A TAP SGPS, a holding que ficou com algumas operações da antiga TAP, tinha reconhecidos no final do ano passado um passivo de 214 milhões de euros, referente a um empréstimo obrigacionista emitido em 2016, mais juros.
A maior fatia desta dívida é para com a companhia aérea brasileira Azul, que subscreveu 90 milhões de euros em obrigações convertíveis em ações. A estes 90 milhões de euros acresce uma parcela em juros que até 2023 tinha atingido os 71 milhões de euros, o que perfaz já cerca de 160 milhões de euros, de acordo com cálculos feitos pelo Observador com base nos relatórios e contas das empresas. Esta conta vai subir até 2026, ano em que vence esta emissão e em que capital e juros terão de ser reembolsados pela TAP SGPS, empresa totalmente detida pelo Estado e que tem um buraco nas contas (capital próprio negativo) de mais de 1,3 mil milhões de euros.
Esta “TAP Má”, que deixou de ter ligações acionistas à TAP SA — apesar de ter o conselho de administração comum à “TAP boa” (a da aviação comercial) — ficou com participadas como a Portugália e a Cateringpor, mas herdou algumas das obrigações financeiras mais pesadas do grupo, nomeadamente a liquidação da empresa de manutenção no Brasil e o reembolso das obrigações subscritas pela companhia Azul e pela Parpública no valor de 120 milhões de euros, aos quais se somavam até ao final do ano passado juros de 93,8 milhões de euros. O total ultrapassa já os 200 milhões de euros (214 milhões de euros).
A emissão fez parte de uma recapitalização privada da TAP feita em 2016 pelo acionista David Neeleman, que é o fundador e ainda tem o controlo (dos direitos de voto) da companhia brasileira. Quando o empresário americano negociou a venda das suas ações na TAP em 2020, o Estado teve também de chegar a acordo com a Azul. Isto para convencer a companhia brasileira a ceder o direito de conversão das suas obrigações em ações da TAP num contexto em que o capital ia ficar totalmente em mãos públicas.
Esta negociação foi até mais demorada e complexa do que o acordo para pagar 55 milhões de euros para David Neeleman sair do capital da TAP. E teve de ser aprovada na assembleia geral extraordinária da Azul, que é uma empresa cotada no Brasil e em Nova Iorque.
David Neeleman aceitou sair da TAP, mas empréstimo da Azul é obstáculo a acordo final
Ainda em 2020, a Azul recebeu cerca de 70 milhões de reais (pouco mais de 11 milhões de euros) pela participação indireta que tinha na TAP de 6,1%. A operação foi realizada através da Atlantic Gateway, a empresa criada por David Neeleman para o investimento na TAP e à qual foram pagos os 55 milhões de euros pela saída do empresário. A Azul tinha pago cerca do dobro para tomar esta posição quando em 2019 foi chamada a substituir a chinesa HNA.
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Apesar de ceder o direito de converter obrigações em ações, a Azul manteve todas as restantes condições contratuais das obrigações, “incluindo a condição de credor sénior, taxa de juro anual de 7,5% e o direito à constituição das garantias acordadas nos respetivos termos e condições, como o programa de fidelização da TAP”, como se pode ler num documento de maio aprovado pela empresa brasileira no quadro das suas obrigações legais como empresa cotada. A operação vence em setembro de 2026, mas pode ser antecipada. E até lá, capitaliza juros anuais de 7,5%.
O último relatório e contas da TAP SGPS, a que o Observador teve acesso, indica que em 2023 foram acrescentados juros de 15,6 milhões de euros, num total de 93,8 milhões de euros. A maioria dos quais são devidos à Azul. No seu balanço anual, a companhia brasileira valoriza o “bond TAP” em 780 milhões de reais (cerca de 150 milhões de euros à cotação euro/real no final de 2023).
Se o empréstimo obrigacionista da TAP é um ativo para a Azul, já para a Parpública a operação é tratada com prudência face a eventuais perdas. A holding do Estado subscreveu 30 milhões de euros nesta operação, tendo sinalizado a intenção de converter esses títulos em ações em 2018, o que suspendeu a contagem dos juros. Com a reconfiguração acionista de 2020, em que o Estado tomou todo o capital da TAP após a ajuda pública, esta conversão ficou sem efeito. E foi resposta a contagem dos juros devidos à Parpública que em 2022 perfaziam 19,1 milhões de euros.
Mas até 2022, a holding do Estado, (que ainda não apresentou as contas do ano passado) constituiu imparidades para a emissão e para os juros, em nome da prudência, num total de 49 milhões de euros. Já em 2023, registou uma nova fatia de juros de 3,8 milhões de euros. A Parpública tem 1% do capital da TAP SGPS, sendo o resto detido pela Direção-Geral do Tesouro.
A parceria entre TAP e Azul e as dúvidas na comissão de inquérito sobre os ganhos de Neeleman
Apesar de sair do capital, a Azul manteve uma parceria estratégica comercial com a TAP para os mercados brasileiro e europeu, e no documento de maio de 2o24 até indicava a existência de conversações para ir mais longe. “Estamos também a discutir a possibilidade de constituição de uma joint- venture com a TAP para exploração conjunta de voos entre Brasil e Portugal.” O Brasil é o principal mercado da transportadora portuguesa.
À frente do conselho de administração da Azul continua David Neeleman, que deixou de ser diretor presidente (equivalente a presidente executivo) em 2017. O empresário com nacionalidade brasileira e americana é descrito nos documentos oficiais da companhia como “o acionista controlador”. Neeleman reduziu a participação económica na empresa que fundou para 4,5% quando a Azul fez uma oferta em bolsa (uma operação que também tinha planeado realizar na TAP, mas que foi travada pelo Governo socialista). Mas manteve 67% das ações ordinárias da companhia que são aquelas que têm mais direitos de voto.
Neeleman expõe “pressões muito duras” do Governo e de Pedro Nuno Santos para TAP recuar nos prémios
As relações financeiras entre este acionista privado e a TAP foram um dos temas quentes da comissão parlamentar de inquérito que se realizou no ano passado. Desde os fundos Airbus usados pelo empresário para capitalizar a companhia em prejuízo (alegadamente) da própria TAP, passando pelo encaixe conseguido ao vender a sua posição ao Estado no pior ano da aviação comercial e pelos pagamentos de comissões de gestão à empresa dos acionistas privados.
Foram ainda reveladas despesas de consultoria feitas pela ainda candidata à compra da TAP que acabaram por ser pagas pela transportadora portuguesa. As suspeitas sobre o favorecimento financeiro a Neeleman suscitaram uma reação forte (por escrito) de David Neeleman e constam da longa lista de temas a tratar numa auditoria “urgente” a realizar pela Inspeção-Geral das Finanças (IGF), que fazia parte das recomendações do relatório.
A auditoria da IGF foi iniciada em setembro do ano passado, por indicação do anterior Governo, e ainda não existe indicação de que tenha sido concluída. O tema dos fundos Airbus é também tratado numa auditoria do Tribunal de Contas que começou a ser feita no ano passado e da qual ainda não há notícia de desfecho.