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Já foi considerado um extremista dentro do PS de António Guterres, quando era líder da JS e agarrou temas quentes. Hoje já o colocam no lado conservador do mesmo partido: o crítico da união à esquerda, que permitiu António Costa formar Governo. Numa entrevista de vida ao Observador, Sérgio Sousa Pinto fala da metade dos seus 44 anos dedicada à política activa, mas também da outra metade: do “betinho de Lisboa” a quem a JS abriu os olhos, do miúdo que frequentou o ensino inovador e que sonhou ser historiador ou artista. O desenho é o seu escape e, aqui, mostra pela primeira vez o seu sketchbook, com desenhos que fez, sobretudo nas muitas viagens Lisboa-Bruxelas, no tempo em que esteve no Parlamento Europeu.
Aos 12 anos quis inscrever-se na JCP, foi sempre muito activo na intervenção pública — mas já recusou um convite para um Governo. Nunca teve cargos executivos e não mostra vontade de lá chegar. Ainda menos a um que não raras vezes é posto no caminho da sua ambição: o de líder do PS. “Eu tenho muitos ângulos retos, muitas arestas. Se calhar não tenho a paciência necessária”, diz.
“Com 12 ou 13 nos queria entrar para a JCP, os meus pais disseram-me para esperar uns aninhos”
Fez 23 anos que chegou a líder da Juventude Socialista (JS), foi em 1994, começou logo com a alcunha de enfant terrible. A ideia mantém-se. Sente-se um desalinhado na política?
Não, não me sinto nada um desalinhado, esforço-me sempre por defender as instituições da II República. Gosto da II República, das suas instituições. Às vezes tenho de ser desalinhado para lembrar que é preciso proteger as instituições e proteger a única democracia que funcionou historicamente em Portugal e que foi esta.
Sempre foi assim? Como é que começou a sua apetência pela política? Havia essa cultura na sua família?
Sou de uma geração muito politizada. Nasci em 72, ainda apanhei aqueles anos quentes em que a vida das pessoas, do país e de tudo, girava à roda da política. Com 12 ou 13 anos queria entrar para a JCP [Juventude Comunista Portuguesa] e os meus pais não se opuseram, mas disseram-me que achavam razoável que esperasse mais uns aninhos e depois então aderisse ao que me apetecesse. Esperei uns anos e aderi à JS, que na altura só existia no papel.
A sua família era de esquerda?
Era de esquerda, mas eram socialistas.
Quando falou na JCP lidaram bem com isso?
Totalmente. A reação foi de abertura. Acharam interessante que me empenhasse na política.
Nessa altura o fosso entre as duas partes, PCP e PS, era grande.
Sim, mas eles achavam sobretudo que eu era muito novo para tomar opções dessa natureza e achei que a objeção era razoável, por isso decidi esperar. Tive que lhes dar razão porque entrei, não para JCP, mas para a Juventude Socialista. Aliás, entrei para coisa nenhuma, porque ela no rigor não existia, nessa altura a JS existia só no papel.
Como fez para entrar, então?
Na altura era presidente da Associação de Estudantes do liceu Gil Vicente, para a qual tinha sido eleito pelos meus colegas, e entrei para a JS, que estava instalada na Rua do Salitre, numa sede que caía aos bocados. E verdadeiramente quem refundou a JS quase a partir do nada foi o António José Seguro. Isto tudo coincide com o período em que ele se preparava para chegar à liderança da JS [Seguro liderou a JS entre 1990 e 94].
É ele que o chama para a sua equipa.
Sim, ele conhecia-me porque eu era presidente de uma Associação de Estudantes, que era uma coisa extraordinária, porque a JS não tinha uma única Associação de Estudantes no país. A JS virtualmente não existia.
Que idade tinha quando se juntou à JS?
Uns 14 ou 15.
E tinha já muito definido na sua cabeça que era o caminho da política que queria ou aquilo era só uma experiência?
Eu tinha a paixão da política porque tinha a paixão da História. O gosto pela política vem de uma descoberta mais antiga que é a História. Compreender o país, o mundo, interessar-me pelos problemas do mundo.
Não podia ser uma paixão tão antiga, tinha apenas 14 anos.
Tinha imensos amigos com os mesmos interesses e características. Acho que era um traço de geração. Vivíamos numa época em que o papel do Estado era esmagador na vida, na economia e na sociedade. Onde ainda estavam abertas as grandes decisões que era preciso tomar a seguir à Revolução democrática do 25 de abril. E estas questões eram muito mais dominadoras e marcantes na vida das pessoas. O meu melhor amigo da época era, por exemplo, do CDS: o Alexandre Franco de Sá, uma pessoa de quem gosto muito.
Antes dessa fase andou numa escola com um método de ensino fora da norma, o Pestalozzi. Em que medida é que isso o influenciou?
Era uma escola extraordinária. Não tive responsabilidade em tê-la frequentado, foi evidentemente uma decisão dos meus pais. Era uma escola aberta que valorizava, mais do que a apreensão de conhecimentos, a valorização da discussão, da criatividade, a criação de uma opinião, o desenvolvimento do espírito crítico. Depois cheguei ao ensino oficial, não armado de um edifício de conhecimentos para despejar em futuros exames, mas de um aparelho crítico e de hábitos de desenvolver a minha opinião, respeitar a opinião, hábitos de criatividade e de liberdade que ficaram para a vida. Devo-o largamente ao Pestalozzi e à sua diretora, a excecional pedagoga Lucinda Atalaia, que fundou o Pestalozzi com o Agostinho da Silva, nos anos 50.
Isso devia ser irritante para alguns professores, depois, quando foi para o ensino público.
Não, tive uma boa adaptação, fui um bom aluno.
Esteve no Pestalozzi até que idade?
Até à 4ª classe, nove, dez anos.
O que é que se discutia com essa idade, que debate de opinião era esse?
Estamos a falar do fim dos anos 70 e início dos anos 80. Lembro-me que uma vez decidimos tirar as t-shirts e andávamos de tronco nu aos gritos no corredor, no recreio a gritar: “CGTP unidade sindical”. A diretora disse: “Podem gritar o que entenderem, mas têm de vestir as camisolas”. Achámos que era um compromisso razoável com a burguesia, por isso vestimos as t-shirts e continuámos a nossa manifestação em defesa da CGTP. E tínhamos quê? 7, 8 anos.
As brincadeiras eram essas?
Era o clima do tempo. Também brincávamos à apanhada.
Mas hoje essas brincadeiras dificilmente se encontram nas escolas primárias.
Sim, mas eram outros tempos. Era uma época diferente. Uma vez fizemos uma greve porque queríamos ter educação sexual. Fomos todos levados para o gabinete da diretora onde nos foi perguntado exatamente que tipo de educação sexual é que nós achávamos importante ter, tínhamos 7 ou 8 anos. E, depois, os meninos do Pestalozzi também eram todos meninos de famílias muito politizadas.
