Reportagem na província de Ninawa, Iraque
Ao longo da estrada de pedras e terra batida, da mesma cor desértica que caracteriza o Médio Oriente rural, a vida normal desenrola-se num cenário de guerra desolador. Num antigo cinema, cuja fachada ainda está cravejada de buracos de balas de metralhadora, um cartaz promete a reabertura e o regresso aos filmes orientais em breve. Num apertado café recheado de televisores, jovens adolescentes entretêm-se com videojogos futebolísticos. Ao lado, numa esplanada de romantismo improvisado, onde não há duas cadeiras iguais, casais de namorados conversam e bebem cafés. No topo da rua, num grande parque infantil, dezenas de crianças disputam a sua vez de utilizar um velho escorrega, sob o olhar atento dos pais. São nove da noite em Qaraqosh, a maior cidade cristã do Iraque, a 15 quilómetros de Mossul, e só agora os termómetros descem para temperaturas suportáveis, permitindo que quem ali vive possa, finalmente, sair à rua.
[Veja aqui a reportagem em vídeo na planície de Nínive]
Aquela avenida anónima é a artéria mais vibrante da cidade. Os prédios devolutos pelos bombardeamentos que, no ano passado, ajudaram a libertar Qaraqosh das mãos do Estado Islâmico servem agora de suporte a luzes de néon que publicitam todo o tipo de marcas ocidentais. Num caótico vaivém de dezenas de peões, carros e motas aparentemente sem rumo, a rua termina numa igreja dedicada aos santos orientais Behnam e Sarah, cujo estado, desde a libertação da cidade, em outubro do ano passado, retrata bem o sentimento dos cristãos iraquianos. A torre sineira, antes imponente símbolo do centro da cidade, está agora caída sobre o gradeamento que ladeia o templo, dobrada sobre si mesma, com a cruz que a encimava a tocar o chão. Um morteiro atingiu-a, durante o combate entre os rebeldes islâmicos e a coligação internacional liderada pelos Estados Unidos, e a torre acabou por cair parcialmente. O padre George Jahola, sacerdote da Igreja Católica Síria, responsável por aquela paróquia, já tem planos para a reconstruir — como já está a reconstruir a comunidade.
No extremo oposto da avenida, ergue-se o centro pastoral Mar Bolos (aramaico para São Paulo). Comparado com o resto da cidade, aquele é um edifício imponente, visivelmente um dos trabalhos de reconstrução mais recentes. Um grande crucifixo encima as cinco arcadas que convidam a entrar. O padre Georges Jahola, responsável pela reconstrução de uma cidade que, durante três anos, foi um dos centros de operações mais importantes do Estado Islâmico no Iraque, explica que, no interior daquele edifício, está o futuro do Cristianismo na região. Entramos num grande pátio central em tons de azul claro, para onde estão voltadas todas as portas dos três pisos que compõem o centro. Ao cimo, numa das paredes, está uma imagem de São Paulo completamente desfigurada, mantida assim para lembrar, a quem por ali passa, os horrores que se viveram naquela mesma casa até ao ano passado.
O sacerdote leva-nos a uma das salas, onde decorre uma aula de música para cerca de duas dezenas de crianças locais, que cumprimentam, educadamente, os visitantes após a professora os autorizar. Ao lado, outra sala com outra turma. E outra, e outra, por todo aquele primeiro piso. No segundo piso está o grande auditório, onde, naquela manhã, um grupo de jovens monitores vestidos com t-shirts verdes e laranja anima o dia de quase 300 crianças. No palco, um deles toca e canta uma música, enquanto as crianças acompanham em alta voz e com gestos, seguindo o exemplo dos monitores que estão com cada grupo. Ao todo, naquele centro pastoral estão perto de mil crianças, filhas e filhos das famílias de Qaraqosh que já conseguiram regressar a casa depois da libertação da cidade. Sem escolas e outros serviços públicos, são as igrejas cristãs (ortodoxas ou católicas) que asseguram os mínimos, incluindo a escolaridade no período letivo e o acompanhamento das crianças no período das férias.
