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O Governo acolheu o reparo de Marcelo Rebelo de Sousa e aprovou em Conselho de Ministros o envio para o Parlamento de uma proposta de lei que, em suma, limita as reinscrições na Caixa Geral de Aposentações (CGA). A questão já remonta a 2006, já foi alvo de centenas de processos judiciais, uma circular da CGA e uma suspensão do anterior Executivo e foi agora retomada pelo atual Governo. Mas a solução encontrada não agradou aos sindicatos e nem Marcelo Rebelo de Sousa gostou do método escolhido (embora não tenha apontado problemas ao conteúdo).

Tendo em conta a “sensibilidade jurídica” e a necessidade de haver um “consenso” entre os partidos, o Presidente da República devolveu ao Governo o diploma. O polémico limite às reinscrições terá agora de passar pelo Parlamento para que Marcelo lhe dê luz verde. Até lá, os sindicatos vão tentar sensibilizar os partidos para que revertam o sentido do decreto-lei e permitam que a CGA continue a aceitar os funcionários públicos que, já tendo descontado para aquele sistema de proteção, a ele perderam direito.

Marcelo devolve ao Governo diploma que limita reinscrição na Caixa Geral de Aposentações

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Que diploma é este que não agradou a Marcelo?

A 11 de julho deste ano, o Conselho de Ministros aprovou um diploma “interpretativo” que esclarece que o reingresso na Caixa Geral de Aposentações (CGA) só é possível aos funcionários públicos que, tendo perdido acesso ao sistema após 2006, estiveram sempre em “continuidade material” no Estado. Quem teve interrupções temporais de vínculo laboral no setor público, por algum motivo, ao qual muitas vezes foi alheio, perde o direito a voltar à CGA.

A questão coloca-se porque, a partir de 2006, a CGA se fechou a novas inscrições. Os funcionários públicos que, a partir daí, iniciaram funções passaram a estar inscritos na Segurança Social, uma das medidas tomadas para assegurar a convergência entre os dois regimes. Mas Mário Nogueira, líder da Fenprof, explica ao Observador que a interpretação então seguida pela CGA daquela lei fez com que muitos trabalhadores que antes de 2006 descontavam para aquele sistema de proteção a ele perdessem direito após essa data por terem tido uma interrupção no vínculo laboral com o Estado (por exemplo, por terem mudado de serviço e ficado uns dias, semanas ou meses sem um contrato em vigor).

Funcionários públicos que perderam direito à CGA vão poder reinscrever-se desde que se tenham mantido no Estado

Há casos em vários setores, mas um setor mais preponderante é o da Educação. Muitos destes casos são de professores contratados cujos contratos costumam chegar ao fim a 31 de agosto de cada ano. “Ou porque houve atrasos da parte do Ministério, ou porque em determinado ano houve menos horários vagos”, o novo contrato, para o ano letivo seguinte, só foi firmado dias, semanas ou meses depois. Resultado: professores que antes descontavam para a CGA, quando fizeram um novo contrato após 1 de janeiro de 2006, foram inscritos na Segurança Social.

A lei que procedeu ao fecho da CGA a novas inscrições determina que seja inscrito na Segurança Social “o pessoal que inicie funções a partir de 1 de Janeiro de 2006”. “Mas estes trabalhadores já tinham iniciado funções antes. Portanto, já eram subscritores da CGA, só deixaram de descontar no período em que não receberam salário, claro. Mas logo que passaram a receber salário deveriam ter mantido a sua qualidade de subscritores”, defende.

Os professores e o sindicato, apercebendo-se desta realidade, começaram a avançar para tribunal exigindo a reinscrição. Os processos em tribunal, explica, começaram só por volta de 2012 ou 2013. “Foi quando as pessoas se aperceberam que já não estavam na CGA. A pessoa não se apercebia logo. Só no momento em que estava doente é que se apercebia. Se não estivessem doentes muita gente nem notava”, explica. As regras do subsídio de doença são mais favoráveis na CGA.

Segundo Mário Nogueira, as decisões dos tribunais entretanto conhecidas têm sido todas favoráveis à reintegração. “Tanto que inicialmente, através da CGA, o governo ainda contestou apresentando recurso, mas perdeu todos os recursos.”

O que levou o Governo a legislar agora sobre o tema?

Perante essas sentenças favoráveis aos trabalhadores, em julho do ano passado, a CGA emitiu uma circular em que admitia a reinscrição aos trabalhadores que tinham sido subscritores antes de 1 de janeiro de 2006 e que voltaram ao Estado após essa data, mesmo que houvesse interrupções temporais entre os períodos de trabalho.

