Tanto Taghi Rahmani como os seus filhos gémeos, Ali e Kiana Rahmani, não veem Narges Mohammadi — mulher e mãe, respetivamente — há perto de uma década. Podia dar-se o caso de serem desavenças familiares a propiciar esse afastamento, mas é precisamente o oposto. Laureada Nobel da Paz em 2023 pelo seu envolvimento no movimento cívico de oposição ao regime islâmico teocrático do Irão, Mohammadi é reclusa numa das mais infames prisões iranianas há vários anos. Aliás, foi a sua família — a viver no exílio em Paris — a receber o prémio em seu nome em Oslo.
Rahmani esteve em Lisboa precisamente para manter o nome de Narges Mohammadi bem vivo na nossa mente, encontrando-se a promover Tortura Branca, livro da ativista que relata a brutal experiência de encarceramento de várias mulheres — e que lhe valeu mais tempo ainda prisão, como retaliação do regime. O seu título deve-se a uma forma de tortura de índole psicológica que consiste em colocar as pessoas detidas sob confinamento solitário, permanentemente sujeitas à luz e sem quaisquer estímulos presentes dentro da sua diminuta sela.
“A dor está na imensidão, capaz de quebrar um ser humano”, contou ao Observador em farsi, numa entrevista feita com recurso ao trabalho de interpretação de Askhan, cidadão iraniano a viver em Portugal há várias décadas. Rahmani, ele próprio um ativista contra o regime, sofreu uma experiência semelhante durante os vários períodos de cárcere que viveu até ao momento em que abandonou o país.
No rescaldo dos protestos do movimento “Mulheres, Vida e Liberdade” — propiciados pela pela morte de Mahsa Amini às mãos da polícia da moral iraniana — Rahmani admite que o frémito da oposição foi reprimido pelo regime. No entanto, não só a sua experiência diz-lhe que “os movimentos não são sempre constantes, há alturas em que estão mais fortes e outras em que perdem força”, como afirma que os desenvolvimentos dos últimos anos deixaram marcas e que já há divisões no seio da elite política iraniana.
Para Rahmani, o atual líder supremo do Irão, Ali Khamenei, é um símbolo do “apodrecimento do regime”, que de dia para dia vai se tornando cada vez mais caduco. Tendo esta conversa decorrido antes das eleições presidenciais motivadas pela morte súbita de Ebrahim Raisi — e que vão agora para uma segunda volta depois de um recorde de 40% de abstenção — Rahmani afirmou desde logo que “a participação nas eleições não significa que o povo tenha escolhido determinado candidato. Há pessoas que dizem ‘OK, vamos participar e vamos votar, não acreditamos no regime e se as coisas piorarem, voltamos a manifestar-nos’. A isso eu respondo que o melhor então é não participar, mas as pessoas têm medo de perder o seu emprego”.
Perante a realidade atual no Irão, o ativista pede duas coisas. A primeira é que a comunidade internacional pare de olhar apenas para os seus interesses e concentre esforços em auxiliar a oposição no Irão, já que “num dia aplicam sanções, noutro negociam com o regime. Isso confunde o povo”. A segunda é que mantenham viva a voz de Narges Mohammadi. Mesmo atrás das grades, ela “vai elevar a sua voz o mais alto possível pelos os direitos das mulheres da região, pela liberdade, pelos direitos humanos, pela democracia, pela paz e desenvolvimento. Vou manter-me também nesse caminho e, para isso, precisamos da vossa ajuda”.
Quais são as últimas notícias sobre Narges Mohammadi?
A última notícia que tenho é que na semana passada foi feito um julgamento sem a presença de Narges e acrescentaram mais um ano à pena que tem ainda para cumprir. Isso foi fundamentado pelo regime por dois grandes motivos: o primeiro foi o facto de ter divulgado informação sobre os abusos a que Dina Ghalibaf, outra mulher encarcerada, foi sujeita — trataram-se de apalpões nas zonas íntimas, situações deste tipo. E o segundo prende-se com o facto de Narges ter promovido um boicote às eleições parlamentares. Então, o regime disse “estás a agir contra a segurança nacional” e aplicaram-lhe mais um ano de prisão.
