Todas as pessoas originárias da ilha açoriana de Santa Maria têm algum laço familiar com George Perry. “Todas”, sublinha o neurocientista, que dedicou as últimas três décadas a desenhar a árvore genealógica da família. E esta é uma verdadeira sequóia: George Perry conseguiu recuar 62 gerações e descobrir que é descendente de D. Afonso Henriques, familiar indireto de Cristóvão Colombo e tem laços com os templários da Ordem de Cristo — os responsáveis pela origem açoriana do pai e da mãe, que depois se fixaram na Califórnia, terra natal do cientista.
Mas esta investigação é um mero hobby para George Perry. O verdadeiro esforço deste neurocientista é outro: contrariar 40 anos de investigação em torno do Alzheimer e derrubar a teoria vigente neste momento — a que defende que a verdadeira causa desta doença neurológica é a acumulação de uma proteína, a amilóide, no tecido cerebral; e que retirá-la o mais cedo possível impede o desenvolvimento da condição. George Perry recusa completamente esta tese: acha que a amilóide até é uma coisa boa e que a resposta pode estar num processo de enferrujamento do corpo. Mas nega que parar esse processo seja uma solução.
Conferência "Saúde: Construir o Futuro"
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A conferência digital “Saúde: Construir o Futuro”, do Conselho da Diáspora Portuguesa, vai acontecer a 6 de maio e conta com a participação, entre outros, de Durão Barroso, Manuel Sobrinho Simões, Maria Manuel Mota, Eugénia de Conceição-Heldt, Henrique Barros, Ronald de Pinho, Belinda Xavier, John Melo, Alexandre Tavares, Ana Tavares, Rahool Panadiker, Gabriela Gomes, George Perry e Gonçalo Bernardes.
Em entrevista ao Observador, em vésperas de participar na conferência digital “Saúde: Construir o Futuro”, do Conselho da Diáspora Portuguesa, George Perry fala sobre o impacto da pandemia na investigação sobre o Alzheimer, faz um balanço do estado da arte nesta área e explica detalhadamente por que acha que (quase) todos os seus colegas estão errados. Não teme ser visto como um pária, nem como um rebelde da neurociência. Desde criança que sabe lidar com a solidão: já na infância caçava animais e fazia dos seus crânios uma companhia.
É editor-chefe e fundador da maior revista científica dedicada ao Alzheimer. Várias revistas tiveram de se retractar e retirar estudos sobre a Covid-19 com erros. Isso é admissível numa pandemia?
Admissível… O processo de publicação científica geralmente auto-corrige-se. As pessoas submetem os artigos, enviam-nos para revisão por especialistas independentes e eles avaliam a credibilidade dos argumentos. Há sempre a possibilidade de as coisas não serem exatamente como parecem. Francamente, não estou a falar de fraude, mas sobre o facto de poder sempre haver interpretações diferentes dos dados.
Não posso falar desses casos específicos porque só os conheço da comunicação social, mas em todo o trabalho experimental há sempre a possibilidade de uma afirmação ser feita e de os revisores, que só podem avaliar os dados que lhes são apresentados, não repararem em alguns aspetos. Até porque nem todos os aspetos podem ser abordados experimentalmente, mesmo que se tente. Para mim é difícil comentar o caso da hidroxicloroquina, por exemplo, mas a Covid-19 trouxe-nos novos desafios por haver uma necessidade compreensível de nos mexermos mais rápido.
No Journal of Alzheimer’s Disease fui autor de alguns artigos sobre a Covid-19. Aqueles que fiz provavelmente não foram revolucionários — na verdade, escrevi alguns comentários a pedir às pessoas que fizessem mais trabalho. Por exemplo, estive envolvido em estudos a promover outros trabalhos que sugeriam que a vacinação contra o sarampo podia ter algum valor, baseado em estudos epidemiológicos. Estes estudos são conclusivos? Não, são sugestivos. Sabe, podia haver um tratamento a partir daí.
Que impacto teve na investigação sobre o Azheimer o facto de nestes meses ter havido um maior foco na tentativa de arranjar uma solução para a pandemia ?