Essa circular levou a uma onda de reinscrições, conta Mário Nogueira (a onda podia ter sido maior, não fosse o período de férias escolares). Perante o volume de reinscrições, em novembro do mesmo ano, o governo de António Costa suspendeu a circular alegando que era preciso avaliar os seus efeitos.

O assunto foi agora retomado pelo Governo de Luís Montenegro, mas o diploma aprovado em Conselho de Ministros — que o ministro António Leitão Amaro disse ter sido precedido de uma consulta e um diálogo com os grupos parlamentares, com o Governo convencido de que haverá “um largo apoio parlamentar a esta solução” — foi visto como um travão às reinscrições, ao estabelecer que só pode reinscrever-se quem esteve em “continuidade” na função pública. Ou seja, quem, por algum motivo, tem uma interrupção temporal fica excluído.

Mário Nogueira diz que essa proposta, se for aprovada, excluirá da CGA a grande maioria dos casos que estão em análise. “Das primeiras 400 ações que foram deferidas pelos Tribunais, só 8 eram de professores sem descontinuidade”, recorda.

Segundo dados já divulgados pelo Ministério da Segurança Social, até 29 de abril de 2024, foram reinscritos na CGA 11.669 ex-subscritores — 9.216 docentes e 2.453 não docentes. Alguns destes foram reinscritos na sequência de processos judiciais, outros (a maior parte) naquela janela temporal de meses em que vigorou a circular da CGA.

José Abraão, líder da Federação de Sindicatos da Administração Pública (Fesap), diz ao Observador que nos mais de 11 mil que se reinscreveram “há de tudo” — “há quem teve continuidade e quem teve descontinuidade” do vínculo.

Quando anunciou a aprovação em Conselho de Ministros, o ministro da Presidência, António Leitão Amaro, disse que a intenção foi reconhecer “a justiça” de os trabalhadores não perderem o direito à CGA “porque sempre quiseram estar no Estado com este regime de proteção”. Mas não mencionou que a decisão excluiria muitos casos de trabalhadores que, por motivos que lhe foram alheios, não se mantiveram em “continuidade material”.

No comunicado divulgado após o Conselho de Ministros, o Executivo indicou que aprovou um decreto-lei que, “em linha com  decisão do Supremo Tribunal Administrativo, clarifica a interpretação da lei” que enquadrou a convergência para a Segurança Social dos funcionários públicos inscritos após janeiro de 2006, “garantindo o direito de reinscrição aos trabalhadores que tenham continuidade temporal no exercício de funções públicas”.

O que diz o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo em que o Governo baseia a decisão?

O acórdão do Supremo Tribunal Administrativo diz respeito ao processo interposto por um trabalhador que mudou de empregador público e perdeu acesso à CGA. A decisão do Supremo vai no sentido de reconhecer que esse trabalhador deve manter-se naquele regime de proteção dado que se limitou “a transitar de uma entidade administrativa para outra sem qualquer descontinuidade temporal”. “Se o Associado do Recorrente (professor do ensino superior politécnico) rescinde o contrato administrativo de provimento que o liga a uma instituição de ensino e celebra com outra instituição novo contrato, com efeitos a partir do dia seguinte, embora em termos formais haja descontinuidade do vínculo jurídico, não havendo descontinuidade temporal” não deve transitar para a Segurança Social, entende o Tribunal.

Mário Nogueira critica que o Governo esteja a fazer uma interpretação restritiva do acórdão, além de ignorar outros acórdãos que se debruçam sobre trabalhadores em descontinuidade. “A decisão dá razão a um professor que não tem descontinuidade, mas não diz que, se ele tivesse tido interrupções [no vínculo público], já não teria direito. O Governo esquece-se de falar de todos os casos do Supremo que têm interrupções e em que também foi dada razão ao professor”, refere.  Na sua visão, a lei já é suficientemente clara. “O que o Governo quer não é clarificar a lei, é travar as decisões dos tribunais”, critica.

A Fenprof reuniu-se a 17 de julho com a Presidência da República para apelar, “senão ao veto, pelo menos à requisição de fiscalização preventiva de constitucionalidade do diploma”. Segundo Mário Nogueira defendeu então, o diploma tem a intenção de “travar as decisões dos tribunais” e causa “desigualdades” entre quem pôde reinscrever-se e quem ainda não teve esse direito, mesmo estando ambos os casos em pé de igualdade.

