O acionista privado americano que recebeu 55 milhões de euros para vender a sua participação na TAP acusa o Governo socialista de ter procurado em vários momentos “pressionar a administração” então privada da empresa. Numa longa resposta por escrito às perguntas colocadas pelos deputados da comissão parlamentar de inquérito à gestão pública da TAP, à qual o Observador teve acesso, David Neeleman elenca vários momentos em que essa pressão aconteceu e que, do seu ponto de vista, foi pública e notória. Desde a polémica atribuição de prémios a colaboradores em 2019, passando pela definição de determinadas rotas internacionais e culminando no caso em que considera mais grave: o bloqueio da oferta inicial de venda (IPO) da TAP em bolsa.

Sobre os prémios de 1,17 milhões de euros atribuídos pela TAP a 180 colaboradores em maio de 2019 — após um ano de prejuízos de 118 milhões de euros — período no qual o “Governo pressionou a nossa comissão executiva de forma lamentável e inaceitável para que não pagasse as remunerações variáveis. Foram pressões muito duras através de mensagens de telemóvel e reuniões com o próprio ministro das Infraestruturas (Pedro Nuno Santos)”. Felizmente, conclui, o CEO (Antonoaldo Neves) “teve a coragem para não ceder às pressões e a comissão executiva acabou por pagar as remunerações variáveis, que eram devidas”.

TAP. Prejuízos, prémios e polémica – 6 respostas e uma pergunta em aberto

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Para o empresário da aviação, “o pagamento de remuneração variável aos trabalhadores” é um “incentivo normal no mercado e um importante fator de alinhamento de interesses entre empresa e trabalhadores e que foi lamentavelmente transformado num caso público”. Considerando ainda que os montantes em causa eram de valor “relativamente baixo” — o mais alto era de 110 mil euros — e que abrangiam um grupo alargado, incluindo chefias como Abílio Martins e Stéphanie Sá Silva. Mas, sublinha, “em momento algum se falou em estender os prémios à comissão executiva ou aos administradores”.

Estes prémios levaram o Governo a acusar a gestão de quebra de confiança, mas a verdade é que os partidos da oposição alinharam nas críticas à decisão dos acionistas privados.

O “mais grave” foi bloquear a oferta em bolsa da TAP por “juízo político”

Mas a pressão mais “grave” foi o que classifica de bloqueio à oferta pública de venda em bolsa por parte do segundo Governo de António Costa em 2019 que considera ter sido feita sem razões objetivas. “O Estado/Parpública, em incumprimento claro com o que tinha assumido no Acordo Parassocial, impediu que a empresa fosse colocada em bolsa”. Segundo o empresário, foi o Estado — a Parpública (empresa detida pelo Estado e acionista da TAP) — que violaram o acordo parassocial ao impedirem a oferta inicial (IPO). E refere que o consórcio privado da TAP a que presidia “tinha o direito a exercer uma opção de venda caso ocorressem determinados eventos”.

David Neeleman adianta ainda que seria provável que sem o acordo para a sua saída em 2020 “se tivesse iniciado um litígio, desde logo porque a Parpública já tinha violado o acordo parassocial quando impediu o IPO e porque tínhamos proteções contratuais caso a empresa voltasse a ser pública”.

O empresário defende que a colocação em bolsa de uma empresa como TAP — que apesar do crescimento rápido e da capacidade de levantar dívida no mercado tinha dado prejuízos em 2018 e 2019 — teria sido “um sucesso extraordinário” e aponta o dedo aos administradores nomeados pelo Estado na empresa — à data Miguel Frasquilho e Lacerda Machado, entre outros. “Não atuaram com independência e no melhor interesse da TAP e decidiram vetar o IPO” tomando uma “decisão assente em juízos de oportunidade política de curto prazo e de agradar um eleitorado específico”. Ainda que, admite, por indicação do Governo.

Neeleman confirma vários interessados na compra da sua posição na TAP, depois de bloqueada a ida para a bolsa, e refere um processo negocial preliminar para a aquisição, numa primeira fase  de 20%. A empresa foi avaliada entre 800 e mil milhões de euros e os interlocutores do Governo “mostraram-se satisfeitos com a perspetiva de entrada de uma grande companhia de aviação”, mas não refere a Lufthansa por razões de confidencialidade.

O empresário que vendeu o capital que tinha na TAP em divergência com a estratégia socialista para a TAP em plena pandemia, diz que aceitou negociar a sua saída porque o Governo (com Pedro Nuno Santos na pasta) queria “o controle a empresa a todo o custo, justificando-se com a pandemia, ao contrário (…) do que sucedera em todas as companhias aéreas do mundo e recusando na altura (…) as demais hipóteses”.

Diz que o Governo começou por ignorar os pedidos de ajuda pública feitos pela gestão da TAP durante os primeiros meses da pandeia (só respondeu a 19 de maio) e que o apoio inicialmente pedido era muito inferior ao que o Estado queria (500 milhões de euros versus 3.000 milhões de euros de aumento de capital que os privados teriam de acompanhar em metade). “Não era um pedido sério e foi claramente hostil”. Daí que Neeleman conclua que “não houve vontade de que um verdadeiro privado continuasse na empresa (numa referência que parece diminuir o empresário português Humberto Pedrosa que ficou numa fase inicial).