O centro de São Paulo é o pulmão daquela comunidade profundamente cristã e o orgulho do padre Georges, que não se cansa de elogiar a fé dos habitantes de Qaraqosh — ou Baghdida, como se diz em aramaico, a língua originalmente falada por Jesus Cristo e ainda usada pelas comunidades cristãs assírias no Médio Oriente. O sacerdote ainda se lembra bem daquele dia, em outubro de 2017, em que voltou à cidade. Foi dos primeiros. Durante três anos, toda a região esteve sob controlo do Estado Islâmico, que, no verão de 2014 estabeleceu o califado a partir de Mossul e se expandiu para toda a Planície de Nínive. Quando voltou, não encontrou uma única casa inteira. Muitas foram incendiadas pelos terroristas, outras foram destruídas pelos bombardeamentos. Também as igrejas tinham sido todas danificadas, por dentro e por fora. “E uma das primeiras coisas que me pediram, ainda antes de pensarmos na reconstrução das casas, foi que celebrasse uma missa na igreja”, lembra o padre.
Pegou num altar improvisado e em cadeiras de plástico, que dispôs no interior da igreja da Imaculada, e ali celebrou uma missa, rodeado de destruição. As paredes enegrecidas pelo fumo lembravam a grande fogueira que ali foi ateada pelos radicais islâmicos poucos dias antes de serem forçados a fugir. Nos pilares ainda se viam os grafitti com o símbolo do Estado Islâmico e as informações que davam conta de que a igreja foi usada durante três anos como enfermaria para os militantes do grupo. Superado o flagelo, o padre Georges ainda está a equacionar a possibilidade de deixar intactas algumas das marcas da destruição, como símbolo e memória.
Não nos deixemos, porém, iludir pela expressão de alegria das centenas de crianças que enchem o centro: elas são a exceção. Ser cristão no Iraque, hoje, está longe de ser assim, uma experiência simplesmente feliz. A par da minoria étnica dos yazidis, os cristãos do Médio Oriente têm sido vítimas de uma perseguição que se agravou em 2003 com a invasão do Iraque pelos Estados Unidos e a queda de Saddam Hussein. Basta olhar para os números: antes de 2003, havia cerca de 1,5 milhões de cristãos no país, cuja população é de 37 milhões. Hoje, as estimativas mais otimistas apontam para 300 mil, ou seja, cerca de 0,8% da população, face a 99% de muçulmanos. E mesmo os mais otimistas temem que a perseguição crescente, da qual o Estado Islâmico foi apenas o capítulo mais recente, possa levar à extinção do Cristianismo naquela região do mundo.
Domínio do Daesh: 3 anos de terror
Na mesma cidade de Qaraqosh, perto do centro pastoral onde as crianças brincam quase sem se aperceberam da crise humanitária em que vivem, as marcas da realidade negra que durou até 2017 não perduram apenas nos edifícios. O padre Georges Jahola fala-nos de Amal, uma mulher natural da cidade que, durante três anos, foi mantida como escrava pelo Estado Islâmico e que sobreviveu à tormenta. Hoje, não sai de casa, com medo de se cruzar com algum muçulmano (naquela região, ninguém sabe quem foi ou não membro do Estado Islâmico). O sacerdote promete levar-nos a conversar com Amal — o nome é, por motivos óbvios, fictício. Mas com uma condição: devido à sensibilidade do assunto e às condições psicológicas em que a mulher vive, pede que apenas as mulheres que integram o grupo de jornalistas se encontrem com ela, trazendo depois o registo da conversa. Com homens presentes, além do padre — o único em quem confia –, Amal não estaria à vontade para contar a sua história.