E de famílias bem?
Eram famílias que, pelo menos, podiam pagar a escola, que não era barata. Os meus pais tinham de fazer sacrifícios para pagarem uma escola que achavam que era boa. Mas era uma escola onde não estavam só meninos de esquerda, também estavam meninos de direita.
Conserva amigos dessa altura?
Sim, amigos aliás que hoje são figuras importantes da cultura portuguesa, como Marco Martins, o meu melhor amigo do Pestalozzi. A Filipa Vicente, eminente historiadora, o Martim Avillez Figueiredo também era da minha classe. Foram muitos que tiveram percursos em que se evidenciaram.
“O que me faz desenhar é o gozo puro”
E quando é que lhe surge o gosto pelo desenho?
No Pestalozzi recomendaram aos meus pais que fosse acompanhado por uma metodóloga. Nem sei bem o que era isto, mas eles puseram-me num atelier, lá em baixo na Rua de São Carlos, que era o atelier da Cilinha Menano (Cecília Menano). Eu apanhava o 28 e vinha até aqui a São Bento, desenhar e pintar no atelier dela.
Isso antes dos 10 anos. Tinha jeito?
Tinha gosto, pelo menos, e aparentemente algum jeito. Mas gosto tinha, sempre desenhei desde pequenino. O meu irmão foi para Arquitetura e eu acabei por ir parar a Direito.
Nunca lhe passou pela cabeça seguir por essas áreas?
Passou-me muitas vezes pela cabeça. Várias vezes me interrogo se fiz as escolhas que me ajudam a ser feliz. Se calhar se tivesse feito outras coisas teria tido uma vida diferente. Mas não vale a pena também estarmos sempre a flagelarmo-nos e a questionarmo-nos pelas escolhas que fizemos.
O que é que desenha? E quando desenha?
Quando era miúdo gostava muito de BD e gostava muito de fazer BD. Continuei sempre a desenhar, sobretudo nas reuniões. Depois, quando estive no Parlamento Europeu, habituei-me a desenhar nos aviões. Fiz milhares de desenhos nas horas de voo imensas que fiz. E frequentei duas escolas de arte em Bruxelas.
Foi para aperfeiçoar a técnica?
Não foi para isso, foi para ter uma vida mais interessante e com mais sentido. Estava na capital europeia da BD. Frequentei o Institut Saint-Luc, que era onde o Hergé dava aulas de BD. Tinha um curso pós-laboral, que era o Cours de Promotion Sociale, e lá fui eu, às seis e tal da tarde, fazer esse curso. Depois fui até para uma escola de arte, La Cambre, uma escola muito elitista, mas lá entrei, nem sei como. Só havia um belga no meu curso de desenho. Desenhei, fui fazer gravura. Enfim, tive uma vida mais interessante.
Do que qual? Do que a que tem agora?
Quando vim para cá continuei, fui para a Sociedade Nacional de Belas Artes onde segui um curso de urban sketchers e andava pela cidade a desenhar à vista. E, depois, estive na ESBAL (Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa), num curso giríssimo de desenho e fui mantendo esse hábito.
Quase podia ter uma carreira paralela.
Não sei. Antigamente o desenho era considerado essencial à educação de uma pessoa com um quadro de interesses alargado e rico. No século XVIII, quando as pessoas faziam o grand tour, quando visitavam o Sul, em particular a Itália, tinham um carnet d’artiste, não havia máquinas fotográficas e as pessoas desenhavam o que viam. Essas coisas foram entretanto desvalorizadas pela cultura técnica, mas antes eram consideradas essenciais à formação de uma pessoa completa. Só depois do Romantismo, quando se criou a ideia do artista como alguém escolhido por uma entidade superior e que o fecundou com inspiração e talentos sobre-humanos, é que é um ser à parte. Os artistas começaram por ser artesãos. Eram uma espécie de sapateiros do desenho. Depois transformaram-se numa corte essencial na educação de uma pessoa culta. Hoje em dia não, vivemos numa cultura técnica. Desenhar é uma coisa que toda a gente pode fazer, não temos de ser todos uns Rembrandt.
Nem todos têm jeito.
Mas o jeito cultiva-se. Imagine-se que alguém sem jeito para a matemática decidia que não valia a pena multiplicar. Vivemos num ambiente cultural em que certas disciplinas são desvalorizadas e outras são valorizadas. A componente artística era considerada muito importante no Pestalozzi, por exemplo.
Estimula isso nos seus filhos, o desenho?
Estimulo, com variado grau de sucesso, mas lá vou estimulando. Proporcionar à pessoa o mínimo de formação artística é aumentar as suas possibilidades de ser feliz.
Transpõe a sua veia crítica, que é sempre muito latejante, para o que desenha?
Não. Se calhar sim, se calhar não. Nunca me ocorreu. Mas eu acho que a política e a criação artística não combinam bem. Os movimentos artísticos que serviram causas políticas nem sempre foram os mais estimulantes, nem aqueles que venceram o tempo.
Então o que o faz desenhar?
O gozo puro. O prazer puro de desenhar, o estado de concentração. Os que tocam piano bem — que não é o meu caso — dizem que com a música experimentam o mesmo tipo de bem-estar. Mas a verdade é que o desenho exige um tipo de concentração que nos obriga a desligar aquela parte do cérebro onde está alojado o mundo da racionalidade. Onde estão geralmente pendurados todos os problemas, as nossas angústias e ansiedades. É bom ter uma atividade. Claro que também é um escape.
A semente da sua carreira política surgiu na escola Gil Vicente, onde chega à Associação de estudantes e se envolve numa luta contra as provas de acesso à Universidade. Como foi isso?
Participei no Movimento de Estudantes Contra a Lei de Acesso, que era o MECLA, e opunha-se à PGA (Prova Geral de Acesso), que era uma prova de cultura geral. E eu achava que, uma vez que os miúdos não vinham do mesmo ambiente cultural, esta era uma prova profundamente injusta. Aqueles que vinham de um ambiente familiar privilegiado gozavam de uma vantagem que a escola não tinha suprido. O ensino oficial não proporcionava aos jovens as mesmas condições e isto numa época em que os numerus clausus de acesso à Universidade eram um estrangulamento muito importante. O grau de sucesso dos estudantes era fortemente condicionado pelo seu background socio-cultural. Eu achava isto de uma profunda injustiça. E como bom jovem esquerdista avancei.
Qual a dimensão dessa luta?
