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O que é o livro a que chamamos Bíblia?
A Bíblia não é mais um livro, mas um conjunto de muitos livros, redigidos ao longo de mais de mil anos, em três línguas originais diferentes: hebraico, aramaico e grego.
O nome com que se vulgarizou este conjunto literário, Bíblia, corresponde ao plural duma palavra grega que quer dizer livros, e tomou a forma feminina do singular em latim e nas nossas línguas.
A Bíblia são uns livros considerados santos, por isso se costumam chamar: as Santas Escrituras, a Sagrada Escritura, ou simplesmente a Escritura. De facto a Bíblia é o livro por antonomásia, o livro por excelência. Mesmo quem não lhe reconhece um carácter santo e divino, pode verificar que é o livro mais lido, mais copiado, mais traduzido, mais editado e mais comentado desde tempos antigos até hoje. Gutemberg quis inaugurar o seu extraordinário invento imprimindo como primeiro livro a Bíblia das 42 linhas; Frank Borman, ao chegar pela primeira vez à órbita da Lua, leu para a Terra o início da Bíblia. A Bíblia é verdadeiramente um livro singular!
Por que razão a Bíblia é considerada um livro santo, um livro divino?
A Bíblia é considerada um livro santo não só por falar de Deus e por propor um modo de vida santa, mas sobretudo porque tem Deus como autor e por isso é proclamada como Palavra de Deus.
Mas Deus não escreveu nem ditou nenhum dos seus livros, como se diz do Corão. A Bíblia não é um livro caído do Céu! Como diz o Concílio Vaticano II, “para escrever os livros sagrados, Deus escolheu e serviu-se de homens na posse das suas faculdades e capacidades, para que – agindo Ele neles e por meio deles – pusessem por escrito, como verdadeiros autores, tudo aquilo e só aquilo que Ele quisesse” (DV 11). É o que se chama o mistério da inspiração: Deus ilumina, guia e assiste determinadas pessoas de modo que fique escrito o que Ele quis comunicar em ordem a levar os homens à comunhão com Deus.
E aquilo que Deus quis comunicar como foi que chegou até nós?
A Epístola aos Hebreus di-lo numa síntese introdutória bem expressiva: “Antigamente, Deus falou aos antepassados nos Profetas, aos poucos e de muitos modos; nestes dias, que são os últimos, falou-nos a nós no Filho” (Hb 1,1-2).
Assim, temos por um lado os Profetas inspirados por Deus de quem procedem os escritos redigidos antes de Cristo, os livros do Antigo Testamento. Por outro lado temos o Filho eterno de Deus feito homem, Jesus Cristo, que é a plenitude da Revelação divina; foi Ele quem nos comunicou, com a sua vida e com a sua palavra, o que Deus tinha para dizer à Humanidade. Sucede que isto foi transmitido fielmente pela pregação dos Apóstolos. E esta pregação, em determinado momento, veio a tomar forma escrita por meio deles e de seus próximos colaboradores, sob a inspiração divina, dando origem àquele conjunto de livros que se chama o Novo Testamento.
E quantos e quais são esses livros santos, inspirados por Deus?
Sobre os livros do Novo Testamento hoje não há praticamente discussão: são 27 livros em que se incluem os Quatro Evangelhos, os Actos dos Apóstolos, as 14 Cartas de S. Paulo, as 7 Cartas ditas Católicas e o Apocalipse.
Nas Bíblias católicas há 46 livros do Antigo Testamento; este número corresponde a uma decisão do Concílio de Trento, baseando-se na Tradição apostólica como garantia de segurança.
A Bíblia hebraica contém apenas 39 livros segundo a decisão do sínodo de Yamnia nos fins do século I da era cristã, mas a verdade é que anteriormente os judeus contavam muito mais livros inspirados, até que vieram a prevalecer os critérios desse Sínodo: a antiguidade segundo eles pensavam, a língua hebraica e a Palestina como lugar da composição. Mas a Bíblia grega, que inclui a tradução dos Setenta, admite muito mais livros. Nos primeiros séculos do cristianismo ainda se admitiamm na Igreja como inspirados vários desses livros, até que, a partir do século IV, se chegou a acordo quanto ao número de 46 livros do Antigo Testamento. A Bíblia católica de Vacari (já esgotada nas Edições Paulinas) contém em apêndice mais alguns desses livros chamados apócrifos.
