Quando teve os primeiros sinais de criptosporidiose (uma infeção que causa diarreias graves), em 1974, José vivia em Londres, no Reino Unido, depois de alguns anos passados na Guiné Bissau, onde teve um restaurante. Da história do português conhece-se muito pouco, mas terá sido infetado naquele país africano e acabou por morrer, já em Portugal, em 1978. Os primeiros casos de sida só seriam oficialmente registados já depois, em 1981, e a doença só seria atribuída a uma infeção com VIH (vírus da imunodeficiência humana) em 1985. Assim, sem saber, José tornava-se a primeira vítima portuguesa conhecida e o primeiro registo de uma infeção com VIH-2 (uma estirpe do vírus comum na África ocidental).
Nos 40 anos que passaram, estima-se que tenham morrido mais de 35 milhões de pessoas em todo o mundo por causa da doença. Pelo caminho, foram melhoradas as estratégias para prevenir as infeções e a educação das populações, criaram-se testes cada vez mais rápidos e fiáveis na deteção do vírus, desenvolveram-se medicamentos que permitem às pessoas viver com a infeção como se uma doença crónica se tratasse. Só ainda ninguém conseguiu encontrar uma vacina eficaz. E não foi por falta de tentativas.
Há 20 anos, em maio, foi criado do Dia de Consciencialização para a Vacina do VIH (“HIV Vaccine Awareness Day”). A ideia foi motivada por um discurso do então Presidente Bill Clinton: “Já não é uma questão de conseguirmos desenvolver uma vacina para a sida, é simplesmente uma questão de quando. E nunca será cedo demais”. Mas a investigação tem sofrido avanços e recuos e só agora parece estar finalmente a seguir o caminho certo.
No últimos anos, são cada vez mais frequentes as notícias sobre avanços e recuos, resultados promissores ou novas tentativas. Afinal, quando teremos uma vacina contra o VIH? “Nos próximos 48 meses teremos uma resposta nesse sentido”, responde, sem hesitar, Rui Soares, que faz investigação com o VIH na Faculdade de Medicina na Universidade de Coimbra. Há ensaios clínicos (em humanos) de fase I que já têm resultados, os de fase II estão prestes a ser divulgados e a pressão será enorme para que se possa chegar aos ensaios de fase III (para perceber se os resultados positivos são mesmo relevantes).
Rui Soares admite, no entanto, que é difícil prever o tempo que podem demorar os ensaios clínicos de fase II (para demonstrar que um determinado tratamento é eficaz) — semanas, meses ou anos —, especialmente no caso do VIH porque é um vírus muito complexo. Além disso, as pessoas reagem à infeção de formas muito diferentes, o que implica que tenham de ser testados vários grupos: pessoas que já têm a infeção; grupos de risco (como toxicodependentes, prostitutas e homossexuais); e quem não está infetado, nem pertence a nenhum grupo de risco.
O primeiro ensaio clínico foi em 2009 e desde aí pouco mais
Até ao momento, houve vacinas que mostraram bons resultados nos ensaios pré-clínicos (com animais) e que até chegaram aos ensaios clínicos de fase I, mas que não foram além disso, explica o médico do Instituto Português de Oncologia de Coimbra. É que, nestas experiências, não só se testa a segurança da vacina (ou dos fármacos ou tratamentos), como se obtêm as primeiras referências de eficácia. Se a vacina for segura, mas não se mostrar útil na função a que se destina, o trabalho é interrompido.
Em parte foi o que aconteceu com um ensaio clínico na Tailândia. O estudo experimental foi bem conduzido e contou com mais de 16 mil voluntários, mas os resultados ficaram aquém do esperado. As vacinas mostraram uma diminuição moderada do risco de uma determinada população ser infetada com o VIH — menos 31% —, mas não contribuíram para a redução da quantidade de vírus no sangue, nem para o aumento do número das células do sistema imunitário que são atacadas pelo vírus (os linfócitos T CD4). “Apesar de os resultados mostrarem apenas um benefício modesto, oferecem um conhecimento profundo para investigação futura”, escreveram os autores no artigo publicado na revista científica The New England Journal of Medicine.