Assim que a quarentena começou, tivemos um aumento de 30% na submissão de artigos para o nosso jornal — e acho que o número se mantém. Mas não acho que tenha levado a uma grande diminuição na investigação sobre Alzheimer. É que a maior parte das pessoas no mundo desenvolvido afetadas pela Covid-19 são pessoas com mais de 65 anos. E, dessas, uma grande parte tem Alzheimer. Tentei que várias organizações prestassem atenção a isto, mas não tive muito sucesso, mesmo estando nos comités consultivos de algumas delas.
Então, escrevi uma carta no Journal of Alzheimer’s Disease sugerindo que, com base naquilo que via em Nova Iorque e Nova Jérsia, possivelmente entre 25% e 40% das pessoas que morreram de Covid-19 tinha Alzheimer. E o motivo é que entre 50% e 80% das pessoas que morriam estavam em lares de idosos e, destes, 48% têm Alzheimer. Começou-se a falar disto, mas um pouco tarde: as pessoas que têm Alzheimer são duas vezes mais suscetíveis porque quem tem problemas neurológicos também tem problemas respiratórios, principalmente por estarem acamadas.
Era por isto que eu estava preocupado com a questão de debater os idosos e a forma como eles são tratados. Não tenho uma resposta para isto, mas não falar sobre isto… Acho que houve um vazio ético. Não sei se é assim em Portugal, mas acredito que seja assim na Europa e nos Estados Unidos, com populações mais idosas: a Covid-19 atacou mais as pessoas quando elas estavam em lares para idosos e provavelmente ainda mais pessoas que tinham problemas respiratórios, que são comuns nos doentes com Alzheimer, Parkinson e outros problemas neurológicos.
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Que balanço faz do estado da investigação nesse ramo?
São tempos incrivelmente depressivos e incrivelmente entusiasmantes ao mesmo tempo. O que é entusiasmante é que uma abordagem que eu critico há 25 anos está a começar a esmorecer — refiro-me à abordagem em que se argumenta que a doença é provocada pela proteína amiolóide. As pessoas foram bem sucedidas em retirar a proteína amilóide, mas os doentes não melhoraram. Neste momento há algumas autorizações pendentes na FDA [Food and Drug Administration] para um novo ensaio clínico envolvendo a proteína amilóide, mas não há evidência que sustente. Na verdade, os membros do conselho consultivo da FDA escreveram um carta no Journal of the American Medical Association a dizer que esse ensaio não devia ser aprovado, o que é uma coisa forte — noutra situação, eles iriam expressar-se pelos canais normais.
E a parte negativa?
A parte negativa é que nos últimos 20 anos não surgiu um tratamento, só um medicamento foi aprovado e o leque de fármacos — os cinco que estão aprovados nos Estados Unidos — só tratam os sintomas e não a doença, na melhor das hipóteses. Têm um benefício muito suave — suficiente para que as empresas sejam capazes de os vender e suficientes para as famílias os darem aos doentes, até porque têm poucos efeitos secundários. A ideia de uma vacina é ineficaz porque, na melhor das hipóteses, funciona tão bem como esses medicamentos. Na melhor das hipóteses, porque até isso é improvável — mas custa mais dinheiro, é mais invasiva e põe os doentes em risco de morte ou de reações adversas.
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O lado bom disto é que abre este ramo: tem havido muito mais financiamento na investigação do Alzheimer, pelo menos nos Estados Unidos e na China, que é o segundo maior investidor em investigações deste género do mundo. Nos Estados Unidos, nos últimos sete ou oito anos, o investimento aumentou pelo menos cinco vezes. Neste momento está nos três mil milhões de dólares [2,48 mil milhões de euros] por ano.
E quem está a investir: os governos ou as empresas farmacêuticas?