O relato, esse, é de desespero. No dia 6 de agosto de 2014, quando o Estado Islâmico tomou o controlo de Qaraqosh, Amal e o marido não conseguiram fugir a tempo, como a maioria dos habitantes da cidade. Optaram, então, por ficar escondidos dentro de casa. “O Estado Islâmico controlava todas as saídas da cidade, tivemos medo que nos vissem e nos matassem”, conta a mulher. Vinte dias depois, porém, acabaram os mantimentos que tinham em casa. “Nessa altura, tentámos falar com outras pessoas que tinham ficado aqui e disseram-nos: ‘Venham à mesquita e nós levamo-vos às vossas famílias’. O imã da mesquita disse-nos que nos podia levar à nossa família, mas nós não quisemos, dissemos que o meu irmão nos ia ajudar. O meu marido disse que, como o imã era muçulmano, ia entregar-nos ao Estado Islâmico”, recorda.
Optaram por não ir para a mesquita, mas acabaram por ser apanhados. Na altura, os militantes do Estado Islâmico começaram a fazer rondas por todas as casas e a retirar as pessoas que tinham ficado. Esses grupos começaram, depois, a ser divididos, homens para um lado e mulheres para o outro. “Pegaram em mim e noutras mulheres e levaram-nos para outro sítio”, lembra. Amal conhecia algumas caras entre os militantes: eram vizinhos e antigos conhecidos seus, muçulmanos, que se tinham juntado, por falta de opções, ao grupo radical. O relato é semelhante ao de muitos cristãos e yazidis daquela região, que garantem que, por causa dessa experiência, nunca mais vão conseguir confiar num muçulmano novamente.
De Qaraqosh, Amal foi levada para Mossul, a principal cidade iraquiana do Daesh, proclamada capital do califado. Ali, foi entregue à família de um alto oficial do grupo terrorista “como troféu de batalha”. Quando chegou, explicaram-lhe o que tinha acontecido. O grupo terrorista tinha proposto aos bispos cristãos um acordo: os cristãos pagavam a jyzia (imposto pago por outras religiões aos muçulmanos, de acordo com a lei islâmica) e eram deixados em paz pelo Estado Islâmico. Como os bispos recusaram, os cristãos foram feitos prisioneiros. Durante três anos, Amal foi empregada da família de oito elementos. Cozinhava, lavava a roupa e cuidava das crianças. Não foi agredida, nem violada, ao contrário de muitas mulheres, mas nem sempre foi bem tratada. “Dependia de como estavam”, afirma.
Nunca saía à rua sozinha, apenas na companhia da família, para não ter possibilidade de fugir. Sempre que contactava com alguém de fora, tinha ordens para dizer que era natural de Bagdade e que tinha vindo visitar familiares. Nos primeiros dias, ainda conseguiu contactar o irmão por telefone — tinha levado o número dele escondido no cabelo, uma vez que os muçulmanos não tocam no cabelo de uma mulher — e rezar orações cristãs. Mas depois foi proibida: “Perguntavam-me para que é que queria o rosário”.
“Quando começou a batalha em Mossul, tive medo por eles serem do Estado Islâmico e pedi para me venderem a outra família“, recorda. O homem acedeu ao pedido e vendeu-a a uma família islâmica nos arredores de Mossul, com quem ficou até agosto do ano passado, altura em que a região foi reconquistada pelo exército iraquiano. Hoje, vive profundamente marcada pelos anos de escravidão. Desde que foi separada do marido, em Qaraqosh, nunca mais ouviu falar dele. Do irmão também não. Restou ela e a mãe, muito idosa, as duas numa velha casa de Qaraqosh, recuperada com a ajuda da Igreja, único auxílio da família.
O caso de Amal não é único. De acordo com notícias recentes, só na cidade de Qaraqosh foram raptadas pelo Estado Islâmico 45 mulheres cristãs, das quais apenas sete já regressaram. Em todo o país, o número de mulheres e crianças raptadas ascende aos vários milhares, entre cristãs e yazidis, apesar de não haver estatísticas oficiais coerentes. Muitas delas tiveram um destino ainda pior que o de Amal e acabaram como escravas sexuais, violadas diariamente por militantes do auto-proclamado Estado Islâmico. Muitas morreram, outras continuam desaparecidas e apenas uma pequena parte foi localizada e regressou às suas famílias. Tudo por não serem muçulmanas. Viram as suas casas marcadas com o ﻥ (inicial da palavra ‘nazareno’ em árabe, usada para identificar os cristãos), perderam a família e a confiança que ainda lhes restava nos muçulmanos.