Quanto a essa denúncia dos abusos, mesmo com todas as restrições impostas pela prisão de Evin, Nargis tem vindo a relatar as condições em que mulheres — como ela — são encarceradas. Foi assim que surgiu Tortura Branca. Como é que ela conseguiu divulgar estas informações a partir da prisão?
Esse livro não foi escrito de uma vez só e num único período. Foi o resumo de muitas conversas com outras prisioneiras, sendo que ela foi apontando essas entrevistas. Cada uma delas fez Narges sentir as consequências, porque isto perante o regime iraniano é um crime, é considerada divulgação de fake news. O regime iraniano está podre, mas devido à promoção dessas coisas, vão massacrá-la dentro da prisão.
Supondo que há algum grau de controlo, como é que Narges consegue circunscrever esse controlo e passar essas informações para fora?
Tal como António Gramasci escreveu muitos dos seus livros e relatos dentro da prisão. A prisão de Evin é como se fosse um castelo gigante. Quando uma pessoa passa informação para fora, está disposta a pagar o preço, com sentenças de encarceramento.
Tal como Narges, foi detido várias vezes por causa do seu ativismo, tendo também sido sujeito a confinamento solitário. Com base na sua experiência, que tipo de estado mental é que as autoridades iranianas tentam criar nos presos políticos?
O regime islâmico encara os seus opositores de várias formas. Para começar, está disponível a pagar e comprar o silêncio. Fizeram-me tal proposta várias vezes, oferecendo bom dinheiro e bom emprego. Se não aceitarmos, ficamos sem possibilidade de exercer qualquer função. Muitos jornalistas, por exemplo, ficaram desempregados. E se uma pessoa, nestas condições, quer voltar a exercer atividade, é detida. Se resistir dentro da prisão, mantém-na lá o tempo que for necessário até desistir. Mas quando há ativistas que vão fazer manifestações armados, esses são logo executados. E se houver manifestações de alguma dimensão, matam algumas pessoas na rua e executam outras tantas dentro das prisões para passar a mensagem para o resto do povo. Isto tem uma razão, porque se baixarem a guarda, se diminuírem a supressão, o povo ganha. Eles não querem isso, por isso a supressão está sempre ao máximo para manter o povo em baixo.
Tendo em conta os métodos usados, como a própria tortura branca, parece haver uma tentativa de condicionamento mental nos próprios ativistas.
Quando o prisioneiro chega à prisão, podem deitá-lo e baterem-lhe com cabos elétricos. Aí, o detido pode dizer “quero confessar”, isto torna-se compreensível para si próprio. Mas a tortura branca é pior do que isso, são os confinamentos solitários onde a dor está na imensidão, capaz de quebrar um ser humano. Nesses dois métodos, aqueles que são espancados ou chicoteados, quando saem da prisão, têm marcas físicas de tortura e confessam. Há um entendimento do estilo “confessaste porque levaste com chicotadas”. Mas na tortura branca, dentro das solitárias, se confessares dizem-se “oh, mas tu não tens nada, porque é que estás a confessar?”
Porque não há nenhum sinal visível de violência.
Isso faz com que a própria pessoa chegue ao ponto de querer confessar contra os amigos e contra ele próprio para pôr término àquela situação.
Uma ideia que retive ao ler o livro é que a tortura branca também tem o intuito de fazer da pessoa torturada alguém não confiável, porque já foi quebrado. Ou seja, tem o intuito de isolá-la também perante o resto da comunidade.
Precisamente. Quando lhe dizem que não tem nada e lhe perguntam porque é que confessou, a personalidade e a crença da pessoa vão abaixo. Depois de estar na solitária durante meses, a pessoa acaba por acreditar nas suas confissões. “Eu disse essas coisas… mas porquê?” Esta é uma forma de desacreditar a pessoa junto da sociedade para que a sua palavra deixe de ter sentido ou valor.
