Índice
Índice
“O crime de terrorismo surge na acusação de forma um pouco estranha. João foi encontrado pelos agentes da Polícia Judiciária em casa, no local onde estavam as armas que pretendia usar. É manifesto que, não havendo esse indício de execução, este crime de terrorismo na forma tentada seria manifestamente improcedente”.
Estas foram as primeiras palavras do presidente do coletivo de juízes Nuno Costa, esta segunda-feira, na leitura da sentença de João C., depois de o Ministério Público ter dito, durante as alegações finais do julgamento da tentativa de ataque à Faculdade de Ciência da Universidade de Lisboa, que não tinha dúvidas de que o jovem de 19 anos praticou um crime de terrorismo na forma tentada, um de treino de terrorismo e outro de detenção de arma proibida, pedindo uma pena efetiva de prisão de, pelo menos, três anos. O tribunal, porém, absolveu esta segunda-feira João C. dos crimes de terrorismo e condenou-o a dois anos e nove meses de prisão efetiva por detenção de arma proibida.
Tal como aconteceu durante as três sessões de julgamento, João chegou à sala do tribunal algemado e acompanhado por dois agentes da PSP. De casaco azul, como sempre, sentou-se e ouviu a leitura da sentença, pela voz do juiz Nuno Costa. E, desta vez, além dos pais, do avô e de uma tia, esteve também presente o irmão do jovem que foi detido em fevereiro deste ano. No fim da leitura, a família despediu-se de João C., que continua sujeito a medida de coação privativa de liberdade.
Crime de terrorismo: as duas interpretações e o conceito de “repetibilidade”
O presidente do coletivo de juízes fez questão de referir duas vezes, durante a leitura da sentença, que a acusação do Ministério Público pelo crime de terrorismo era “um pouco estranha”. E o acórdão, a que o Observador teve acesso, faz precisamente uma análise daquilo que, segundo a lei portuguesa, é preciso para que se esteja perante um crime de terrorismo.
De facto, “o arguido tinha a intenção de matar indiscriminadamente pessoas integrantes da comunidade escolar da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa e de mostrar que o fenómeno dos assassinatos em massa também ocorre em Portugal”, refere o documento do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa. No entanto, aqui surgem outras duas questões apontadas pelo coletivo de juízes e que afastam a possibilidade de condenação por crime de terrorismo: a ideia de “repetibilidade” e de “atuação organizada”, associadas a este tipo de crime.
Ora, neste caso, o objetivo de João era morrer depois de levar a cabo o seu plano na Faculdade de Ciências — suicidar-se ou ser morto pela polícia –, o que faz com que a ideia de repetibilidade não se verifique, refere o acórdão, assumindo este dado “importância decisiva”. Mesmo que o seu plano, a ser executado, pudesse ser, mais tarde, imitado por outros jovens, o tribunal entendeu que esses acontecimentos seriam “incertos e podiam até nunca vir a ocorrer”.
“Acresce que o arguido anunciou o seu intuito de executar tal plano, contrariando o elemento-surpresa que costuma ser apontado como uma das características da atuação terrorista”, disse o coletivo de juízes, acrescentando que “não se apurou que o arguido pretendesse atuar em nome de qualquer organização”.
Não pode concluir-se pela aptidão da conduta que o arguido planeou executar para atingir o limiar mínimo de ofensividade na direção da paz pública.”
Esta interpretação é, por isso, diferente daquela que foi promovida pelo Ministério Público, quer na acusação, quer durante as alegações finais deste julgamento. Na última sessão, Ana Pais, procuradora do Ministério Público referiu que João C. queria “ser considerado um assassino em massa e ter os cinco minutos de fama”. “A marca de água do terrorismo é mesmo esta indiscriminação, porque qualquer um de nós pode ser o alvo desse ato. O Ministério Público entende que este elemento se verifica“, disse a procuradora.
O tribunal decidiu então absolver o jovem de 19 anos do crime de terrorismo na forma tentada e, por consequência, o crime de treino de terrorismo também não foi considerado. “Assim, os atos praticados pelo arguido a título de treino somente podem revelar em sede de detenção de arma proibida”, crime pelo qual João foi condenado.