Fizemos grandes manifestações, organizadas pelas associações de estudantes. Mas, depois, essa experiência da PGA permitiu-me perceber como é que o PCP funcionava, a sua intervenção nesse tipo de manifestações. Dei-me conta que os meus colegas, presidentes de associações de estudantes ligadas à Juventude Comunista, tinham uma espécie de existência paralela, porque reuniam à parte e, a dada altura, mais do que qualquer outra coisa, foi por causa dessa experiência de trabalho, que me pareceu profundamente sectária e de flagrante contradição com a minha cultura, que senti que não tinha nada a ver com o PCP e que nunca poderia fazer parte do PCP. Essa experiência da PGA foi muito interessante, porque foi realmente ela que me afastou do PCP. E depois proporcionou-me alguns momentos curiosos, lembro-me de uma reunião com [o ministro da Educação] Roberto Carneiro, onde fui expor os meus pontos de vista. Eu teria uns 16 anos e, depois de expor os meus pontos de vista e de ser ouvido com infinita paciência pelo ministro, ele pergunta-me: “Então e o Sérgio, já fez a PGA?” Respondi: “Eu já”. “E que nota teve?”, perguntou o ministro. “Eu tive 89%”. Ele respondeu: “Está a ver como a prova é justa?” [Risos].
Não rebateu os argumentos? Afinal, a educação tinha ajudado.
Devo ter rebatido, dos meus argumentos não me lembro. Mas deste aparte dele recordo-me.
“Eu era um betinho de Lisboa, foi a JS que me obrigou a conhecer Portugal”
Nessa altura adere à JS e vai para Direito. Como é que concilia tudo? Chega cedo à liderança, sem concluir o curso.
Sim, sou eleito com 21 anos e, bom, já estaria no 4.º ano do curso, ou no 3.º. Era bom aluno e, nesse período, tenho algumas dificuldades. Passo para o regime noturno dos trabalhadores-estudantes. E devo ser um caso único de um estudante da Faculdade de Direito de Lisboa, cujas notas no 4.º e 5.º anos são mais baixas do que as do início do curso, porque são os anos de empenhamento na minha vida política. Mas, ainda assim, consegui acabar o curso com notas decentes.
Mas queria advocacia?
Vou para Direito porque tinha seguido humanidades, fazíamos essa escolha cedo. Mas o meu interesse profundo não era o Direito, era a História. Foi sempre a minha paixão e podia ter ido, mas tive um professor, uma figura notável, que me disse: “O teu gosto pela História vais cultivá-lo a vida toda. Vai para Direito porque isso abre-te outras perspetivas”. E, assim, dei por mim em Direito. Ele tinha razão, porque o Direito é um curso que realmente abre oportunidades que a História não abriria, ficaria um pouco confinado na História. Ainda hoje cultivo a História e provavelmente serei muito melhor historiador, que não sou, do que jurista. Mas o Direito foi interessante e, depois, estive numa Faculdade muito politizada. E fiz amigos que depois me acompanharam na política.
Quem?
O Marcos Perestrello, o João Tiago Silveira, o Fernando Rocha Andrade, que era de Coimbra, a secretária de Estado Alexandra Leitão, o André Macedo, meu colega e meu grande amigo. A atual secretária de Estado do Turismo. São pessoas que gravitam em torno da política. Na Faculdade de Direito criei o grupo de socialistas, vivi sempre mergulhado na política. Hoje está na moda atacar as juventudes partidárias, o país adora explicações simples e uma delas é que um dos problemas do regime são as juventudes partidárias. Isso é um disparate completo, é apenas uma atualização de um velho preconceito contra os partidos. O ataque aos partidos foi um dos aspetos centrais do discurso antidemocrático do Estado Novo. Qual é a alternativa ao ataque direto aos partidos? Atacar as juventudes partidárias.
E não há razões para isso? Como olha para elas hoje?
As juventudes partidárias do meu tempo tinham os melhores.
Do seu tempo. Eu estou a falar de hoje em dia.
Não sei, mas tinha pessoas interessadas, com compreensão mais ou menos elaborada sobre as questões nacionais. Os melhores associavam à sua vida e atividade estudantil e académica a sua dimensão política.
As pessoas hoje não têm razão quando olham e veem ali escolas de boys?
Não concordo nada com isso. Não me vou colocar na posição de dizer que no meu tempo era um esplendor e agora estamos numa cloaca. Eu pergunto: qual o modelo ideal? Onde é que os partidos vão recrutar pessoas que têm vocação para intervir na vida pública? Vão fazer como as consultoras, vão buscar os melhores alunos? Vão à Faculdade de Direito de Lisboa? [Com tom irónico] “A Deloitte desloca-se à Faculdade de Direito para ir buscar os melhores, juntamente com o PSD e o BE…”. Se calhar o modelo é outro. [Continua o tom irónico] Se calhar querem ir buscar os jovens profissionais aos escritórios de advogados onde ganham o triplo que um deputado: “Meu querido amigo, é ótimo a manipular os códigos, não quer ir para a Assembleia da República?”. É mais uma estupidez. Adoramos uma explicação estúpida e simples à qual possamos aderir furiosamente.
Para que podem servir então as juventudes partidárias?
No meu tempo provou-se que uma juventude partidária não tem de ser um apêndice etário, onde estão as criancinhas. As juventudes partidárias mergulham as suas raízes no movimento operário e também na resistência ao fascismo em Portugal, nos movimentos estudantis. Portanto, têm a sua própria linhagem, o seu passado. Elas têm de ser críticas e ter autonomia política. Lembra-se do “reconhecimento das uniões de facto dos casais homossexuais” — a própria designação era absurda. Na minha geração isso era uma aberração jurídica, o limbo em que viviam os casais homossexuais. Mas no meu partido, para estimabilíssimas pessoas socialistas, gente culta e capaz, com a cabeça no sítio certo, essas causas não tinham significado. Se não existisse uma juventude partidária com a coragem que deve estar associada à intervenção política naquelas fases da vidas… As juventudes partidárias têm essa originalidade. Podem não ter e transformar-se numa coisa cinzenta, carreirista, que não acrescenta nada, mas não é essa a sua razão de ser.
Mas continua a haver essa chama hoje?
Se o objetivo for minar as condições institucionais da II República, ou seja, da democracia como a conhecemos desde o 25 de abril, se quisermos destruir os alicerces do regime e afastá-lo cada vez mais da sociedade, uma excelente medida será acabar com as juventudes partidárias. Não sei de onde se julga que vêm esses jovens. São o país! Eu era um betinho de Lisboa, foi a JS que me obrigou a conhecer Portugal. Percorri várias vezes Portugal de Norte a Sul. Se hoje tenho noção do que é Portugal, devo-o à JS. Eu vivia num casulo lisboeta. Hoje, retrospetivamente, é muito mais fácil compreender o que eu era e porque é que era aquilo que era. Era um jovem de Lisboa, que frequentava o ensino superior numa escola de elite, numa época em que os numerus clausus eram um estrangulamento terrível no acesso ao ensino superior e a minha visão do país era profundamente balizada pelas minhas circunstâncias sociais e culturais.
Quando percorre o país real sente o choque com a elite a que estava habituado?