Porque é que é um método tão eficaz?
Dou-lhe um exemplo: todas as pessoas no mundo vivem atualmente com o seu telemóvel, com notícias, redes sociais. A maior parte da população do mundo está agarrada a este aparelho. Hoje em dia, nenhum de nós consegue passar 10 ou 15 minutos sem olhar para o telemóvel, para ver as notícias, para ver isto e aquilo. Portanto, há uma necessidade de absorver informação. Agora imagine que o levam para uma cela solitária com três metros de comprimento e menos de 1,70 de largura e não tem acesso a jornais nem a notícias nem a absolutamente nada. A única pessoa que consegue ver é o seu carrasco, a pessoa que supostamente vai executá-lo daqui a algum tempo. É bastante mais eficaz do que estar a chicotear ou torturar — e é precisamente por causa disso que Narges escreveu e revelou estas coisas, para parar com estes atos desumanos. Este livro não é apenas uma história, é a realidade a acontecer enquanto o lemos. Está a acontecer precisamente neste momento.
Quero contar-lhe uma experiência, já que eu próprio estive nessa situação. Já tinham passado quatro meses e meio desde que estava numa cela solitária. Passaram-me detergente para a roupa em pó num pequeno pedaço de papel de jornal. Fiquei tão entusiasmado por ver um papel com alguma escrita em cima que perdi a noção e até comecei a comer esse detergente. Depois atirei o resto para o chão só para conseguir ler o pouco que lá estava escrito. Eram uma série de palavras sem qualquer sentido, mas acabei por decorá-las todas. Quando virei o papel ao contrário, estava lá escrito um poema que ainda tenho na minha mente.
[Ashkan usa inteligência artificial para traduzir o poema de farsi para português: “Se desejas beijar o meu desejo, beija a minha face agora mesmo”]
Li isso no verso do papel, num anúncio de alguém que tinha falecido, num obituário. E o guarda lembrou-se que nunca deveria ter dado um pedaço de papel de jornal e abriu logo a porta. Só tive tempo de escondê-lo debaixo de um tapete, enquanto ele gritava “dá-me, dá-me”. Eu respondi-lhe “atirei isso para sanita”. Ele obrigou-me a abri-la para ver, eu disse-lhe “abre tu” e ele acabou por sair. Durante dias tirei esse pedaço de jornal e li esses anúncios dos velórios das pessoas, era a leitura que tinha.
É uma necessidade extrema de estímulo mental?
Não há nada na cela. A única coisa que existe é uma lâmpada ligada durante 24 horas. E à noite, quando se pede para desligar esta lâmpada, eles dizem “não, estamos com receio que te suicides, então a lâmpada fica acesa”. Para aguentar dentro da solitária, é preciso caminhar tanto quanto possível para sentir cansaço, e à noite poder dormir. Sempre contra a ideia de deixar apenas passar o tempo, de deixar até chegar ao almoço ou ao jantar, de não nos focarmos no tempo. Porque tiram todos os relógios.
Fica-se sem noção da realidade?
Não há noção de tempo. E se o tempo conseguir dominar, é um jogo perdido. A guerra lá dentro é com as paredes: dois passos para um lado, dois passos para o outro. Não conseguir sequer abrir completamente os braços. E há sempre alguém a chegar à porta da cela para dizer “aqui é o fim do mundo, já acabou tudo”. Agora imagine isso quando vem um jovem ativista para uma cela dessas, que passa a vida agarrado a um telemóvel — como seria? Assim, as pessoas conseguiram compreender o que Narges viu que estão a fazer aos prisioneiros quando foi para a prisão, percebeu-se logo que isso é uma ferramenta de tortura para os prisioneiros políticos. Este livro, na verdade, tem uma segunda parte, que é um documentário iraniano de 50 minutos em que as pessoas falam da sua experiência na solitária. O Canal 5 da televisão francesa já o divulgou e tenho grande esperança que a comunicação portuguesa também o exiba. Eu, na qualidade de pessoa que já passou um total de um ano e meio de solitária, em períodos de seis meses, quatro meses, três meses, dois meses, consigo compreender o que está aqui escrito — e isto para as mulheres ainda é muito mais complexo.