As Bíblias protestantes têm habitualmente apenas os 39 livros, deixando fora 7, os chamados deuterocanónicos (discutidos e só mais tarde reconhecidos por toda a Igreja): Tobias, Judite, Baruc, Sabedoria, Eclesiástico e 1 e 2 Macabeus; os protestantes, se os transcrevem, chamam-nos apócrifos.
Que garantia temos de que a Bíblia que usamos corresponde ao original?
Há uma pergunta anterior a esta que precisa de ser respondida: “Se os manuscritos originais da Bíblia não chegaram até nós, que garantia nos dão as cópias existentes?” A crítica textual se encarrega de escolher o que se considera texto original a partir das cópias que temos e das traduções e citações antigas. As edições críticas apresentam as variantes que se encontram nos diversos manuscritos.
O cuidado que havia em manter inalterável a Palavra de Deus garante que, com o correr dos tempos, não se tenha alterado substancialmente o texto original; assim sendo, as muitas variantes que se verificam nos manuscritos não têm um tal valor que possa alterar o que Deus tem para comunicar na Sagrada Escritura.
Quanto às Bíblias hoje disponíveis, estas são traduções, em geral a partir das línguas originais, e têm a garantia que nos merece a competência e a seriedade dos tradutores. Mas sempre houve a tentação de fazer com que a Bíblia diga o que nós queremos que ela diga, e não faltaram ao longo da história manipulações do texto bíblico da parte de seitas antigas e modernas; por outro lado, a partir do século II, houve mesmo quem começasse a escrever livros atribuídos a nomes de Apóstolos, para fazer valer, por exemplo, a ideologia gnóstica, a par de que também outros redigiram livros para satisfazer a piedade dos crentes. É assim que há muitos livros Apócrifos do Novo Testamento.
Que pensa a Igreja católica sobre a tradução da Bíblia?
A Igreja sempre sentiu a necessidade de se traduzir a Bíblia. O Concílio Vaticano II diz o seguinte: “visto que a palavra de Deus deve estar sempre acessível a todos, a Igreja procura com solicitude maternal que se façam traduções aptas e fiéis nas várias línguas, sobretudo a partir dos textos originais dos livros sagrados” e também admite que os fiéis possam vir a usar versões ecuménicas (DV 22).
Todos os livros do Antigo Testamento escritos em hebraico foram traduzidos em Alexandria para a língua grega a partir do século III a. C; é a chamada versão dos Setenta, a Bíblia Septuaginta, inicialmente bem recebida até por judeus da Palestina. Esta Bíblia grega é a que quase sempre é citada no Novo Testamento e também foi o texto usado na Igreja antiga e ainda hoje no Oriente.
Nos primeiros séculos do cristianismo ainda se admitem como inspirados vários livros do Antigo Testamento como aparecem na Septuaginta, até que, a partir do século IV, se chegou a acordo quanto ao número de 46 livros do Antigo Testamento (Trento conta 45, pois junta num só Jeremias e Lamentações). A Bíblia católica de Vacari (já esgotada nas Edições Paulinas) contém em apêndice mais alguns desses livros chamados apócrifos.
Ao difundir-se o cristianismo no mundo romanizado, logo no século II se tratou de fazer traduções para o latim, e temos a Bíblia Vetus Latina, que foi feita a partir do grego disponível.
No século IV S. Jerónimo traduziu o Antigo Testamento a partir do hebraico; é a Bíblia Vulgata, que teve dificuldade de se impor (os Salmos a partir do hebraico nunca entraram na Vulgata!), mas acabou por ser declarada a tradução oficial da Igreja Católica no Concílio de Trento como a melhor tradução, dotada de autenticidade jurídica (doutrinal), dando a indicação para se melhorarem as suas edições, o que se veio a fazer até ao século XX.
Em 1978 foi publicada a Nova Vulgata, como tradução latina oficial da Igreja, para servir de base às traduções litúrgicas; esta é a Vulgata melhorada a partir do estudo dos manuscritos das línguas originais, tendo em conta as conclusões da crítica textual.