Nunca fiz parte da elite, nunca fiz. A minha família era da classe média de Lisboa. Mas no país que nós éramos realmente fiz parte de uma minoria privilegiada, não era uma elite social, mas uma minoria privilegiada. Lembro-me perfeitamente, na escola pública, de ficar impressionado quando colegas meus do liceu, que se sentavam ao meu lado, me explicavam com 13 anos que não iriam para a faculdade. Eu achava que o papel do liceu era ser uma auto-estrada que conduzia diretamente à Universidade. Era o que via à minha volta. Quando percebo que há miúdos, colegas, amigos, gente próxima de todos os dias, de brincadeiras, que na sua conceção das coisas, deles e familiar, não fazia parte a faculdade, por condicionamento de ordem económica, isso para mim foi um choque.
Na escola pública também abriu os olhos.
Abri os olhos ao país que temos e ao que somos, em vez de viver numa redoma não representativa do que é o nosso país.
O referendo ao aborto em 1998 “foi uma questão muito difícil e até dolorosa”
Aos 24 anos está no Parlamento a combater o primeiro-ministro que era o líder do PS. Como foi essa luta?
Foram anos exaltantes a todos os títulos, mas também difíceis. A JS era uma organização com enorme peso na Assembleia da República, tínhamos 14 ou 15 deputados. Defendia a sua autonomia política muito vigorosamente e encontrava na esquerda portuguesa eco e apoio para as suas propostas de modernização. Se as uniões de facto tivessem avançado como deviam e podiam ter avançado, quando havia maioria para aprovar o seu reconhecimento, tínhamos sido dos primeiros países da Europa a reconhecer essa realidade. Na despenalização da interrupção voluntária da gravidez perdemos estupidamente dez anos, por causa de um referendo que foi feito sobre uma lei aprovada na Assembleia da República. Ou seja, criou-se um conflito entre a legitimidade de um Parlamento e a legitimidade de um referendo. Por menos de 1%, com um primeiro-ministro que anuncia na véspera que vai votar contra. Tudo isso foram experiências muito difíceis e até dolorosas.
Como é que convivia o líder da JS com um líder do PS que estava no lado oposto, apesar de estarem no mesmo partido?
Sim, estávamos. Aliás, a direção do partido tentava congregar deputados para se oporem à despenalização do aborto e, no Governo, havia ministros que defendiam ativamente a despenalização. Era o estado em que estava o PS. Houve aqui uma grande disputa pelos deputados na Assembleia da República que, em 1997, aprovou a despenalização do aborto. Depois foi adiado dez anos, em resultado de um referendo que o primeiro-ministro entendeu convocar, ele que tinha anunciado publicamente que votaria contra. Foi uma coisa que dilacerou o partido.
Na altura falou com António Guterres sobre isso, diretamente?
Evidente, muitíssimas vezes.
Ele tentou demovê-lo da sua iniciativa?
Não quero alongar-me muito sobre as minhas relações e a forma como esse processo correu. Estamos a falar de pessoas que estão todas elas na vida política ativa e pública. Não serve nenhum propósito útil andarmos à roda disso. O que interessa é que às vezes temos razão, outras não temos e, naquele momento, nós tínhamos razão. O tempo deu-nos razão em Portugal e na Europa. Acho que teve forte impacto no PS e acho que aí desempenhei um papel importante. Depois da derrota do referendo, desdramatizei o resultado, chamei a mim as responsabilidades por aquele desfecho, que hoje posso dizer que manifestamente não me parece que me pudessem ser assacadas. Mas contribuí para uma certa pacificação no PS, numa altura em que uma parte muito significativa do partido estava revoltada contra o primeiro-ministro. Era preciso seguir em frente e não havia nenhuma vantagem em ter abertas feridas que era preciso sarar.
Nessa altura aposto que preferiu ter outro líder no PS.
As coisas são como são. Guterres foi uma figura muito importante no PS, que deixou um legado no país com aspetos indiscutivelmente positivos e continua hoje a servir uma vida dedicada ao serviço público que tem de ser valorizada e respeitada. Respeito-o e admiro-o, não quero fazer considerações.
Depois disso é posto nas listas como candidato ao Parlamento Europeu. Falou-se em exílio político, foi disso que se tratou?
Por um lado estava profundamente ferido com os acontecimentos na vida política nacional. Deixei a liderança da JS com 26 ou 27 anos. Acho que fui o único secretário-geral de uma juventude partidária que não permaneceu no Secretariado Nacional do partido. Saí e fui-me embora da direção do partido, portanto as feridas com a direção eram muito grandes. Não me reconhecia em muitos aspetos da contemporização de um secretário-geral do PS com os sectores mais conservadores da sociedade portuguesa. Foi uma fase também de grande desconforto da minha intervenção no PS. Portanto, o Parlamento Europeu foi uma experiência extraordinária e uma excelente decisão porque aí aconteceu uma coisa extraordinária. Eu tinha uma relação distante com o dr. Mário Soares, tínhamos 50 anos de diferença, e de repente encontramo-nos no Parlamento Europeu e é o princípio da minha amizade com ele. Foi uma coisa que mudou a minha vida e, na verdade, foi o que me reconciliou com a política.
Sentiu isso?
Reconcilio-me com a política por causa do dr. Mário Soares.
“Um dia Soares perguntou-me: ‘Então você não quer ser ministro?'”
Como era o vosso convívio? Como se deu a aproximação?
O dr. Mário Soares era um homem com uma frescura extraordinária. Se quisermos ilustrar a ideia de que a idade é um estado de espírito e que há jovens com 80 anos e idosos com 20, Mário Soares é um excelente exemplo. Era um homem de uma frescura, de uma abertura, de uma irreverência, de uma curiosidade insaciáveis. Muitas conversas que com outros podiam não ter interesse nenhum, com ele eram sempre interessantes e palpitantes. E vinham sempre abrilhantadas com 50 histórias de uma vida única.
Como é que ele teve essa curiosidade por si, consegue explicar?
Mário Soares tinha uma grande curiosidade em conhecer como era um socialista 50 anos mais novo, ativo na vida pública. Perceber o que era o futuro do PS. Foi a geração de Mário Soares que construiu a social-democracia e o socialismo na Europa. Eu acho que ele gostava de mim porque tinha curiosidade em saber como era o futuro do socialismo democrático. Porque é que uma pessoa muito mais nova do que ele se tinha aproximado do socialismo democrático. E tinha satisfação em encontrar jovens socialistas que ele apreciava.
Como é que têm a ideia de escrever um livro?