São coisas separadas. Não conheço os valores totais das farmacêuticas, mas sei de um ensaio clínico que a Biogen fez e que custou 1,5 mil milhões de dólares [1,2 mil milhões de euros]. Os ensaios clínicos são muito caros. Para se ver o efeito do Aricept [um medicamento aprovado pelo Infarmed também] ou de outros fármacos aprovados, como eles são tão ténues, é preciso acompanhar um grande número de pacientes por longos períodos de tempo. Isso significa que se tem de gastar muito dinheiro e tem de se ter muita organização. E também significa que se tem de encontrar doentes que sejam voluntários.
Só grandes empresas têm capacidade para fazer isto porque as pequenas farmacêuticas têm mais constrangimentos. É aqui que as empresas gastam muito do seu dinheiro: em ensaios clínicos e um pouco também no desenvolvimento do medicamento propriamente dito. Agora, como é que isso se compara com os gastos governamentais? Não consigo avaliar porque a maioria das informações sobre isto não são públicas. Conheço os dados da Biogen porque o CEO disse numa entrevista quanto é que gastava. Mas sei que, em média, o custo da fase três de um ensaio clínico de nível inferior custa 100 milhões de dólares [83 milhões de euros], também por causa da tecnologia de ponta que se usa para fazer imagiologia médica.
No seu caso, estuda o efeito do stress oxidativo na doença de Alzheimer. O que é isso?
Curiosamente, também estudei este processo com pessoas em Portugal porque tenho trabalhado desde há muito tempo com a Paula Moreira, de Coimbra. O que eu faço é… pode dizer-se que eu estudo o enferrujamento do corpo. Quando se come alguma coisa, a comida entra no nosso corpo e o organismo transforma-a em partes de nós, mas também em energia que abastece todas as nossas funções. E quando faz isso usa o oxigénio que inspiramos: assim como num carro a gasolina recebe oxigénio e liberta dióxido de carbono, nós também inspiramos oxigénio e libertamos dióxido de carbono. O oxigénio passa por uma pequena estrutura nas células chamada mitocôndria. Mas, no caminho até lá, o oxigénio cruza-se com ferro e com cobre e reduz estes metais, oxida-os, tal como outro metal enferrujado. É assim que a energia é produzida no corpo. Bem, o stress oxidativo é praticamente a mesma coisa. Significa que, quando o oxigénio entra no nosso corpo, em vez de fazer este processo em que oxida a comida, ele oxida-nos a nós. É um efeito secundário: as mitocôndrias produzem algum produto secundário — assim como um motor a gasolina não é 100% eficiente, nós também não somos 100% eficientes. Então, esses produtos secundários reagem com o ferro e o cobre e causam mudanças oxidativas, ferrugem no corpo.
Mas se isto é bom ou mau depende do contexto. Quando se é como a Marta, jovem e cheia de vida, é tranquilo. Mas à medida que se envelhece, torna-se cada vez mais um problema porque o corpo se torna menos capaz de lutar contra isto. Isto tende a acumular-se. A minha equipa e eu fomos os primeiros a documentar que este processo de aumento de oxidação ocorre durante a doença de Alzheimer. Mas o que ainda não publicámos é que isto começa a acontecer quando as pessoas têm 30 e muitos anos ou 40 e poucos, embora em pequena extensão.
Podemos detetar os sinais químicos nessas idades e saber se aquela pessoa vai ter Alzheimer?
Bem, se olharmos globalmente para este assunto… Eu ainda não escrevi nada sobre este efeito, porque realmente não é fácil de explicar. Nós não sabemos como as alterações que ocorrem quando se têm essas idades e se é saudável se relacionam com a doença de Alzheimer. Quer dizer: são as mesmas mudanças, mas num nível mais baixo. Mas a transição para a doença… Tenho umas ideias sobre isso, muitas ideias.
Que ideias são essas?
A minha ideia é que, à medida que envelhecemos, o nosso corpo entra numa constante mudança para nos manter normais. A questão fulcral é que, se tiver um avô ou um bisavô ou outra pessoa idosa perto de si, sabe que há pessoas com 90 anos que são funcionais, conseguem cuidar de si mesmas e são felizes, mas há outras com 70 anos que já estão a passar pelo Alzheimer e por outro tipo de doenças. Porquê? O problema é que muitas das alterações que descrevemos como parte da patologia, parte de envelhecer e parte das doenças da velhice são mudanças que, na verdade, são importantes para nos mantermos normais. O que acontece é que em algum momento à medida que se envelhece, o sistema falha. E quando falha, o metabolismo muda.