De acordo com dados divulgados em julho pela Frente Comum, da CGTP, entre janeiro de 2022 e abril de 2024, foram intentadas, pelo menos, 460 ações judiciais, com 741 trabalhadores como autores, dos quais 196 processos já têm decisões transitadas em julgado obrigando à reinscrição de 267 trabalhadores na CGA. Os restantes 264 processos respeitantes a 474 trabalhadores estavam ainda em curso.

Os novos funcionários públicos também podem aceder à CGA?

Não. Quem começou a trabalhar após 1 de janeiro de 2006 já está inscrito na Segurança Social. A questão da reinscrição aplica-se apenas a quem começou a trabalhar antes dessa data e tenha descontado para a CGA no passado.

Que dúvidas tem o Presidente da República?

Em meados de agosto, Marcelo Rebelo de Sousa já tinha reconhecido que tinha “dúvidas” sobre o diploma. Disse-o em declarações à CNN a partir de Monte Gordo, onde estava de férias. Essas dúvidas acabaram por adiar a apreciação do diploma.

Marcelo tem “dúvidas” sobre diploma do Governo que limita reinscrições na Caixa Geral de Aposentações

Agora, no anúncio do site da Presidência em que devolve sem promulgação o diploma ao Governo, justifica a decisão com a necessidade de haver consenso parlamentar. Marcelo chama a atenção para a “sensibilidade jurídica, política e social da matéria”, além da “existência de jurisprudência de conteúdo contraditório ao mais alto nível da Jurisdição Administrativa” (no Supremo Tribunal Administrativo). Além disso, sublinha que o diploma que se “pretende interpretar” é uma lei da Assembleia da República.

O Presidente pede, por isso, que o diploma “seja convertido em proposta de lei ou proposta de lei de autorização legislativa, assim permitindo conferir legitimidade política acrescida ao tema que dividiu o topo da jurisdição administrativa e merece solução incontroversa”.

O Governo aceitou o reparo?

Sim. Em comunicado, o Ministério da Presidência informou, na altura do ‘reparo’ de Marcelo, que o Executivo iria aprovar, “na próxima reunião do Conselho de Ministros, uma proposta de diploma legal, com conteúdo equivalente, que enviará à Assembleia da República”. No Conselho de Ministros desta quinta-feira, o Governo acabou por aprovar uma proposta de lei para que seja enviada para o Parlamento.

O ministro António Leitão Amaro garantiu que o Governo não fez alterações ao texto que já tinha aprovado.

E entretanto o que acontece aos processos em curso?

Não havendo ainda uma nova lei aprovada, os processos correm os trâmites normais, sem o limite que o Executivo quer estabelecer.

O que vão os sindicatos fazer?

A Fenprof e a Fesap vão tentar apelar aos partidos políticos para que revertam o sentido da proposta do governo.

Mário Nogueira diz que a Fenprof tem marcada uma audição com a comissão de Administração Pública, no Parlamento. A Fenprof também vai enviar a todos os grupos parlamentares um memorando. Se a ideia do Executivo avançar, garante que irá avançar para tribunal “até chegar ao Tribunal Constitucional”.

José Abraão, da Fesap, também diz que levará a questão aos partidos e critica a solução do Governo. “O Governo faz o que é mais fácil: altera a lei, não negoceia com ninguém e determina que só pode reinscrever-se quem não teve nenhum período de interregno. Os próprios serviços começam a travar as reinscrições”.

A Fesap diz que levou a questão ao Governo várias vezes, incluindo ao novo Executivo (em particular, ao secretário de Estado do Trabalho), para que clarificasse o que pretende fazer. A resposta foi que “iria estudar”. As duas estruturas sindicais garantem que o Governo não lhes apresentou a solução aprovada em julho.

“Esperamos, sinceramente, que os partidos da oposição criem as condições para que os que não tiverem oportunidade de se reinscrever se reinscrevam e que se mantenha o princípio nos termos exatos das decisões dos tribunais”, afirma. Em causa, diz, está o “princípio da equidade e igualdade”. José Abraão também quer que se clarifique o que acontecerá aos trabalhadores que se reinscreveram entretanto: se mantêm o direito à CGA.

Porque preferem os trabalhadores a CGA à Segurança Social?