Na discussão dos resultados, os investigadores levantaram questões que têm preocupado outros cientistas: a eficácia da vacina pode ir diminuindo ao longo do tempo — e, ao fim de um ano, já não ter a mesma relevância — e o poder da vacina pode ser maior nas pessoas que têm menor risco de serem infetadas. Um ensaio anterior encontrou outro tipo de dificuldades e teve de ser interrompido: os voluntários homossexuais tinham mais comportamentos de risco só porque tinham sido vacinados no contexto da experiência.
Tal como a equipa do Ministério de Saúde Pública da Tailândia previu, este ensaio forneceu conhecimento importante e abriu portas a outros que se seguiram. Mas poucos. Até ao momento, só cinco ensaios clínicos foram feitos com humanos e nenhum deles deu origem a uma vacina. Aliás, os melhores resultados foram mesmo os do ensaio de 2009 na Tailândia.
A ideia, ainda assim, não ficou perdida: a vacina foi melhorada e está em ensaios clínicos para subtipo do vírus que é mais prevalente no sul de África. O ensaio Uhambo começou em 2016 e é patrocinado pelo Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas dos Estados Unidos.
Outro dos ensaios clínicos em curso — Imbokodo — tem uma perspetiva bem mais abrangente: usa um “mosaico” de componentes capazes de despertar o sistema imunitário. Este “mosaico” tem elementos de uma grande variedade de estirpes do vírus existentes em todo o mundo e a ideia é que se torne uma vacina universal ou próximo disso. O ensaio que pretende testar a segurança e eficácia, foi lançado em 2017, e é patrocinado pela Janssen Vaccines.
Já em julho deste ano, a Janssen Vaccines tinha publicado os resultados de um ensaio clínico com uma vacina “mosaico” na revista científica The Lancet. As conclusões desta primeira fase é que que a vacina é segura e bem tolerada. Mais, a vacina conseguiu desencadear uma resposta imunitária equivalente nos humanos (através de testes de sangue) e em macacos rhesus (infetados com o vírus depois da vacina). Neste momento, e para esta vacina, está em curso um ensaio de fase II na África sub-sariana. Espera-se que saiam resultados desta experiência nos próximos meses.
Um outro trabalho de investigação, publicado na Nature Medicine em junho, focava-se numa região específica do vírus que tem o potencial para ser atacada pelos anticorpos produzidos pelos sistema imunitário. Estes anticorpos mostraram ser capazes de atacar 31% das 208 estirpes de VIH existentes no mundo. Por enquanto, os resultados são só pré-clínicos, mas os investigadores querem levá-los para ensaios clínicos com humanos na segunda metade do próximo ano.
Como funcionaria este tipo de vacinas?
Uma vacina contra o VIH, à semelhança das vacinas contra a gripe ou contra o sarampo, pretende despertar o sistema imunitário: apresenta-lhe o causador da doença (agente patogénico); o organismo responde produzindo anticorpos e células imunitárias; o invasor é eliminado e o sistema imunitário guarda a mensagem para poder reagir rapidamente no caso de ataques futuros.
Em muitos casos, é o próprio vírus (ou bactéria), morto ou inativado, que é usado na produção da vacina. No caso do VIH, isso seria impossível. O vírus é demasiado complexo para que o sistema imunitário o possa reconhecer como um todo, por isso os investigadores têm trabalhado para encontrar regiões do vírus que possam ser mais facilmente identificadas pelos anticorpos e células de defesa. “Há mais de 10 anos que os grupos de investigação andam à procura de regiões do vírus que sejam sensíveis ao nosso sistema imunitário”, diz Rui Soares.
Uma vez identificada a região (ou as regiões) mais sensíveis do vírus, replica-se essa porção em laboratório. É como ter um texto escrito vezes sem conta com a mesma frase. Assim, o sistema imunitário só tem de reconhecer essa pequena porção e montar um exército contra ela. Quando a pessoa for infetada com o VIH, esse pequeno exército está preparado para reconhecer a tal frase num texto maior (que é o próprio vírus).