Porque existe uma dimensão de violência machista, ligada ao fundamentalismo islâmico?
Por isso e porque é ainda pior quando se trata de uma mãe, por exemplo. Qualquer barulho que uma mãe ouça de crianças nas proximidades, pensa que é o seu próprio filho. Os agentes responsáveis por sacar a confissão reprimem ainda mais as mulheres, utilizam palavras num contexto sexual e punitivo. Há um exemplo neste livro de uma senhora à qual um guarda apertava o braço e obrigava-a a relatar as suas relações íntimas com o seu cônjuge. Isto é muito doloroso, ainda mais no contexto da cultura iraniana, onde não temos o hábito de namorar muito publicamente, de dar grandes beijos em público.
Ou seja, demonstrações públicas de afeto e divulgação de pormenores íntimos da vida.
Não há esse hábito. A família é uma coisa muito reservada.
De todas as declarações públicas que vemos de Narges, parece que, apesar da violência psicológica, mantém uma certa estabilidade, Cada declaração parece ter uma linguagem precisa e sóbria, sem ceder a argumentos emocionais. Portanto, consegue manter a mesma postura. O que tem a dizer sobre isto?
Narges, desde criança, foi testemunha das execuções dos seus primos. Quando chegou à universidade, veio de Zanjan para Qazvin, uma cidade que fica a cerca de 150 quilómetros a norte de Teerão. Nessa altura, eu também estava na universidade e fazia workshops na cave de uma livraria sobre história e cultura iraniana. Não eram aulas oficiais, eram encontros, e durante os mesmos, eu partilhava as minhas experiências de prisão desde 1982 até 1992. Ela tinha estudado jornalismo e, no meio da comunicação social, tinha as suas próprias técnicas de trabalho. Essas duas coisas ajudaram muito a escrever este livro. Aproveitou a sua própria experiência e ainda a de outras pessoas, acabou por ver certas coisas com os seus próprios olhos. Ela quis que as outras senhoras partilhassem as suas histórias consigo para ela poder expô-las.
As iniciativas de Narges para acabar com a pena de morte ou com o confinamento na solitária são vistas pelas autoridades iranianas não como campanhas pelos direitos humanos, mas como formas subversivas de atacar a segurança nacional…
Eles dizem que as suas iniciativas são contra o regime e vão contra os pilares fundamentais do islão: ir a Meca, rezar, ramadão, etc… Khamenei ainda há pouco fez um discurso onde acabou por dizer que a nossa justiça não necessita de se nivelar com os direitos humanos internacionais. Isso quer dizer o quê? Que estamos de caras com as organizações de direitos humanos.
Da primeira vez que Narges foi presa, tal deveu-se ao movimento que ela iniciou, precisamente para boicotar as execuções no Irão — e só por isso apanhou 10 anos de prisão. Eles dizem que, na lei islâmica, a execução existe. Alguns dos religiosos dizem que se a execução não tem quaisquer benefícios, não deve ser efetuada, tal como [Hussein-Ali] Montazeri, um político religioso. Ele era suposto suceder a Khomeini e ocupar o lugar que agora é de Khamenei enquanto supremo líder, era um religioso mais democrático [explicar sucintamente o que aconteceu], mas foi afastado. Pelo contrário, Khamenei diz que na lei islâmica existe o ato de execução e que se alguém não ordenar esse ato, na verdade está a atentar contra o Islão.
Nos tempos em que fui interrogado, a pessoa que estava a conduzir o interrogatório disse-me que, no Irão, a taxa de execuções é muito elevada. Por exemplo, quem cometer um homicídio no Irão recebe a pena de morte, estilo olho por olho, dente por dente. E como o nível de execuções é muito elevado, as autoridades vão ter com a família das vítimas para, de certa forma, comprar o seu silêncio, para que não se mate mais ninguém e se baixe os níveis de execuções. E eu perguntava “mas porque é que não alteram a legislação?”. E eles respondiam “não podemos, se o fizermos já não somos muçulmanos”.