É ideia dele. Eu nunca teria o atrevimento de sugerir fazer um livro com ele. Mas lembro-me de um dia ele virar-se para mim e dizer: “Então você não quer ser ministro?” E eu: “Bem, podia dizer-lhe que há várias coisas a que aspiro na vida, até posso ser ministro, mas não é uma coisa a que aspire naturalmente”. E ele: “Não é? Então mas isso não é uma coisa que é natural? Um tipo querer o poder para o exercer”. E eu disse-lhe: “Ó dr. Mário Soares, quantos ministros Portugal já teve desde o 25 de Abril?” E ele: “Algumas centenas”. E eu atirei: “E quantas pessoas já tiveram o privilégio de escrever um livro consigo?” Não disse nada, mas acho que deve ter ficado satisfeito. E aquilo era profundamente sentido.
Não devem ter sido muitas as vezes que o conseguiu calar…
Tínhamos grandes discussões, grandes discussões. A dada altura o dr. Mário Soares andava muito zangado com a Terceira Via, e tinha razão, mais uma vez a História deu-lhe razão. Quando discordava de Mário Soares, ficava sempre de pé atrás, reconhecia que ele tinha tendência a ter razão. Tinha sempre um certo receio de trocar argumentos com alguém com quem a História era sempre tão generosa. E sobre a Terceira Via o dr. Soares andava indignado, que o socialismo estava a viver um péssimo momento, que se tinha vendido ao neoliberalismo, e eu dizia-lhe: “Veja bem, o socialismo do princípio dos anos 70 e como era compreendido no Sul da Europa e todos os delírios e loucuras, as comissões de moradores, o corporativismo, a autogestão dos trabalhadores, todas essas ilusões a que o socialismo se agarrava antes de ser chamado ao poder, foi preciso meter tudo isso numa gaveta e foi o Dr. Soares que meteu. Porque fomos o primeiro PS do sul da Europa chamado a governar, antes de Mitterrand, antes de Gonzalez. Pela primeira vez, o socialismo democrático teve de lidar com os problemas impostos pela realidade e não pelos interessantíssimos debates teóricos. E resolvemo-nos. Tivemos uma revolução maravilhosa, tivemos uma transição democrática, construímos um país próspero”. Isto para tentar contrariar a sua indignação, não que eu fosse um entusiasta da Terceira Via. A discussão era interminável.
As discussões com ele eram sempre intermináveis?
Sim, eram ótimas. Sobre tudo. Podíamos estar a falar disso como de natureza e de jardins e arquitectura, sobretudo da História. Ele era cultíssimo. Hoje em dia é raro, a política infelizmente não é frequentada por pessoas com a dimensão humanística de Mário Soares. Tinha uma cultura histórica, geográfica, política, literária, tudo fazia parte de um homem completo. Portanto as discussões eram todas interessantes e para mim interessantíssimas. Eu retirei muito mais do convívio com Mário Soares do que ele terá retirado do convívio comigo. Lembro-me de uma história muito divertida. Eu teria uns 26 ou 27 anos e estávamos a falar de História, ele não tinha paciência nenhuma para números, nunca conseguia citar um número, e eu gostava de economia. No meio de uma grande discussão em que ele já devia ter adormecido várias vezes com as minhas exposições económicas, vira-se e diz: “Pronto, está bem, já vi que sabe imenso disso tudo. Agora diga-me uma coisa: já leu o Guerra e Paz?” E eu não tinha lido, lá fui eu ler o Guerra e Paz. Foi um episódio importante, porque ele lembrava que para ser um homem completo não basta ler o que os escribas do momento vão vertendo em livros para condensar as ideias da moda, convém ler os grandes autores. Um homem completo não pode dispensar a enorme experiência humana que está compilada na literatura. Mas as lições de Soares nunca eram um sermão, eram sempre uma saída qualquer inesperada em que ele rasgava os horizontes das pessoas.
No dia em que ele morreu, escreveu uma mensagem curta mas muito impressiva no Facebook: “Agora ficamos sozinhos”. Politicamente sentiu orfandade?
Senti. Mas é coletiva. Porque Mário Soares era realmente um homem que sabia o que não era negociável nem transacionável: a liberdade. Podíamos discordar em discussões de maior ou menor importância, mas no essencial sabíamos que o nosso modelo político, democrático, que os grandes consensos tinham um guardião: Mário Soares. Tinha a memória do que tinha sido isto antes da revolução, que gostava das pessoas, tinha uma espécie de compaixão com a natureza humana. Não era alguém que gostasse de um homem novo, abstrato, que não existe, perfeito. Gostava das pessoas concretas, tinha uma espécie de ternura por aqueles defeitos que são os dos portugueses. E gostava das pessoas, e com uma grande verdade. Ou seja, quando alguém o aborrecia, notava-se logo. Não conseguia disfarçar que não tinha paciência para chatos. Era realmente um homem extraordinário.
Há figuras de outras áreas políticas que coloque nesse patamar?
Sá Carneiro, Freitas do Amaral, Álvaro Cunhal, que apesar da controvérsia dos anos subsequentes ao 25 de Abril a certa altura foi decisivo na integração do PCP no nosso modelo democrático parlamentar, de que hoje o Partido Comunista é um forte pilar. Convém dizê-lo: o PCP é um pilar do nosso modelo político-democrático.
Fazem falta essas referências hoje? Vê alguém a esse nível não só em Portugal mas na Europa?
A Europa vive uma época desgraçada, há um declínio da política. Mário Soares tinha aquela teoria do vinho, dizia que os políticos são como o vinho: há anos bons, há anos maus. Que isto tudo obedecia a uma lógica caótica, portanto nunca se sabia quando vinham políticos bons e maus. Não sei se a teoria não é um bocado à Soares, intuitiva, ou se há razões mais profundas que explicam esta degradação.
É mais apologista disso. Há razões mais profundas?
Acho que a doutrina do vinho é boa, mas não é suficiente. Há outras causas que contribuem para a degradação da política.
Quais?
Isso dá outra entrevista. A política hoje é muito mais impotente do que há uns anos. Os políticos estão muito condicionados pela interdependência económica da globalização. Em Portugal porque já não mandam na economia como mandavam nos anos 80, condicionados pela integração europeia e por entidades que ninguém sabia o que eram há 20 anos e hoje nos governam. Há um estado de impotência política. As pessoas têm uma expectativa em relação à capacidade de resposta da esfera política e ela depois não tem tradução. A política está profundamente esvaziada de poder.
Onde é que está o poder? Na União Europeia?
Está na comunidade financeira, na UE. Essa dificuldade da política corresponder cria uma pressão curiosa que é a proliferação de mini-causas. Vivemos de mini-causas. O Estado deve ser o principal garante das nossas liberdades, mas quando o político se torna incapaz de corresponder a essa expectativa, quando se instala um pessimismo, quando é difícil adotar políticas que tenham consequências na vida das pessoas, começam a aparecer propostas em que o Estado protetor das liberdades se transforma num Estado redutor das nossas liberdades. E aparecem coisas como esta maluquice de proibir o fumo nas praias, de tributar bebidas açucaradas…
Essa última não é uma ideia. Já se faz cá.