Aliás, ainda em relação ao crime de treino de terrorismo, o acórdão conhecido esta segunda-feira assume que “os instrumentos que o arguido pretendia utilizar na execução do seu plano foram encontrados no interior da sua residência e, nessa medida, em momento algum houve lugar a uma conduta imediatamente perigosa“.
Então, o que foi dado como provado pelo tribunal?
No total, são 123 os factos que o coletivo de juízes deu como provados — entre a acusação do Ministério Público, as testemunhas ouvidas e os relatórios feitos. A saúde mental de João é um dos pontos fundamentais deste acórdão e, aliás, uma questão bastante abordada durante todo o julgamento. O tribunal sublinhou agora, como já tinha adiantado a mãe do jovem quando deu o seu testemunho na segunda sessão, que “o arguido apenas beneficiou da presença anual em consultas, sem que nunca tenha sido sugerido um acompanhamento mais especializado”.
Bom aluno a matemática, o estudante de Engenharia Informática começou a interessar-se “pelo fenómeno dos assassinos em massa” em 2012, quando tinha apenas 9 anos, “e visualizou notícias sobre o atirador Adam Lanza, de Newtown, Connecticut, EUA, um jovem de 20 anos que concretizou um ataque na escola primária dessa cidade e que vitimou 20 crianças”. E o acórdão conta mais: em 2018, “ganhou um fascínio e uma obsessão por conteúdos sobre violência, morte, assassinos e assassinatos em massa, tiroteios em escolas, tiroteios em massa e armas de fogo” e tinha já acesso a plataformas como o Discord, o Reddit e o Tumblr. Foi, aliás, no Discord que João disse a Rya, uma jovem com quem falava frequentemente, que estava a preparar um ataque na faculdade onde estudavam os dois.
Mais recentemente, adquiriu os objetos necessários e “efetuou pesquisas e visualizações online em que aprendeu a fabricar e a utilizar cocktails molotov“. E fez várias pesquisas como: “O que é melhor para um cocktail molotov, fluído de isqueiro ou gasolina?”
Ficou também provado que o seu plano começava às 13h00 do dia 10 de fevereiro, com uma visita ao centro comercial Vasco da Gama e que o ataque na Faculdade de Ciências tinha início às 13h20 do dia 11 de fevereiro e fim às 13h25. Provado ficou também que as armas que João tinha consigo quando foi detido estavam “prontas a ser utilizadas” e que o jovem “tinha a intenção de intimidar a comunidade escolar” da faculdade onde estudava.
Nesta altura, e tal como disse durante o julgamento um dos peritos da PJ, João C. tinha capacidade para distinguir o certo do errado. O acórdão valida essa versão.
O mundo alternativo do arguido não corresponde a um qualquer sintoma psicótico ou abnorme, antes correspondendo a um mecanismo de adaptação de tipo imaginativo, de natureza escapista, alicerçado nos interesses específicos prévios, que ocorreram num período em que aquele se encontrava clinicamente deprimido, com ideação suicida, em vivência de adversidade, não se identificando sintomas psicóticos ou abnormes, nomeadamente ideias delirantes ou fenómenos alucinatórios, entendendo-se que o designado mundo alternativo seguramente estava presente aquando da prática dos factos descritos, mas não determinou, de forma impositiva e para além do controlo do arguido”.
Juízes não aceitam que foi PJ a impedir ataque. Os factos que não ficaram provados
Depois de ouvir as alegações do Ministério Público, o arguido e ainda 12 testemunhas indicadas pela defesa, o coletivo de juízes considerou que não ficaram provados vários factos que constam na acusação. Uma das alegações que não ficou provada é precisamente a de que “o arguido não logrou concretizar e finalizar o plano de ataque à Faculdade de Ciências que tinha preparado e delineado, porque as autoridades o abordaram e evitaram, desta forma, a consumação das mortes, ofensas à integridade física, incêndio e explosões que ocorreria no dia seguinte a tal abordagem suceder”.
Esta decisão do tribunal, de não considerar que a atuação da polícia impediu diretamente o ataque na faculdade, foi, aliás, mencionada pelo jovem de 19 anos logo na primeira sessão de julgamento, quando explicou que adiou o plano quatro vezes. “Acho que não tinha coragem para matar uma pessoa. Sinto que era péssima a minha ideia, porque moralmente é errado matar uma pessoa”, disse João C. Além disso, o jovem confessou, também durante o julgamento, que teve conhecimento de que os inspetores da PJ estariam a monitorizar os seus passos.