“O objetivo era eliminar o Cristianismo”
Um ano depois da saída do Daesh, muitos cristãos já conseguiram regressar às suas vilas e aldeias. Ao verem os estragos causados por três anos de ocupação pelos extremistas, não têm dúvidas de que a religião cristã era um dos principais alvos. “O objetivo do Estado Islâmico, ao vir a estes lugares cristãos, era eliminar o Cristianismo”, diz ao Observador o padre Salar Boudagh, sacerdote da Igreja Católica Caldeia na pequena vila de Teleskuf, a norte de Mossul. A sua igreja não tinha sido apenas queimada e bombardeada. Os crucifixos tinham sido partidos, as estátuas dos santos decapitadas e os altares partidos. Em Karemles, outra das vilas cristãs da Planície de Nínive, o cenário era o mesmo. “Destruíram a igreja, destruíram as imagens, tentaram queimar a sacristia”, comenta o padre Tahbet Yousif.
A perseguição aos cristãos no Iraque intensificou-se nos últimos quinze anos, depois da invasão do país pelos EUA e da queda de Saddam Hussein, mas a verdade é que a convivência entre cristãos e muçulmanos na região nunca foi pacífica. Depois do massacre dos cristãos arménios pelo Império Otomano, no início do século XX (que vitimou muitos cristãos daquela região, incluindo dos territórios onde hoje se situa o Iraque e a Síria), o Iraque viveu um período de indefinição quanto aos assuntos religiosos, que culminaria com a subida ao poder de Saddam Hussein em 1979, instaurando um regime ditatorial liderado pelo Partido Baath.
Saddam, um muçulmano sunita, governou um país de maioria xiita com um governo secular — a ideologia Baathista não era confessional, apesar de reconhecer a importância e o papel das religiões na sociedade. Ainda assim, o regime de Saddam acabou por oprimir a maioria xiita para favorecer a minoria sunita, mas manteve uma certa proteção sobre as minorias étnicas e religiosas, nomeadamente sobre os cristãos e os yazidis: desde que não se insurgissem contra o regime, gozavam de total liberdade de culto. Esta realidade alterou-se significativamente em 2003, com a invasão pelos Estados Unidos, que levou ao agudizar de um conflito inter-religioso que se prolonga até hoje. Os cristãos sofreram particularmente com a invasão — foram associados aos invasores norte-americanos e acabaram por tornar-se num dos principais alvos de perseguição das milícias xiitas e sunitas que se envolveram em confrontos mortíferos, nos anos que se seguiram.
“A partir de 2003, tornou-se cada vez mais difícil e, a partir de 2014, tornou-se impossível viver em áreas como esta”, resume ao Observador o arquiteto Zaid Alniser, um cristão ortodoxo natural de Badgade que, em 2006, teve de fugir definitivamente da sua cidade natal para se fixar em Erbil, capital da região do Curdistão iraquiano. O sentimento geral entre os cristãos no Iraque é de tristeza: mais do que o medo da perseguição iminente, vive-se uma tristeza profunda perante o cenário do desaparecimento da religião em terras onde o Cristianismo tem as suas raízes. “As raízes do Cristianismo são aqui, os primeiros cristãos eram daqui. Isto se falarmos do Cristianismo… E se falarmos das nacionalidades, os siríacos estão aqui há sete mil anos”, comenta o arquiteto. “Se o Cristianismo se perde aqui, perde a sua raiz. Estamos na Mesopotâmia há séculos”, acrescenta Iban de la Sota, um voluntário espanhol de 23 anos que colabora com a fundação Ajuda à Igreja que Sofre na reconstrução das povoações cristãs destruídas pelo Estado Islâmico.