… converter a Brigada de Trânsito numa força que atormenta os condutores na estrada e as pessoas que pretendem estacionar o carro na cidade. O investimento do Estado é gerido para essas áreas em que se assiste à instrumentalização do Código da Estrada para captar recursos para o Estado. E, portanto, são tudo sinais de uma certa decadência política. O Estado mete-se onde não devia. A política vai-se reduzindo a estas patetices, porque perdeu os instrumentos fundamentais e a capacidade de tomar as grandes decisões. Aqui discutem-se os SMS, o debate político é dominada por faits divers, há sempre um fait divers que está no pipeline, disponível para ser injetado no espaço público e, com isso, expulsar tudo o que é importante.
Está cansado da política?
Não, não estou cansado. Mas veja a questão do novo aeroporto de Lisboa. É uma questão fundamental. Onde é que se vai construir é uma questão estruturante para o país. Não se discute, mas discute-se um SMS. Na semana que vem já sabemos que vai haver uma não questão que vai afastar do debate público e da esfera pública as grandes questões. Temos um problema gravíssimo do sistema de pensões, mas isso não consegue chegar ao centro do debate público, porque é permanentemente expulsa pela proibição de fumar no areal ou outra palermice qualquer que, de um modo geral, tem sempre a mesma natureza: ou é frívola e insignificante ou é mais uma decisão cerceadora das nossas liberdades.
“O engenheiro Sócrates convidou-me, a dada altura, para integrar o Governo”
Em 25 anos, é daqueles políticos que não teve nem um cargo executivo. Não quis ou não se proporcionou?
Bem, proporcionou. O engenheiro Sócrates convidou-me, a dada altura, para integrar o Governo. No primeiro Governo dele, não foi no princípio do Governo, foi numa remodelação, para integrar o Governo na qualidade de secretário de Estado dos Assuntos Europeus. Mas nessa altura respondi negativamente, portanto não tive essa experiência.
Porque é que não quis?
Foi numa fase de crise e de desmoralização da política e falta de entusiasmo e de vontade, não me sentia em condições de assumir essas responsabilidades, por razões políticas e pessoais, sobretudo. A política exige essa entrega, convicção e força e eu não senti.
Disse logo que não?
Sim, disse logo que não. Foi uma coisa inesperada, não tive tempo para me preparar para ela, mas de facto…
Arrependeu-se mais tarde por não ter aceitado?
Não! Não me arrependo. Uma das vantagens de a pessoa ter a disciplina de fazer aquilo que julga que é justo é que geralmente pelo menos a isso é poupada, ao arrependimento.
Há pouco falou numa série de amigos da Faculdade que hoje estão no Governo ou por lá passaram. Nunca chegou aqui. A imagem inicial do desalinhado prejudicou-o na vida política?
Não, eu não ando na política para ser secretário de Estado.
Secretário de Estado, ministro, o que for?
De maneira nenhuma. Eu sou deputado, presidente da Comissão de Negócios Estrangeiros, fui deputado ao Parlamento Europeu, fui presidente da comissão para as relações entre o Parlamento Europeu e os países do Mercosul, sou membro da Assembleia Municipal de Sintra. Tenho muita honra nas funções que desempenho e que desempenhei. Gosto muitíssimo do que estou a fazer e acho que corresponde ao que é essencial . Acho que sou um político com uma voz e acho que os políticos têm de ser pessoas com uma voz. Não são retransmissoras, nem de um chefe, nem das ideias da moda, nem do que pensam os eleitores, nem do que pensam os jornais. Têm de ter uma voz e eu acho que isso conquistei. Acho que sou um político com uma voz, e não acho que isso seja extraordinário. É verdadeiramente elementar um político ter uma voz própria distintiva, que o justifique na vida pública.
Quando aos 27 anos Mário Soares lhe perguntou, disse que tinha outras aspirações. Quais eram?
Nesse período estava bastante desmoralizado. A política já não me estava a proporcionar satisfação e o sentido de fazer a diferença e preencher a existência. Havia uma certa crise que também experimentei, uma crise de sentido. Essa coisa de ser ministro parecia-me uma vaidade completamente frívola. Nem sequer percebia que alguém condicionasse as suas escolhas e decisões por esse fútil desejo, para depois telefonar à mãe e dizer: “Mãe, sou ministro”.
E hoje que aspiração tem? O seu tempo na política, para líder do PS por exemplo, está para chegar ou já passou?
Não sei, eu sempre tive uma relação muito boa com pessoas mais velhas. Sempre procurei esse convívio e, de um modo geral, o meu círculo sempre foi constituído por pessoas muito mais velhas que eu. Às vezes digo a brincar que nasci tarde demais, devia ter nascido noutra época e, pronto, caí nesta e tenho alguma dificuldade de adaptação, que se tem revelado pouco operativa em termos políticos. Mas se esta teoria for verdadeira, se eu nasci tarde de mais, bom… não tenho solução.
É só uma teoria…
Sim, é só uma teoria. A política converteu-se numa carreira, porque dediquei-lhe a minha vida e estou a dedicar. Para a minha vida ter sentido, tenho de reconhecer que a minha vida política se converteu numa escolha e numa carreira. Contemplo a minha trajetória, com algumas frustrações, geralmente em relação a mim próprio, às minhas próprias limitações, às qualidades que não tenho e que se calhar gostaria de ter, mas também com uma grande benevolência. A verdade é que sempre procurei fazer o que melhor podia e sempre aceitei pagar os custos que essa disciplina comportava. Não tenho de ser implacável na avaliação que faço de mim próprio e da minha vida. A política não se mede por lugares executivos.
Não, mas os lugares executivos possibilitam que toda essa…
… Permitem que uma certa conceção da vida, do país, da sociedade, possa progredir no bom sentido. E muitas vezes os discursos estão repletos de grandiosas proclamações, e a esquerda tem esse problema especialmente…
Mas para sair das proclamações e passar à prática, um cargo executivo é o caminho.
É o que possibilita, mas há transformações que vão ocorrendo e só são possíveis quando há uma insistência, um esforço uma pedagogia. E uma das coisas piores da política contemporânea é que quase já ninguém faz pedagogia, não é preciso porque existem uns spin doctors que dizem exatamente o que é que o eleitorado quer ouvir. Uma pessoa em vez de dizer aquilo que tem o dever de dizer e em que verdadeiramente acredita por razões práticas de preservação do poder tenta corresponder ao receituário do spin doctor. Isso para mim é uma perversão horrível, é pior do que uma política económica errada. É a desistência de tudo. É preciso falar verdade, mesmo que seja para dizer o que as pessoas não querem ouvir. Tem de haver sempre alguém que faça isto, melhor ou pior. É algo importante na vida pública, não é só o exercício de cargos executivos que cria as condições objetivas para mudar as sociedade.
“A vida pode fazer sentido, muito sentido, sem ser preciso liderar o PS”
A sua hora política já passou? Ou vai chegar?