Um dos fatores em que a CGA tem vantagem é no subsídio de doença. Neste sistema de proteção social, durante os três primeiros dias não há lugar ao pagamento de salário, mas a partir do quarto e até ao 30.º dia é devido o pagamento de 90% da remuneração. No caso da Segurança Social, o subsídio é atribuído apenas a partir do quarto dia (nos primeiros três dias também não recebe nada) e corresponde a 55% da remuneração de referência até ao 30.º dia.

Mas há outros casos em que a Segurança Social é mais vantajosa do que a CGA. A Provedoria de Justiça também tem criticado o que considera serem “diferenças infundadas” entre os dois regimes. Voltou a fazê-lo no relatório anual enviado à Assembleia da República em julho, relativo a 2023, em que elenca uma série de divergências que não considera justificáveis.

Por exemplo, no complemento por dependência, que é pago a quem precisa de ajuda de terceiros para garantir as suas necessidades básicas, como higiene ou alimentação. Na Segurança social, a prestação é atribuída “a pensionistas em geral e titulares da prestação social de inclusão, dependendo apenas da certificação da situação de dependência do beneficiário e do respetivo grau”. Já na CGA abrange “tão-somente, os beneficiários que reúnam as condições do regime especial de proteção social na invalidez, pelo que só se aplica às situações de dependência resultantes de determinadas patologias”.

Também há diferenças no que toca à antecipação da idade de acesso à pensão de velhice após desemprego de longa duração: a CGA “simplesmente não contempla tal possibilidade”, pelo que os desempregados de longa duração não podem beneficiar do regime de antecipação e ficam sujeitos às regras gerais de aposentação, ao contrário da Segurança Social. Note-se, porém, que os funcionários públicos estão muito mais blindados contra o despedimento do que os trabalhadores do setor privado.

A provedora de Justiça diz que também há diferenças no cálculo das taxas de bonificação (incentivos a quem continua a trabalhar além da idade legal) e de penalização (aposentação antes da idade legal) das pensões. A diferença prende-se com a chamada “idade pessoal” de acesso à pensão, aplicável em função do tempo de trabalho, com a CGA e o Centro Nacional de Pensões a adotarem “diferentes formas de apurar a idade pessoal de acesso à pensão de velhice, pelo que pode suceder que as taxas variem significativamente, com efeitos relevantes no montante final da pensão”.

Além disso, há diferenças nas medidas de flexibilização de acesso à reforma, em que, “ao contrário do que sucede no regime geral de segurança social”, releva apenas o “serviço efetivo prestado pelo interessado e já não toda a carreira contributiva, a qual pode incluir períodos de registos por equivalência (por exemplo, situações de desemprego) ou tempo de trabalho que, em função das condições em que foi prestado, beneficia de uma percentagem de bonificação”.

Como está a situação financeira da CGA?

A Caixa Geral de Aposentações (CGA) passou de um défice de 196 milhões de euros em 2022 para um excedente superior a 2,7 mil milhões em 2023, por força do encaixe que recebeu como compensação pela transferência de responsabilidades do extinto Fundo de Pensões do Pessoal da Caixa Geral de Depósitos. Sem essa operação, o défice ter-se-ia agravado para os 305 milhões de euros, num ano em que os saldos de gerência voltaram a ser usados para ajudar a pagar pensões, de acordo com uma análise do Conselho das Finanças Públicas (CFP).

CGA agravaria défice em 2023 se não fosse a compensação pela transferência do fundo de pensões da CGD

Uma vez que a CGA é um sistema fechado desde 2006, as transferências do Orçamento do Estado têm sido recorrentes para assegurar o equilíbrio financeiro e, no ano passado, tiveram a maior subida desde 2015. Em 2023, o OE transferiu para a CGA 5,7 mil milhões de euros, mais 663 milhões do que no ano anterior, “o maior aumento desde 2015”, que se deveu “essencialmente” à atualização das pensões por via da lei, e ao aumento intercalar a meio do ano de 2023, de 3,57%, para assegurar o cumprimento pleno da lei de atualização de janeiro que, se nada fosse feito, limitaria aumentos futuros.

A diferença desfavorável entre o número de aposentados e o de subscritores voltou a subir, com o rácio de ativos/inativos no final de 2023 a fixar-se em 0,78 subscritores no ativo por cada aposentado, o que compara com 0,80 no final do ano de 2022. Entre o final de 2015 e o final de 2023, a população de subscritores diminuiu a uma taxa média anual de 2,7%, enquanto a população de aposentados e reformados praticamente estabilizou, observa o CFP. No final de 2023 estavam inscritas na CGA 381.262 pessoas, menos 12.358 do que o registado em 2022.