Narges tem sido repetidamente sujeita a julgamentos arbitrários e detida em condições ilegais, mesmo tendo em conta a lei da República Islâmica. Todo este trabalho para tentar silenciá-la não será também um sinal de fraqueza do regime?
Claro. Os regimes ditatoriais têm muito medo de denúncias porque as denúncias espalham-se e minam os pilares do seu poder. Preferem silenciar imediatamente os opositores antes de deixá-las espalhar-se pela sociedade.
De uma perspetiva portuguesa, as notícias diminuíram após os grandes protestos do movimento “Mulheres, Vida e Liberdade” causados pela morte de Mahsa Amini. Qual é a situação atual no Irão?
O governo conseguiu reprimir os protestos, mas começou a haver uma divisão dentro do próprio regime. Ontem [21 de junho], um dos políticos do regime, o senhor Mostafa Pourmohammadi, um ayatollah e um dos candidatos às presidenciais deste mês, comentou que muitos dos nossos amigos e parceiros desejam que o tema do véu seja tal e qual como era antes do caso de Mahsa Amini. Isso é uma admissão de que a sociedade mudou desde então. Neste momento, o regime diz “ok, se não queres pôr o véu por completo, não interessa, mas tens de colocar pelo menos um lenço, tem de ocupar pelo menos uma parte da cabeça”. No início, o véu era um dos pilares islâmicos iranianos, e neste momento já não tem nada a ver com islamismo e sim com controlo social. Neste momento, se houver um lenço colocado de forma mais casual, a polícia da moral chega e diz “ok, puxa um bocadinho para cima”, já não diz para pôr todo o véu. As jovens mulheres hoje já não querem ir por esse caminho e dizem “não, eu não quero aceitar isso”. A constituição iraniana está fundamentada em pilares de desigualdade, apesar de ele dizerem que não, que temos os mesmos direitos e as mesmas oportunidades para as mulheres.
A própria questão do véu, de colocá-lo nesta versão “faz de conta”, é um simulacro de controlo? Como já não conseguem impor as regras que queriam, estabelecem um padrão mínimo para fingir que ainda têm uma linha vermelha?
Hoje apanham as pessoas nas ruas através da polícia da moral. As ruas e as avenidas são os sítios onde o povo vem protestar, dizer se concorda ou não. A polícia da moral impede o ajuntamento das pessoas na rua, como por cá nos tempos de Salazar. O tempo do recolher obrigatório militar já terminou, já não trazem os tanques para as ruas, mas trazem as forças de informação e de repressão. É o que estão a fazer precisamente com essa polícia da moral, que tem oprimido muito o povo. Mas, a meu ver, a resistência irá continuar. Em alguns pontos, o regime já recuou.
É preciso assinalar que os movimentos não são sempre constantes, há alturas em que estão mais fortes e outras em que perdem força. E o regime iraniano reprime porque têm petróleo, há muita gente que em termos financeiros está dependente do Irão, e isto torna as coisas ainda mais difíceis, mas a resistência continua. Todos os regimes que nascem através de uma revolução não são fáceis de pôr de lado, porque começaram como um movimento do povo. A meu ver, os regimes que nascem de uma revolução têm três etapas. A primeira é a parte da revolução em si, quando esta acontece. Depois vem a época da burocracia, criar os ministérios e as leis. E, por fim, se os revolucionários não se transformarem em democratas, é a época do apodrecimento. O próprio povo já não acredita nas ações e que está afastado daquilo que ajudou a criar. A bandeira de Khomeini era matar e assustar. Já a bandeira de Rafsanjani, um antigo presidente iraniano, foi a burocracia, a criação do Estado em si. E agora Khamenei é o símbolo da repressão, de espalhar medo e apodrecimento do regime. A meu ver, um regime nessas condições não tem futuro.
Numa entrevista à BBC, disse que a República Islâmica do Irão, como a conhecemos, “tinha os dias contados”. Isto foi dito no ano passado. Pergunto-lhe: o que vai acontecer?