Também começou a haver traduções oficiais para as línguas modernas, na Itália, em França, no Brasil… Em 2008 foi publicada a tradução oficial espanhola mas ainda não entrou na Liturgia. Em Portugal estamos a preparar a tradução oficial portuguesa, cuidando de que os tradutores da edição da Difusora Bíblica em 1998 não coincidam nos mesmos livros que então traduziram.
Há uma tradução oficial da Igreja que os católicos sejam obrigados a ler?
Mesmo quando haja uma tradução oficial, isso não é para a Igreja obrigar a que tenha de ser a Bíblia a ser lida pelos católicos, mas é a Bíblia para ser a usada na Liturgia e na Catequese.
Mas isto não quer dizer um católico não tenha de ter em conta a edição da Bíblia que vai escolher para uma leitura proveitosa para a vida de fé. É assim que o Concílio faz uma oportuna advertência, para “o recto uso dos livros divinos”: “e isto por meio de traduções dos textos sagrados, que devem ser acompanhadas das explicações necessárias e verdadeiramente suficientes, para que os filhos da Igreja se familiarizem dum modo seguro e útil com a Sagrada Escritura, e se penetrem do seu espírito” (DV 25)
À hora tanto da tradução como da leitura e interpretação, não é possível abordar o texto bíblico sem uma determinada pré-compreensão. Ora a pré-compreensão baseada nas certezas da fé constitui uma ajuda que falta necessariamente ao não crente, pois este se situa perante um texto que lhe é alheio e não lhe são suficientes os recursos linguísticos, literários e históricos para captar a profundeza da verdade que Deus quis comunicar através dos autores inspirados.
Alguns exemplos deste ficar aquém na tradução da Bíblia:
- Traduzir a primeira bem-aventurança por “bem-aventurados os mendigos” em vez de “bem-aventurados os pobres” pode ser considerada uma tradução literalmente falando correcta, mas não corresponde ao sentido, pois a referida felicidade não está na situação social de mendigo, mas na situação moral de quem vive o desprendimento dos bens terrenos.
- Traduzir amartía por “erro” é possível, mas há contextos em que não se trata de um simples erro humano, mas de uma transgressão da Lei de Deus, o que corresponde à noção de “pecado”, assim em Mt 5,29, etc. Quem não crê em Deus tem dificuldade em falar de pecado.
- Se não se crê no mistério da Santíssima Trindade, não é de estranhar que se escreva Espírito Santo com letra minúscula.
- Se não se crê na perpétua virgindade da Virgem Maria não há razão para deixar de traduzir Lc 2,7: “deu à luz o primeiro filho” em vez de “deu à luz o filho primogénito” (é que também se podia dizer primogénito de um filho único, dado os direitos e deveres de que este então gozava).
- Também não basta a um tradutor que seja um especialista no Grego dos clássicos e dos aticistas, pois terá que conhecer as características do Grego helenístico e bíblico. Esta falta de conhecimento tem contribuído para que mesmo biblistas católicos coincidam com não crentes na tradução de Lc 2,2: “Este recenseamento foi o primeiro que se fez sendo Quirino governador da Síria”; ora como se sabe que o recenseamento foi feito por volta do ano 6 da era cristã, concluem então que este dado de Lucas colide consabidamente com a realidade histórica. Mas a verdade é que esta passagem é bem traduzida de uma outra maneira (como sucede em escritos helenísticos): “Este recenseamento foi anterior ao que foi feito sendo Quirino governador da Síria”; e é assim que traduz a Bíblia catalã: “Aquest cens va ser anterior al que es féu quan Quirini era governador de Síria”. Bem observava Ratzinger/Bento XVI que a negação do valor histórico dos Evangelhos da Infância nos últimos tempos “não se baseia em novos conhecimentos históricos, mas numa atitude diversa frente à Sagrada Escritura e à mensagem cristã no seu todo”.
Em suma, um católico à hora de escolher uma Bíblia para uma leitura proveitosa, não se deixará levar pela mera curiosidade, mas terá em conta o que lembrava a Exortação Apostólica Pós-Sinodal de Bento XVI: “a Sagrada Escritura deve ser proclamada, escutada, lida, acolhida e vivida como Palavra de Deus, no sulco da Tradição Apostólica de que é inseparável” (Verbum Domini, 7).
Geraldo Morujão é padre, professor emérito do ISTV e Vice-Presidente da Associação Bíblica Portuguesa