Com efeito, o Iraque é o palco de muitos episódios bíblicos que moldaram a tradição judaico-cristã. De acordo com a tradição, o famoso jardim do Éden, descrito no Génesis como o lugar onde habitaram os primeiros humanos, Adão e Eva, seria um local situado na antiga Mesopotâmia, na região onde hoje é o Iraque. Também a cidade de Ur — que, segundo as escrituras, Abraão abandonou ao ouvir um apelo divino para que se estabelecesse na Terra Prometida, dando início ao povo de Deus e às religiões abraâmicas — se situa no Iraque. Já a cidade de Nínive, referida diversas vezes na Bíblia e conhecida por ser o local onde o profeta Jonas pregou, corresponde à atual cidade de Mossul, capital da região de Ninawa, que ainda conserva o nome da cidade histórica. Em Alqosh, poucos quilómetros a norte de Mossul, está, ainda hoje, o túmulo do profeta Naum, que retratou nos seus escritos, ainda hoje estudados por cristãos e judeus, a queda de Nínive, capital do império assírio, em 612 a.C.
O túmulo de Naum, que durante décadas foi destino de peregrinação para os judeus, encontra-se hoje quase abandonado. Somos levados lá pelo padre Aram Romel, pároco caldeu de Alqosh, que guarda a chave do pequeno templo, quase destruído, e cujas paredes estão repletas de inscrições em hebraico antigo. Ao centro, o túmulo do profeta está coberto por um grande oleado e inacessível por um gradeamento de madeira. Alguns andaimes indiciam que o local está a ser objeto de obras de restauro, mas não há fim à vista para a recuperação. A vila, que ficou a escassos quilómetros do território dominado pelo Estado Islâmico sem nunca ter sido ocupada, foi um dos principais centros de acolhimento de quem fugiu dos terroristas e isso obrigou a uma mudança de prioridades. As autoridades judaicas, que durante anos foram responsáveis pela conservação do local, abandonaram o templo ao cuidado do padre cristão, que entretanto já conseguiu contratar uma empresa para estabilizar as paredes e evitar que o túmulo se transforme, definitivamente, em ruínas.
Logo no século I, a fé cristã chegou ao Iraque ainda pelas mãos dos primeiros discípulos de Jesus Cristo, nomeadamente através dos apóstolos São Tomé e São Tadeu, que se dedicaram a espalhar a mensagem cristã a partir de Jerusalém em direção ao Oriente. O Cristianismo rapidamente se enraizou na região, onde habitava o povo assírio, e ali se estabeleceu a primeira igreja oriental. Ainda hoje, os assírios — que são etnicamente distintos dos árabes, dos curdos e dos turcos — são o principal povo cristão no Iraque e na Síria, apesar de estarem divididos em várias denominações cristãs. Uns seguem o rito romano e associam-se ao Vaticano, como a Igreja Católica Caldeia ou a Igreja Católica Síria, e outros seguem o rito ortodoxo, como a Igreja Ortodoxa Síria.
O aparecimento do Islão, no século VII, viria a inverter a situação religiosa na região, mas o Iraque ainda guarda alguns monumentos importantes da era pré-islamização. Um dos exemplares mais notáveis é o mosteiro de São Hormisdas, situado nas montanhas que ficam poucos quilómetros a norte de Alqosh. Fundado no ano de 640, em pleno processo de expansão do Islão àquela região, o mosteiro de São Hormisdas foi, durante séculos, um dos templos mais importantes para a Igreja Oriental. Hoje, é um lugar histórico para a Igreja Católica Caldeia, mas está abandonado desde o século passado. Para o padre Aram Romel, que tutela o mosteiro, o país corre neste momento um grave risco de perder a sua história ao ver o património cristão desaparecer.
“Estes sítios não são estudados de forma profissional, não há livros sobre isto… E agora estamos em guerra. As pessoas não têm casas, não podemos dar-nos ao luxo de reconstruir isto. Rezamos a Deus para que proteja estes lugares sagrados, para não perdermos a nossa história”, comenta o sacerdote, no topo da montanha onde está o mosteiro. Dali, vê-se uma autoestrada, no sopé da montanha. “Aquela autoestrada foi a fronteira entre o território do Estado Islâmico e nós”, explica. Olhando para o topo do monte, ainda se vislumbram as dezenas de cavernas que rodeiam o mosteiro incrustado na pedra. Era ali que os eremitas passavam os seus dias em oração. “Antes do Islão, este mosteiro já existia”, repete.
