariana Mortágua insiste que Nuno Vasconcellos estava a ser ouvido porque tem uma dívida de 600 milhões de euros ao Novo Banco. A resposta do empresário foi esta: “A senhora deputada insiste… O meu grupo não deve 600 milhões de euros ao Novo Banco. Temos de aprender a fazer contas. Tudo o que o BES e o Novo Banco me pediram eu dei”.

Mas não se ficou por aqui, iniciando uma longa declaração sobre a culpa dos bancos e dos governos, e não dos empresários. “Agora é fácil, cinco anos depois, sempre que os bancos precisam de mais dinheiro, lá vem a lenga-lenga que os empresários não pagaram. (…) Os bancos estavam cheios de dívida pública, e a culpa é dos governos, não dos empresários”, disse Nuno Vasconcellos. “Gostava muito de ajudar. E se existem culpados, que se encontrem esses culpados e que sejam castigados”, afirmou ainda.

Após essas declarações de Nuno Vasconcellos, Mariana Mortágua perdeu a paciência. “O doutor Nuno Vasconcellos ajudou Ricardo Salgado a rebentar com o BES e parte da economia portuguesa…”

“Isso é uma acusação, senhora deputada!”

“É uma acusação e eu quero acabá-la! Deixou um calote no Novo Banco de 600 milhões de euros e tem o desplante de vir aqui falar, do alto da sua moral, sobre a crise e sobre os governos! Já percebi que não está aqui nem para nos ajudar nem para esclarecer nada. Por mim acabei a intervenção e não pretendo fazer mais nenhuma pergunta, nem dar-lhe qualquer tempo de antena ou palco para vir aqui defender a versão que nos apresentou”.

Vasconcellos subiu ainda mais o tom. “Senhora deputada, desculpe lá, mas não tem o direito de falar num tom acusatório comigo, estou aqui como convidado e não aceito essas acusações. A senhora deputada prove aquilo que está a falar!”

Pouco depois, Fernando Negrão haveria de terminar a audição.