Temos agora eleições iranianas. Há seis candidatos [entretanto dois desistiram] e só um deles é reformista, mas é um reformista muito conservador que diz ter como linha vermelha inultrapassável a palavra de Khamenei. A meu ver, uma pessoa nestas condições nunca poderia vir a ser um reformista. Acredito que a maioria do povo não irá participar nas eleições, apesar de considerar que vá haver mais participação do que nas eleições legislativas. No entanto, a participação nas eleições não significa que o povo tenha escolhido determinado candidato. Há pessoas que dizem “OK, vamos participar e vamos votar, não acreditamos no regime e se as coisas piorarem, voltamos a manifestar-nos”. A isso eu respondo que o melhor então é não participar, mas as pessoas têm medo de perder o seu emprego.
E quanto ao projeto político iraniano?
Atualmente, Khamenei está muito focado nas forças que lutam por ele ou com o apoio dele, como o grupo Hezbollah no Líbano, como a Rússia auxiliada pelo envio dos drones iranianos, como o Kata’ib Hizballah no Iraque, como os Houthis no Iémen, como o próprio regime de Bashar al-Assad na Síria e com militares xiitas onde conseguiu criar unidades no Afeganistão e no Paquistão. Na verdade, o Irão é um pequeno estado imperialista, e deste modo controla o governo iraquiano, dá ordens a Assad, pressiona o governo do Líbano através do Hezbollah. envia as tais forças militares afegãs e paquistanesas em prol desses movimentos e tem influência numa boa parte do Curdistão na zona iraquiana — tanto que os EUA e outros países ocidentais negoceiam com Khamenei quanto às posições dessas forças militares. Por exemplo, Biden, quando chegou ao poder, deu permissão a Khamenei para que ele pudesse vender uma quota maior de petróleo à China para, de certa forma, tentar baixar o preço altamente inflacionado do petróleo. Em troca disso, Khamenei prometeu que o Hezbollah não iria expandir as suas forças. Por outras palavras, o que acontece é que os países ocidentais vão negociando com Khamenei e estão a borrifar-se para a democracia no Irão e pelos direitos humanos iranianos.
Tem criticado a forma como o Ocidente intervém no Médio Oriente porque diz que, na maior parte das vezes, deixam vácuos de poder que o Governo iraniano aproveita. Por outro lado, também afirmou que as sanções económicas impostas ao Irão afetam muito mais a população do que o governo. Ou seja, duas formas de atuação que não resultam. O que deve a comunidade internacional fazer?
Eu digo o que vejo, os países ocidentais preocupam-se mais com os seus próprios benefícios. A democracia não pertence aos governos, pertence ao povo — e quando pedimos ajuda da comunidade internacional ou dos países ocidentais, não queremos que intervenham diretamente no nosso país, queremos que nos ofereçam as condições para termos democracia e liberdade. Mas não vejo a comunidade internacional a caminhar nesse sentido.
Ajuda em que sentido?
Não queremos guerra. A guerra só vai piorar as coisas. Queremos que a comunidade internacional nos apoie na luta pelos direitos humanos, no acesso à banda larga de internet para fazer chegar a nossa voz ao mundo, na promoção e apoio à cultura iraniana. Os iranianos não entendem quais são as políticas dos povos ocidentais — num dia aplicam sanções, noutro negociam com o regime. Isso confunde o povo. Os acontecimentos de cada país, é o povo desse país que os define. A nossa vontade é que o povo possa definir com a sua própria voz o seu caminho e os seus direitos.
Portanto, ferramentas para a auto-determinação?
Sim, no entanto, o que vimos foi os países ocidentais derrubarem dois grandes movimentos nossos. Tivemos em 1905 a Mashrutiyyat, a revolução constitucional que ajudou a restabelecer o reino, mas durante a Primeira Guerra Mundial, veio a Inglaterra e ocupou o Irão, o que ajudou a destruir a nossa revolução. Depois, em 1953, fizeram um golpe de estado contra o primeiro-ministro Mohammad Mosaddegh. Na verdade, no que toca à implementação de direitos humanos no Irão, os países ocidentais nunca deram grandes apoios. Mesmo neste preciso momento, os países ocidentais, por exemplo, não apoiam as palavras e decisões de António Guterres nas Nações Unidas quanto à guerra em Gaza. Sou um grande admirador de Guterres, ele tem grandes valores humanos.