O problema é que, até agora, as regiões que os investigadores tinham identificado como potenciais alvos para o sistema imunitário não eram as frases mais importantes do texto. Ou seja, mesmo quando as células imunitárias conseguiam atacar essa região, o vírus arranjava maneira de sobreviver ao ataque. “Na luta entre o vírus e o sistema imunitário, o vírus ganhava sempre”, diz o médico.
Uma grande diferença em relação a outras vacinas é que teria de ser administrada com regularidade — como uma ou duas vezes por ano — para manter o sistema imunitário informado do que deve procurar para atacar. Uma espécie de lembrete para o sistema imunitário.
Com que objetivo será usada?
Há dois grupos de pessoas que podem beneficiar do uso da vacina contra o VIH: aqueles que ainda não estão infetados — mas que correm o risco de vir a ser — e aqueles que já têm a infeção (são seropositivos). A importância neste segundo caso é que vai retardar a evolução da doença, ou seja, vai atrasar a passagem do estado de infeção para o estado em que a sida já se estabeleceu. O que não impede que, no futuro, não venha a ter um uso mais alargado e a ser incluída nos planos de vacinação, por exemplo.
Rui Soares dá o exemplo da vacina contra o HPV (vírus do papiloma humano), um vírus que pode causar cancro do colo do útero. “Há uns anos, se calhar, ninguém pensava que esta vacina ia estar no Plano Nacional de Vacinação [PNV].” A vacina é recomendada para meninas entre os 10 e os 13 anos, fazendo parte do PNV desde 2008. A extensão da vacinação contra HPV os meninos foi aprovada pelo Parlamento na votação do Orçamento do Estado 2019.
Quando uma pessoa é infetada com VIH, o vírus vai atacar as células do sistema imunitário, mas não o destrói imediatamente. A resposta imune, que varia de pessoa para pessoa, vai controlar com que rapidez o vírus se estabelece e, também, se o organismo é capaz de evitar o desenvolvimento da doença.
Uma pessoa mantém-se no estado de infeção — é seropositivo — quando a quantidade de células do sistema imunitário que são atacadas pelo VIH (linfócitos T CDA) ainda não é demasiado baixa (entre 500 a 1.200 células por mililitro) e a quantidade de vírus no sangue ainda não é demasiado alta (menos que 100 mil cópias do vírus por mililitro). Quando o número de linfócitos T CD4 é menor que 350 células por mililitro, é recomendável iniciar o tratamento com antirretrovirais (que combatem o vírus) e quando baixar das 200 células por mililitro o risco de desenvolver a doença (sida) é muito alto.
Com uma contagem de linfócitos muito baixa e uma carga viral muito alta, criam-se as condições para surgir a doença. Não existem sintomas específicos da sida, mas há uma características comum a todos os doentes: a fragilidade do sistema imunitário. E é isto que vai fazer com que estes doentes estejam mais suscetíveis a infeções por bactérias, como a da tuberculose, por vírus, como o que provoca o sarcoma de Kaposi, ou por fungos, tanto orais como genitais.
Porque é que ainda não temos uma vacina?
Há muitas razões para ainda não se ter encontrado uma vacina eficaz contra o VIH, entre elas o facto de o vírus ser bastante complexo e a resposta do sistema imunitário ainda não ser bem conhecida. Ainda não foi possível perceber, por exemplo, porque é que há pessoas que são progressores lentos e outras progressores rápidos, ou seja, umas demoram muito tempo a desenvolver a doença e noutras isso acontece muito rápido. E nem sequer se pode suspeitar que sejam fragilidades inerentes na defesa do organismo, porque uma pessoa aparentemente saudável pode mostrar-se um progressor rápido.
O vírus tem um código genético complexo, que encerra as instruções para uma bateria de proteínas com todas as funções que lhe permitem ser tão bem sucedido, como a capacidade de entrar e sair dos núcleos das células que infeta ou o sucesso a enfrentar o sistema imunitário da pessoa infetada. Conhecer estas proteínas e as respetivas funções foi a chave para se chegar aos medicamentos que hoje em dia se usam para controlar a infeção, os antirretrovirais. Os fármacos foram desenvolvidos para atacarem proteínas com papéis relevantes na multiplicação do vírus. Com menos vírus em circulação no sangue, poderá haver mais linfócitos T CD4 a participar na defesa do corpo.