Neeleman confirma que sem acordo dos 55 milhões, haveria litigância e uma penalidade para o Estado

Sobre porque recebeu 55 milhões de euros para sair da TAP, refere que os acordos assinados em 2017 entre o Estado e os privados estabeleceu que se a TAP passasse a empresa pública (por via de uma nacionalização, por exemplo),  isso seria “um incumprimento grave e que haveria direito a uma penalidade”.  Além de outros incumprimentos cuja culpa atribui ao Estado, mas para “evitar um processo jurídico complexo, aceitei negociar a venda da minha participação indireta na TAP”. Esta justificação bate certo com as declarações de vários ex-governantes que apontaram o risco de litigância como um dos fatores que levou o Governo a negociar com Neeleman.

O empresário e os responsáveis do Governo de então também estão alinhados na explicação do número dos 55 milhões de euros. “Foi um acordo comercial para a compra e venda da minha participação”, negociado com Pedro Nuno Santos, João Nuno Mendes e Miguel Cruz.

E lamenta ainda que o Estado não tenha permitido à gestão privada conversar com a Comissão Europeia diretamente, o que tem sido justificado com o facto de as ajudas de Estado serem negociadas pelos governos e não pelas empresas beneficiárias.

Sobre as “pressões” relativas a rotas internacionais, David Neeleman não dá exemplos concretos, mas eram conhecidas as reclamações feitas a vários níveis da administração pública sobre opções da companhia de reduzir destinos do aeroporto do Porto, em particular.

“Alguém imagina que gestor profissional (…) não procure sempre a rentabilidade da empresa e que se esses voos fossem rentáveis (…) os teríamos reduzido? Mas não o poderíamos fazer porque, diziam-nos, a TAP era 50% do Estado. Havia muita dificuldade em perceberem, no Governo de então, que é uma coisa é o Estado ter uma palavra a dizer na estratégia da empresa, outra muito diferente, é interferir numa gestão independente”.

Pedro Nuno Santos foi “transparente” nas intenções, mas Neeleman ficou “dececionado” com acusações

David Neeleman começa por reconhecer que a relação com o ex-ministro das Infraestruturas, Pedro Nuno Santos, era “bastante transparente nas suas intenções e foi sempre respeitador no trato pessoal comigo”, apesar das posições divergentes — e das enormes divergências ideológicas — que foram tendo e que, “fazem parte da natureza das coisas”. Manifesta que não gostou das “ingerências na gestão da empresa” e confessa-se “muito dececionado com ele por ter feito graves acusações na sua audição à Comissão de Economia, Obras Públicas, Planeamento e Habitação”.

Considera ainda que as declarações em causa — de que talvez tenhamos sido todos enganados com a operação dos Fundos Airbus — vão contra a sua “honra e reputação”, tendo por base uma “avaliação que ninguém conhece sobre preços de aviões feita sete anos depois da data da compra e contrariando nove avaliações (3 por cada modelo), feitas por entidades independentes”.

David Neeleman, que já tinha manifestado a sua indignação num artigo de opinião publicado no Observador, só entende “tamanha irracionalidade” por “necessidade de desviar as atenções dos contribuintes portugueses dos erros grosseiros cometidos nos anos de gestão pública da TAP”.

Durante a inquirição na comissão parlamentar de inquérito, realizada uma semana depois da audição na comissão de economia, Pedro Nuno Santos foi mais cauteloso nas apreciações sobre os Fundos Airbus, admitindo que os resultados das auditorias recentes que apontam para um prejuízo para a TAP podem ser questionáveis. E lamentou que estas auditorias não possam ser públicas porque foram entregues ao Ministério Público no quadro de uma queixa que o próprio apresentou quando era ministro das Infraestruturas.

Do que correu mal com Alexandra Reis às inquietações com os fundos Airbus. As revelações de Pedro Nuno Santos na audição do “desconforto”

Fundos Airbus. A tese “insólita” de que queria prejudicar uma empresa que ia comprar

O tema dos fundos Airbus é um dos que mais espaço ocupa nas respostas às 80 perguntas colocadas a David Neeleman que são acompanhadas de 29 anexos com vários documentos. Para além de retomar e aprofundar as observações já feitas em artigos de opinião, o empresário passa a pente fino todas as ocasiões em documentos em que o uso dessas verbas para capitalizar a TAP foi expressamente referido. Incluindo os que envolveram o tempo dos políticos socialistas, a partir de 2016. “Houve absoluta transparência e é chocante a negligência com que alguns membros do Governo de então referem que não tiveram conhecimento”.

E questiona qual seria o seu interesse em prejudicar uma companhia da qual tinha acabado de comprar 61% do capital, qualificando de “tese insólita” a ideia de que o consórcio Alantic Gateway queria em 2015 “negociar contra os interesses da TAP, uma empresa onde iria ter uma participação entre 95% e 100%”.

O empresário rejeita a ideia de que tenha sido a TAP a suportar os custos da sua própria capitalização porque o contrato de compra dos aviões A350 não tinha valor para a empresa que estava já em incumprimento. E defende que para a Airbus a injeção de fundos na TAP permitia a viabilização “de um parceiro e cliente” de longa data, além de que permitia ao construtor aeronáutico (também detido por vários estados europeus) evitar “o desconforto de ter de terminar o contrato dos A350 e exigir penalidades à TAP (a empresa estava em risco de perder os 40 milhões avançados), que era uma empresa pública e no limite exigir ao Estado português e à Parpública essas penalidades, por via dos mecanismos legais portugueses”.