Não sei, a minha hora é esta. Se fiz bom ao mau uso do tempo de que dispus, se o desbaratei com causas erradas, ou se me consumi a mim mesmo com causas justas, esse balanço é cedo para fazer.
Não tem 80 anos, tem idade para fazer esse percurso e chegar à liderança do PS e ser primeiro-ministro. Tem essa ambição?
Mas… será que uma vida só faz sentido se culminar na liderança do PS? Não. A vida pode fazer sentido, muito sentido, sem ser preciso liderar o PS.
Mas nem sequer lhe passa pela cabeça?
Sinceramente, não penso nisso. Não estou nada persuadido que seja, na minha geração, aquele que dispõe das qualidades mais salientes para poder liderar com êxito o PS. Sou uma pessoa com uma personalidade muito vincada, que tem uma data de coisas que hoje em dia na política não funcionam bem. Tenho muitos ângulos retos, muitas arestas. Se calhar não tenho a paciência necessária. E depois também não tenho certas características que são essenciais à liderança, que gostaria de ter, mas que não tenho. Portanto, se calhar há gente muito mais apta do que eu para prestar um serviço melhor do que aquele que eu estaria em condições de poder prestar.
Tem uma coisa curiosa: no início era visto como um radical, hoje é um conservador, no partido.
Já viu? Não acha extraordinário? Acho admirável.
Foi o Sérgio que mudou ou foi o partido?
Acho que foi o partido e o mundo. Uma coisa que tenho em comum com Mário Soares, o meu eixo fundamental, que é sagrado, é a liberdade. Sou um homem de esquerda por causa da liberdade. Uma pessoa que vive com um ordenado mínimo miserável, ou que está no desemprego com um subsídio miserável, ou que consome o seu tempo todo a trabalhar com vários empregos para viver com o mínimo de dignidade, essa pessoa não é livre. É a liberdade que faz de mim um homem de esquerda. Muitas vezes vejo que a esquerda também é ela própria, infelizmente, adversária da liberdade.
Em quê?
Regressam certas ideias à moda que são contrárias à liberdade.
Como por exemplo?
A esquerda acolhe, na minha opinião, um certo pensamento politicamente correto que se traduz num desejo de hiperegulamentar as nossas vidas. Não sou a favor disso. Isso são ideias inimigas da liberdade.
E quando fala da esquerda inclui o PS?
O PS e os outros. Não falo só do PS. Há tribos que estão agrupadas em torno de uma causa. Parece que vivem com uma única causa, mas que estão dispostas a dar a vida pela causa e a sacrificar a vida alheia pela vitória da causa delas. São os chamados fanáticos. O fanatismo não é um problema ideológico, mas um tipo humano. Haverá sempre fanáticos, ou porque são estalinistas, ou defensores do vegetarianismo, ou de uma qualquer divindade. Os defensores da liberdade têm uma tarefa fundamental que consome a vida inteira. Combater os fanáticos, que estão desejosos de esmagar o ponto de vista contrário.
A divergência política afetou a amizade com Costa? “É uma das coisas mais penosas da política”
Quando é que se tornou amigo de António Costa?
Somos amigos há tantos anos que não sei exatamente. Julgo que terá sido quando ele foi candidato a presidente da Federação da Área Urbana de Lisboa.
Esta sua divergência política com a atual solução governativa afetou a vossa relação pessoal?
Bom, como é evidente, é uma das coisas porventura mais penosas da política e as coisas são assim mesmo. Mas também não gostaria de estar aqui a alongar-me sobre a minha relação com o António Costa, que é uma pessoa de quem eu gosto muito e por quem eu tenho grande respeito, consideração e amizade.
A zanga que tiveram teve um fundo político, é o crítico assumido da “geringonça” desde o primeiro minuto. Ela funciona?
Bom, não há dúvida de que funciona. Prova disso é que, ao fim de quase dois anos, o país está sob uma solução governativa que é sustentada pelo PS, pelo PCP e pelo BE, por isso não há dúvida que a geringonça funciona. Isso é uma evidência.
Isso tira-lhe razão?
Não, de maneira nenhuma. Mas o que não vou é dedicar a minha intervenção na vida pública a um assunto que está esgotado. O problema da solução política “geringonça” não existe, já não existe.
E nunca se vai colocar? E não tem consequências da gestão diária da atividade do Governo?
A bondade da solução encontrada é uma coisa. Houve um momento em que a discussão era útil. Essa solução ao fim de dois anos, podemos reconhecer que não vale a pena chover no molhado e talvez seja interessante que o debate político progrida. Não podemos ficar acantonados a remoer sobre a solução. Na altura disse o que tinha a dizer sobre as suas fragilidades e riscos.
Mas, quase dois anos depois, sente que o que apontou na altura como riscos se está a verificar?
A maior parte das objeções que coloquei não se vão projetar agora, se eu tiver razão — e desejo ardentemente não ter razão — projectar-se-ão no futuro e não agora.
Como assim no futuro?
Na evolução do nosso modelo político, do nosso sistema de partidos, nas consequências para o país de um quadro governativo condicionado por um determinado perfil de apoio parlamentar. Mas não me quero alongar sobre isso. O tempo o dirá. Agora, que esta é a solução que temos e que se mantém, largamente por causa do primeiro-ministro… não imagino ninguém que tivesse a capacidade política e força de impor uma solução com estas características, ao PS e ao país. O primeiro-ministro é o grande pilar desta solução. E é a solução que prevaleceu e é a que temos.
Funciona?
Funciona no sentido em que se mantém.
Mas, além da estabilidade política, o Governo tem conseguido fazer o que o país precisa apoiado por estes três partidos?
O Governo teve alguns sucessos que não devem ser desvalorizados. Em primeiro lugar, o Governo demonstrou aquilo que o PS já vinha dizendo na campanha, que o grau de austeridade infligido ao país nos últimos anos foi desproporcionado e conduziu a uma destruição económica e a uma crueldade social que não era necessária. Acho que isso o Governo demonstrou. Aliás, é hoje cada vez mais patente que o grau de austeridade aplicado ao país e à economia portuguesa foi auto-destrutivo da capacidade económica nacional, dificultou o cumprimento de metas, mas isso foi o que o PS sempre disse. O Governo, em larga medida, mostrou que o PS tinha toda a razão. E conseguiu mitigar e reverter cortes sobre esses grupos, que tinham sido vítimas preferenciais de um modelo de austeridade e está a conseguir alcançar os objetivos que definiu para si próprio.
Mantém as desconfianças ou não?
O PS disse: modelo austeritário aplicado ao país é excessivo e contraproducente. E tinha razão nesse ponto. A solução política, boa ou má, já está encontrada. Agora pergunta-me se estamos a fazer tudo o que podíamos pensando no país, no longo prazo, nos nossos filhos? Espero que sim. Desejo ardentemente que sim.