Tendo em conta que a estratégia com as proteínas tinha sido tão bem sucedida, os investigadores continuaram a aplicá-la para chegar a uma vacina, mas os resultados estavam longe de chegar a bom porto. Apesar de o sistema imunitário até ser capaz de atacar algumas dessas funções, o vírus tem mecanismos alternativos para continuar a funcionar — escapando, assim, às células imunitárias. O vírus é tão hábil que, mesmo depois da infeção, o sistema imunitário só é capaz de o detetar ao fim de quatro semanas ou mais, por causa de um mecanismo que permite ao VIH “desligar” as células imunitárias e atrasar a resposta.
Os investigadores perceberam, então, que tinham de procurar fragilidades no vírus, regiões em fosse mais sensível ao ataque do sistema imunitário. Foram encontradas algumas dessas regiões, mas que se revelaram não serem os alvos ideais. As novas estratégias passam por usar medicina nuclear (que usa radiação como meio de diagnóstico) e nanopartículas para descobrir pormenores cada vez mais pequenos e escondidos. E foi assim que se chegou às regiões que agora estão em ensaios clínicos.
Se algum deles conduzir, de facto a uma vacina, também não é certo que ela chegue às pessoas que mais precisam dela, como muitas populações africanas — quase metade das pessoas infetadas vivem na África sub-sariana. “Vai depender dos interesses económicos”, diz Rui Soares. Os países em África, por exemplo, recebem aquilo que os outros lhes querem dar, o que não significa necessariamente que são os melhores tratamentos para os doentes, explica o médico. “Um médico pode ter um doente que precise de uma combinação do medicamento A com o medicamento B, mas, se só tiver recebido o A e o C, é isso que vai usar.”
Será possível encontrar uma cura?
“Tendo em conta o tipo de vírus, a cura é difícil”, diz Rui Soares. O vírus não se esconde apenas dentro das células do sistema imunitário, os linfócitos T CD4. Há também partículas do vírus que se alojam nos macrófagos, os varredores de lixo do organismo que vão “comendo” todos os elementos estranhos. E estes macrófagos estão por todo o corpo. As partículas do vírus perpetuam-se porque sempre que estas células contaminadas se multiplicam, as partículas também são replicadas. Virtualmente, para sempre. E, a qualquer momento, essas partículas virais conseguem reativar o vírus.
Isso justifica o insucesso dos transplantes de medula para tratar a doença. Mesmo nas experiências em que os indivíduos fizeram quimioterapia para matar as células dos sistema imunitário e depois receberam um transplante de células da medula (células estaminais que vão originar as células do sangue e do sistema imunitário), não foi possível eliminar o vírus. Provavelmente porque essas pessoas já teriam um reservatório das tais partículas nos macrófagos.
Até ao momento, apenas uma pessoa se curou do VIH. Timothy Brown conseguiu eliminar a presença do vírus do organismo e há 11 anos que não faz tratamentos antirretrovirais, mas quase morreu duas vezes no processo, como contou ao Observador. Este doente teve duas vezes leucemia, fez quimioterapias agressivas e recebeu um transplante de medula óssea. Mas não foi um transplante qualquer: o dador uma mutação numa proteína chamada CCR5, que o protegia — era como se a porta de entrada nas células do sistema imunitário (linfócitos T CD4) estivesse bloqueada.
Há outros seropositivos que receberam transplantes de medula com o objetivo de curar a infeção com VIH, mas não se pode falar de um resultado equivalente. Em alguns doentes, a infeção voltou ao fim de algum tempo. Noutros, o vírus encontra-se indetetável, mas os doentes continuam a tomar medicamentos antirretrovirais (como aqui e aqui) e não se sabe o que pode acontecer se o tratamento for interrompido. Até porque, ao contrário de Timothy Brown, os dadores tinham uma proteína CCR5 normal.