Também não ficou provado que João “pretendia utilizar engenhos explosivos construídos de forma artesanal”, que desenhou o plano “por sentir ressentimento por se ter visto envolvido num caso de suspeitas de plágio num trabalho académico que apresentou”, que “adquiriu por si próprio conhecimentos e instrução sobre o fabrico de explosivos artesanais” e nem tampouco ficou provado que iriam estar cerca de 50 pessoas no anfiteatro da Faculdade de Ciências — ou que “a lâmina da faca de combate que o arguido adquiriu tinha uma lâmina de 16,9 centímetros”.
Os excessos da acusação do Ministério Público, segundo o coletivo
Primeiro, o tribunal afastou os crimes de terrorismo na forma tentada e de treino de terrorismo e, depois, ao longo do acórdão, além dos factos que considerou não estarem provados, foi acrescentando factos indicados pelo MP, que podem ter sido exageradamente indicados.
“A factualidade provada não permite concluir que o arguido tenha fabricado, ou sequer iniciado o processo de fabrico, de qualquer engenho explosivo improvisado, não podendo considerar que integra este conceito a mera posse de latas de spray“, considera o documento proferido pelo Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa.
E mais: “A faca de abertura manual com a inscrição “Staineless”, por ter uma lâmina de 8,5 centímetros, não é considerada arma branca”.
João não está pronto para sair. E a sociedade também não está pronta para o receber
Quando um arguido não tem antecedentes criminais e a pena de prisão aplicada é inferior a cinco anos, a mesma pode ser suspensa. No entanto, neste caso, o tribunal considerou que João terá de cumprir os dois anos e nove meses num estabelecimento prisional com acompanhamento psiquiátrico.
Já na reta final da leitura do acórdão, o presidente do coletivo de juízes considerou que o jovem ainda não está preparado para se integrar na comunidade e, além disso, a comunidade não estaria preparada para o receber. No acórdão, o coletivo de juízes explica que, apesar da absolvição pelos crimes de terrorismo, o perigo não foi eliminado: “As características pessoais do arguido que se consideram estar provadas, fazem com que continue a verificar-se relativamente ao mesmo, quer o perigo de continuação da atividade criminosa a que alude, quer o perigo de grave perturbação da ordem e da tranquilidade públicas igualmente referido no mesmo dispositivo legal, por se temer que possam surgir vítimas de crimes graves cometidos por aquele”.
Neste caso, além da prisão preventiva efetiva, nenhuma outra medida poderá ser aplicada, nem mesmo a prisão domiciliária, entende o tribunal. E uma das justificações começa pela família de João C., que “não se revelou contentora dos comportamentos” do jovem. A permanência na habitação, mesmo com pulseira eletrónica, “revela-se inadequada à remoção dos perigos de continuação da atividade criminosa e de grave perturbação da ordem e da tranquilidade públicas, nomeadamente por não permitir precaver a possibilidade de surgirem novas vítimas”.
Além disso, refere o acórdão proferido esta segunda-feira, “enquanto subsistir a anomalia psíquica de que o mesmo padece, em substituição da prisão preventiva, continuará a aguardar os ulteriores termos do processo sujeito a internamento preventivo no Hospital Prisional de São João de Deus, em Caxias”.
Caso transite em julgada a decisão, à pena de prisão vão ser descontados os meses em que João esteve privado de liberdade, desde o início do mês de fevereiro.
Defesa vai apresentar recurso? “Dois anos e nove meses é demasiado”
Depois da leitura da sentença, Jorge Pracana, advogado do arguido, adiantou ao Observador que ainda é cedo para confirmar se vai apresentar recurso de decisão proferida esta segunda-feira, mas considerou a aplicação de uma pena de quase três anos de prisão “um bocado exagerada”. “A pena máxima vai até cinco anos e dois anos e nove meses é demasiado“, acrescentou.
A defesa tem, desde o início do julgamento, apontado o dedo à Polícia Judiciária, sobretudo pela forma como esta polícia anunciou a detenção do jovem, em fevereiro, através de uma conferência de imprensa. “Não era necessário criar um alarme com aquela dimensão”, disse Jorge Pracana antes da primeira sessão de julgamento, em outubro deste ano.