Mais de 102 mil pessoas estrangeiras não residentes em Portugal foram assistidas nos serviços de urgência dos hospitais do SNS no ano passado. Os dados, que constam de um relatório da Inspeção-Geral das Atividades em Saúde (IGAS) a que o Observador teve acesso, mostram que, em apenas dois anos, mais do que duplicou o número de pessoas que, não vivendo em Portugal, recorreram às urgências. Em 2024, e só até setembro, já foram atendidas 92 mil pessoas. Cerca de metade não estava abrangida por qualquer protocolo ou seguro, uma percentagem que tem vindo a aumentar nos últimos anos.
Nestes números integra-se o fenómeno conhecido por turismo de saúde: cidadãos estrangeiros não residentes e que vêm a Portugal apenas para aceder a serviços ou tratamentos a que têm dificuldade em aceder nos países de origem. Os serviços de urgência (que não podem recusar o atendimento) são uma porta de entrada no SNS. Daí, e em caso de necessidade, as pessoas podem ser referenciados para outros serviços dentro do SNS, nomeadamente para consultas de especialidade — que dão, depois, acesso a tratamentos.
“É o designado turismo de saúde”, admite presidente da IGAS
“É o designado turismo de saúde. Muitas pessoas sabem que o serviço de urgência é uma porta para terem acesso a cuidados de saúde”, diz ao Observador o presidente da IGAS, António Carapeto. Questionada sobre o tema no último mês de outubro, a ministra da Saúde, Ana Paula Martins, considerou esta uma “matéria sensível”.
Em 2023, 102182 pessoas não residentes foram atendidas nos serviços de urgências dos hospitais do SNS, mais 12,5% do que em 2022, ano em que se deslocaram às urgências mais de 89 mil pessoas. No entanto, e em relação a 2021, o aumento é muito mais expressivo: de 105% — nesse ano, pouco mais de 45 mil estrangeiros não residentes recorrem ao SNS por esta via.
Segundo o relatório da IGAS, até setembro de 2024, foram atendidas nas urgências mais de 92 mil pessoas. A manter-se o ritmo no último trimestre deste ano, os atendimentos de não residentes devem aumentar de novo este ano, ultrapassando os valores de 2023. No total dos últimos quatros anos, foram atendidas (de 2021 a 31 de setembro deste ano) quase 330 mil pessoas.
A Unidade Local de Saúde (ULS) que mais atendeu cidadãos estrangeiros não residentes em 2023 foi a do Algarve, com mais de 14 mil pessoas num único ano. A segunda mais procurada foi a ULS de São José, que serve a zona central de Lisboa, com quase 12800 não residentes atendidos no ano passado. Tanto uma como outra situam-se em zonas com muita pressão turística e, sobretudo, migratória. Em terceiro lugar, surge a ULS do Oeste, com mais de 12600 atendimentos deste tipo.
Mais de 90% dos não residentes que recorrem aos Hospitais Amadora-Sintra e Santa Maria não têm sistemas de saúde
Para além do número total de atendimentos, a IGAS questionou as 39 ULS do país sobre que parte das pessoas que foram atendidas nas urgências estavam abrangidas por seguros, protocolos, convenções internacionais, acordos de cooperação ou Cartão Europeu de Seguro de Doença — ou seja, que tinham sistemas que garantiam o pagamento ao SNS pelos serviços de saúde prestados. E a verdade é que também a percentagem de pessoas que não estavam abrangidas por nenhum deste sistemas tem vindo a aumentar de forma expressiva. Enquanto em 2021, 35,7% dos não residentes não tinham nenhum sistema ou protocolo de saúde, em 2022 esse valor aumentou para 40,2% do total. Em 2023, voltou a aumentar, para 42,3%, e, este ano, atingiu os 49,3%, quase metade do total.
Segundo os dados da IGAS, há ULS em que quase todos os não residentes que recorrem às urgências não têm sistemas de saúde ou seguros que garantam o pagamento ao SNS. É o caso da ULS Amadora-Sintra, em que que 97,5% das pessoas não têm estes sistemas ou seguros de saúde. Na ULS de Santa Maria, o valor também ultrapassa os 90% (foi de 93% este ano, até setembro).
Chega quer ouvir ministra Ana Paula Martins com urgência sobre “turismo de saúde”
Na ULS Almada-Seixal, que abrange o Hospital Garcia de Orta (o maior da Península de Setúbal), mais de 71% dos não residentes que acederam às urgências em 2024 não tinham nenhum sistema ou seguro de saúde. Um valor idêntico ao da ULS de Gaia-Espinho. Na ULS do Litoral Alentejano, uma zona de forte imigração, mais de dois terços (67,5) dos doentes atendidos não tinha também qualquer seguro ou sistema de saúde.
Ministra da saúde já tinha considerado o tema “sensível”
A IGAS questionou as ULS sobre a forma como são cobrados os custos decorrentes da assistência aos não residentes. Por exemplo, a ULS Amadora esclareceu que a “a admissão à urgência é sempre garantida ao doente”, mas não explica como faz a cobrança aos não residentes quando estes não estão abrangidos por seguros ou sistemas de saúde.
Em outubro, a ministra da Saúde considerou o tema “sensível”, mas ressalvou que era necessário distinguir entre migrantes e pessoas que fazem turismo de saúde. “É uma matéria sensível, mas temos que distinguir duas dimensões”, disse a ministra, exemplificando: “Uma coisa é a questão das migrações, e o Governo tem um plano para as migrações, uma matéria interministerial (…), outra coisa é a questão do turismo de saúde, que tem alguns contornos que têm que ser analisados e investigados muito bem”, sublinhou. Ana Paula Martins defendeu, à margem de uma cerimónia da DGS, que “o Serviço Nacional de Saúde não deixa ninguém à porta”.
O Observador pediu uma reação ao Ministério da Saúde, mas ainda não obteve resposta.