“Diálogo com os muçulmanos? É impossível”
Hoje, católicos e ortodoxos trabalham lado a lado na reconstrução da histórica região que viu nascer e crescer o Cristianismo. As diferenças teológicas entre os vários ramos foram postas de lado em nome de um bem maior e, na verdade, não interessam para os cristãos iraquianos. “O que interessa é que somos cristãos. Não importa se somos católicos ou ortodoxos. As pessoas procuram um padre cristão”, explica o padre Georges Jahola. Zaid Alniser, que é o arquiteto oficial da Igreja Ortodoxa Síria, concorda: “Trabalhamos juntos, há casamentos mistos entre ortodoxos e católicos. E agora estamos a trabalhar juntos para a renovação deste território”.
O que há para reconstruir, ainda assim, não termina nos edifícios ou símbolos históricos. Isolados, em vilas ou cidades cristãs, ou em bairros de maioria cristã nas grandes cidades, como o bairro de Ankawa em Erbil, os cristãos lutam pela sobrevivência de uma fé profundamente afetada pela guerra dos últimos anos. A principal dificuldade é a convivência com os muçulmanos, que representam a esmagadora maioria da população do país. O padre Salar Boudagh é um dos mais pessimistas relativamente a uma possível reconciliação. “Diálogo com os muçulmanos? É impossível. Dou um exemplo: recentemente, convidei líderes yazidis e muçulmanos para um evento de inauguração de umas obras de reconstrução aqui na igreja. A ideia era promover o diálogo entre as religiões que vivem nesta região. Mas, no discurso que fez, o líder muçulmano disse que só haveria paz quando toda esta terra fosse muçulmana. Ali, na igreja, à nossa frente. Isto não é diálogo”, conta o sacerdote durante um almoço tradicional de frango de caril recheado com arroz, na casa onde vive, ao lado da igreja de Teleskuf.
A desconfiança face aos muçulmanos não é exclusiva dos cristãos. Em Bashiqa, vila que orgulhosamente se apresenta como o melhor exemplo de diálogo interreligioso da planície de Nínive, os yazidis também não querem ouvir falar do Islão. “Quando o Estado Islâmico veio, os cristãos e os yazidis fugiram, juntamente muitos muçulmanos. Os muçulmanos que ficaram para trás ajudaram o Estado Islâmico a identificar as casas dos muçulmanos sunitas. Tudo o resto foi para destruir. Agora há muçulmanos sunitas a viver cá, mas nós evitamo-los”, conta Rouaid Rashid, um habitante yazidi de Bashiqa. “Não acredito que possa ser possível restabelecer a relação com os muçulmanos. Só entre cristãos e yazidis. Só se tiver um chefe muçulmano, aí tenho de lhe obedecer. Mas pode haver uma nova onda de ataques”, teme Rashid. “Temos uma muito boa relação com os cristãos. Antes, também tínhamos uma boa relação com os muçulmanos, mas agora não nos sentimos seguros ao pé deles. O medo ainda cá está.”
O grande problema para muitos cristãos da região está concretamente identificado: os shabaks, um grupo étnico de origem islâmica, mas com uma fé própria que mistura os princípios do Islão com alguns elementos cristãos e yazidi. O padre Behnam Benoka, de Bashiqa, está convicto de que o Governo iraquiano também quer erradicar de vez o Cristianismo da planície de Nínive. “Há uma vontade firme no Iraque de tirar os cristãos do país. Só cá estamos porque as ONGs internacionais católicas ajudam a nossa resistência”, explica o sacerdote. O que está em causa, argumenta, é a retirada de terrenos às famílias cristãs para os atribuir a habitantes da etnia shabak, que, defende, não é natural dali. “O problema começou com a queda de Saddam Hussein. Quando os xiitas ocuparam o Governo, as aldeias que eram dos cristãos passaram para os shabaks”, assegura.