Porque não quis falar disso no último congresso?
Aquele congresso era aclamatório, não servia para nada.
Francisco Assis falou.
Sou muito amigo dele.
Havia espaço para vozes discordantes.
Havia. As vozes discordantes tinham dois minutos geridos de acordo com as inclinações da mesa, para irem lá serem lapidadas no congresso. Há congressos em que é preciso falar e há outros em que não há nada a dizer.
O PS está ser o partido de Mário Soares?
Espero bem que sim. Se não for, já não haverá nada a fazer no PS, terá de mudar de natureza. E nesta fase tormentosa, cheia de desafios, em que está a viver a esquerda democrática, se o PS alienar a sua natureza fundamental, que é ser o partido de Mário Soares, de Almeida Santos, de Salgado Zenha, de Mário de Sottomayor Cardia, de Manuel Alegre, de Jaime Gama. Dos que construíram o PS, o legado do PS no qual as pessoas se reconhecem.
Em 2013 dizia que PS e PSD tinham de se entender. Ainda acredita que isso é possível num futuro próximo?
Acho que têm de ter um relacionamento construtivo. Claro que as condições para isso ficaram muito prejudicadas no processo de génese da “geringonça”. A maneira como se construiu como modelo alternativo criou um ambiente desfavorável a um relacionamento construtivo entre os dois partidos, agora a democracia portuguesa foi construída com base num grande consenso. Foi entre o PS e o PSD. Para o melhor e para o pior foi possível construir uma democracia relativamente próspera, infinitamente mais próspera do que no período anterior ao 25 de Abril, o país moderno em que hoje vivemos foi construído pelo PS e pelo PSD.
Que balanço faz do período anterior ao de António Costa no PS, com José Sócrates? Até foi autor da sua moção em 2004…
A história se encarregará de fazer esse balanço. Foi um período com aspetos mais controversos e outros indiscutivelmente positivos.
O processo judicial em que Sócrates está envolvido mancha a ideia política que tinha dele?
O processo e a controvérsia a que lhe está associada sobre aqueles anos impedem uma discussão séria e equilibrada sobre o balanço desse período. É impossível uma discussão serena sobre esse período, acho que vai ter de ser feita. Podemos falar sobre ela mas é uma discussão condicionada pelo processo em curso e inflama paixões. E este país é o pais das paixões inflamadas. Precisamos é de atirar baldes de água por cima das paixões. E tentar ter um debate racional sobre o país.
Não é um homem de paixões inflamadas também?
Sou um homem de convicções, e também de paixões. A minha atividade consiste em despejar baldes de água sobre as paixões no sentido de me disciplinar porque tenho um feitio sanguíneo. Isso não tem solução. Uma das tragédias do nosso país é que somos muito inflamados, somos dominados pelas paixões.
Tem de se dominar muitas vezes por dia?
Não, por dia não direi. Mas talvez numa regularidade mensal [ri-se]. É preciso dominar as paixões e ter uma discussão racional em que se preserve sempre o essencial de qualquer discussão que é ouvir. Debater é ter a honestidade intelectual de identificar a questão que foi identificada pelo adversário e dar-lhe resposta. Não é sepultá-la em gritarias e insultos.
É o que está a acontecer entre PS e PSD?
Agora tem de haver um esforço entre PS e PSD para moderarem os termos em que o debate está a decorrer, tentar civilizá-lo. Não é preciso civilizar excessivamente, o Parlamento é o espaço que existe onde se racionalizam todas as tensões que existem na sociedade em vez de andarmos todos à paulada na rua. Mas aqui chegámos a um ponto em que só é possível haver melhoras, não é possível descer mais. Lembra-se do debate interminável entre Mário Soares e Álvaro Cunhal? Eles não estavam a debater se é urgente ou não amortizar a dívida. Eles estavam a debater o modelo de sociedade que se ia aplicar a Portugal. Lembra-se da correção e do respeito? “Sotor” para aqui, “sotor” para acolá.
E fumava-se…
Ainda por cima! Veja-se bem! Não tinham mesmo qualidade nenhuma! Não só não se insultavam como fumavam! Era uma outra época. São pessoas que nas casas delas tinham sido educadas que os nossos pontos de vista, mesmo que frontalmente incompatíveis, podem sempre ser expressos de forma a que cada divergência, ao mesmo tempo, afirme o nosso respeito pelo outro. E pelo seu pensamento diferente do nosso.
Vê-se a desistir na política um dia?
Quer dizer… desistir… a minha vida e a política são uma osmose. A minha vida foi dedicada à política. Não é só a política, longe disso, seria uma vida horrivelmente unidimensional e eu, como personagem política, também seria muito menos interessante se a minha vida fosse só a política, porque toda a nossa vida desde que nascemos é um esforço para nos diferenciarmos dos outros. O que torna as pessoas densas e interessantes é não serem unidimensionais. Terem uma vida.
A dada altura quis ser advogado? Fez a admissão à Ordem e chumbou.
Quis ser advogado, é aquilo para que fui treinado e estudei. Até podia ser físico nuclear, mas não tenho estudos. Advogado é a minha profissão natural.
Porque é que chumbou no exame de acesso?
Não quero discutir isso.
Não pensou repetir?
Isso obrigava a fazer considerações que eu não quero fazer. Não quero falar sobre isso.
Se não estivesse na política o que se via a fazer? Arquitetura?
Não sei. Poderia fazer muitas outras coisas. Se não estivesse limitado pela formação que segui… talvez gostasse de escolher outros caminhos. Acho que era o Vasco Pulido Valente que dizia que a vida é um funil, os anos passam e cada vez estamos mais próximos do fundo. No princípio as escolhas são muitas, depois cada vez são mais estreitas e, no fim, lá estamos nós.
Mas não está perto do fim do funil.
Cada vez as nossas escolhas são mais limitadas. E também vamos pagando o preço das escolhas que fizemos no passado. As nossas possibilidades ficam condicionadas pelas escolhas que fizemos demasiado novos.
Sente esse peso das escolhas quando era muito novo?
Estou muitíssimo bem com a minha vida, mas não pensa que seria interessante poder recomeçar com todas as escolhas disponíveis e tentar uma vida radicalmente diferente do que a que escolheu? Eu penso muito mais vezes numa vida radicalmente diferente do que em mudar apenas umas coisinhas aqui e acolá. E se as coisas tivessem sido radicalmente diferentes, desde a escolha da primeira papa na infância?
E se se tivesse inscrito no PCP…
Por acaso nunca tinha pensado nisso! Teria abandonado a política, seguramente. Ou ter-me-ia juntado ao PS. Não teria conseguido ter uma experiência política minimamente satisfatória e com sentido. Mas tudo isto são distopias.
Ficamos por aqui.
Eh pá, estou tão cansado, esta entrevista esgotou-me!