E quero também dizer isto: neste momento, a extrema-direita está em expansão na Europa. Qual é o seu slogan? Não querer imigrantes na Europa. Mas porque é que os imigrantes vêm para cá? Vêm em busca de emprego, vêm fugir da guerra e das secas. No entanto, o que é que os países ocidentais fazem? Vendem armamento. Num único ano, a Arábia Saudita comprou 54 mil milhões de dólares só em armamento. Porque é que o Ocidente não reduz as vendas de armas? Quanto às alterações climáticas, quem é que destruiu o meio ambiente? Os países desenvolvidos e avançados. Porque é que a comunidade internacional — e os países europeus em particular — não faz pequenos investimentos em países como o Afeganistão, o Paquistão, o Irão, países do norte de África e de toda a região do Médio Oriente, para evitar que essas pessoas imigrem para aqui?
Por fim, veja-se a guerra da Ucrânia. Putin é um violador dos direitos humanos, mas as províncias que a Rússia ocupou era suposto a Ucrânia ter-lhes concedido autonomia em 2014 e não o fez. Se o tivesse feito, tinha acabado com as pretensões do Putin para a tal guerra. Políticas como esta acabam sempre em nosso prejuízo. A guerra na Ucrânia vai contra os nossos interesses [da oposição no Irão], tal como a guerra em Gaza.
Tem havido uma oposição crescente de vários quadrantes políticos à forma como Israel está a conduzir a guerra contra o Hamas em Gaza. Acredita que esta guerra está a ter algum efeito na reabilitação da posição de Teerão no mundo?
A estratégia do Irão não é a Palestina, é o Hezbollah. Os palestinianos, pelo facto de serem sunitas, não têm grande proximidade com os iranianos. Os maiores apoiantes do Hamas são o Qatar e a Turquia. Veja-se como, há alguns anos, Netanyahu propôs ao rei do Qatar que apoiasse o Hamas, para que este liderasse e governasse a Palestina. Netanyahu não procura a paz. Quando destrói Gaza desta forma, afeta todo o mundo árabe, e Khamenei tira louros disso. Ele também mata da mesma forma o seu próprio povo, mas vem defender Gaza, tal como grande parte do mundo está a fazer. Dessa forma, Khamenei está a comprar uma cara lavada junto à comunidade internacional, o que também nos prejudica.
É como se colocasse como figura de proa do mundo muçulmano contra o que se está a passar em Gaza?
Todos os países em redor de Israel são países árabes que também reprimem os seus próprios povos. A maioria tem regimes ditatoriais, mas aparentam ser democratas junto a Israel, apesar de nunca terem tido grande interesse na Palestina. Nunca foram movidos pela ideia de resolver e ajudar: isso aconteceu com Bashar al-Assad, com o Iraque, com a Arábia Saudita, com o Qatar, com o último presidente parlamentar da Líbia, Muammar Gaddafi, são pessoas que se aparentam democratas junto a Israel.
O Prémio Nobel da Paz pode não conferir muito poder político, mas pode levar a uma mudança de mentalidades e a um foco internacional nas causas defendidas pelos premiados. Acredita que foi esse o caso com a vitória de Narges em 2023?
O prémio Nobel pôde levar a voz de Narges para mais longe. Hoje em dia, consegue-se ouvir a palavra de Narges, e se ela não tivesse esse prémio Nobel, a maioria não saberia da sua existência. Ela vai elevar a sua voz o mais alto possível pelos direitos das mulheres da região, pela liberdade, pelos direitos humanos, pela democracia, pela paz e desenvolvimento. Vou manter-me também nesse caminho e, para isso, precisamos da vossa ajuda.