Mas a opinião do padre Behnam Benoka não é consensual, nem mesmo entre os padres cristãos da região. O padre Jakob Tersley, por exemplo, que é o responsável ortodoxo na mesma vila, defende que é possível e desejável uma coabitação pacífica com os shabaks. “Claro que é possível. Os problemas são a nível político. Entre as pessoas, no dia a dia, não há problemas”, assegura. “O Governo nem sequer constrói serviços públicos em território shabak para não lhes tirar terrenos. Constrói em aldeias cristãs. Por um lado, confisca terrenos aos cristãos. Por outro, força os shabaks a virem para as aldeias cristãs para terem acesso aos serviços”, contra-argumenta o padre Behnam Benoka.
Há, na região, outro problema identificado, mas esse muito mais consensual: a Universidade de Al-Hamdaya, uma grande instituição de ensino superior, construída em 2010 pelas comunidades cristãs, mesmo às portas de Karemles, hoje totalmente em ruínas depois de ter sido destruída pelo Estado Islâmico. Ao contrário de tudo o resto, os cristãos não estão determinados em promover a reconstrução daquele edifício. “[Quando a universidade foi construída] ficámos descansados, pensámos que íamos ter um lugar para os estudantes cristãos da planície de Nínive. O objetivo da universidade era, finalmente, ajudar os alunos cristãos a estudarem num lugar seguro”, explica o padre Behnam Benoka, lembrando que, antes, era perigoso para os cristãos frequentarem os mesmos estabelecimentos de ensino que os muçulmanos.
“Mas os lobbies passaram a universidade para as mãos dos muçulmanos. Agora, o reitor é um muçulmano que veio de outra universidade. Antes, a maioria dos professores eram cristãos, agora não”, lamenta o sacerdote. Ao mesmo tempo, argumenta, o Governo quer atrair estudantes muçulmanos para a universidade, para que se fixem naquela região, aumentando o número de muçulmanos a viver ali. “O Governo quer criar aqui uma terra natal para os shabaks”, garante. O padre Tahbet Yousif, pároco de Karemles, tem a mesma opinião: “Os cristãos não querem que a universidade seja reconstruída, porque só vão ser nomeados professores muçulmanos. As pessoas depois vêm viver para aqui e vai inverter-se o número de cristãos e shabaks”.
Paradoxalmente, num país em que a única forma de vida segura para os cristãos é a fixação em cidades e vilas exclusivamente cristãs, a fé parece crescer de maneira mais consolidada entre os fiéis. “O desafio espiritual é muito grande, cada vez maior”, assume o padre Salar Boudagh, que lembra como os habitantes de Teleskuf “rezavam e pediam a Deus que o ajudasse” durante a fuga, a pé, no verão de 2014. Mais: não rezavam apenas por si e pela sua vila. “Rezavam pelos inimigos, também. É o princípio do Evangelho”, explica. Mas também há, ali, sinais que renovam nos cristãos a esperança de não ver o Cristianismo desaparecer totalmente do Iraque, como a “conversão de jovens muçulmanos” à fé cristã. “Eu, pessoalmente, já batizei muitos deles”, garante o sacerdote.
Ao contrário do que sucede no Ocidente, não existe no Médio Oriente o chamado Cristianismo cultural, ou seja, a transmissão meramente cultural dos princípios cristãos. Do mesmo modo, não existem, propriamente, cristãos praticantes ou não praticantes. Ali, é mesmo tudo uma questão de fé. “[Os terroristas] pensaram que podiam destruir a fé destruindo as igrejas, as estátuas, os símbolos espirituais do Cristianismo. Mas esqueceram-se de que o Cristianismo não está no edifício de uma igreja, mas sim no coração das pessoas, na oração e na fé”, assegura o padre Salar Boudah. “E ser um cristão no Iraque não é apenas ser chamado cristão ou não cristão, praticar ou não praticar o Cristianismo. Aqui é precisa a fé.”
O Observador viajou para o Iraque, juntamente com outros meios de comunicação europeus, a convite da Fundação Ajuda à Igreja que Sofre (AIS/ACN)