Há um momento de viragem, um ponto de inflexão.
É exatamente isso que eu acho. Quando olhamos para o stress oxidativo percebemos que o nível mais alto dele ocorre na primeira parte da doença. Na maioria das pessoas, ele dispara e depois diminui à medida que a doença evolui. Por isso é que acho que há uma troca metabólica a certa altura. Para estudar isto, nós olhámos para os esquilos terrestres hibernantes no Alasca. E também estudei tartarugas hibernantes, acho que motivado pela minha formação inicial enquanto biólogo marinho.
Já voltamos às tartarugas e aos esquilos, então. Como é que passou de ser um biólogo marinho para estudar o cérebro?
No meu doutoramento em biologia marinha eu estudava o mesmo processo: o efeito do stress oxidativo no metabolismo e na fertilização. Mas as oportunidades de trabalho para um biólogo marinho são muito menores do que para um investigador biomédico. E também não queria ficar numa estação marinha pequena. Tinha passado dois anos na Estação Marinha de Stanford, que é muito grande e antiga, daí fui para a Estação Marinha de Hopkins, que é muito mais pequena. Não gostei, era muito isolado e não havia pessoas. E eu era um estudante, queria era um ambiente mais entusiasmante. Achei que mentalmente não conseguia lidar com aquilo.
Como foi a sua infância?
Cresci num lugar extraordinariamente bonito, onde agora também vivo. O meu pai era um fazendeiro arrendatário em Point Conception — o terreno pertencia a outra família, que era muito rica, e o meu pai fez um leasing. Ele dizia: “Se eu comprar uma terra, isso significa que os meus filhos se vão tornar agricultores, porque vão herdar o terreno”. Ele gostava do que fazia, mas achava que aquilo não era para nós. Esta terra tem 20 mil acres [8.000 hectares] e não mais do que 15 pessoas moravam aqui. Por isso cresci nesta área, que era extremamente virgem e não havia grande coisa para fazer além de caçar e fazer coisas relacionadas com agricultura. Também não tinha companhia porque estava isolado de tudo, até o meu irmão e a minha irmã viviam na cidade porque dali era demasiado difícil chegar à escola — eu fui para uma escola que só tinha uma turma para toda a gente do primeiro ano ao oitavo. De modo que passei muito tempo ali e ocupava-o a estudar animais.
O que é que lhes fazia?
Caçava-os e limpava os crânios. Tinha uma enorme coleção de crânios de animais marinhos e insetos também. Já os doei. Tenho duas filhas, perguntei-lhes se queriam herdar aquilo e elas disseram que nem por isso. Então, doei quase tudo ao Museu de História Natural de Cleveland — é o que tem o esqueleto da Lucy. Disseram-me que era a maior coleção que alguém alguma vez lhes tinha doado. Uma parte doei também a escolas secundárias. E outra parte guardei para o caso de as minhas filhas mudarem de ideias. Acho que herdei do meu pai o interesse em tentar compreender todas as coisas que estavam à minha volta. Começou aí e agora, quando faço as coisas, faço-as exaustivamente, não faço as coisas pela metade.
Os seus pais eram açorianos. Ainda tem ligação com a sua família portuguesa?
Sim, na verdade um dos meus hobbies é a genealogia. Visitei Portugal pela primeira vez nos anos 90, mas só passei por Lisboa. Na segunda vez fui convidado pelo Carlos Garcia, que era neurologista na Universidade de Lisboa, e fui aos Açores. Tenho familiares distantes lá, então perguntei à minha família na América por alguns contactos. Fui a Santa Maria, a ilha do meu pai, e ao Pico, que é a ilha da minha mãe. Não conhecia nenhuma destas pessoas ou quão próximas eram de mim, por isso tive a ideia de tentar mesmo entender quais eram os meus laços com elas. Primeiro, comecei a tentar perceber porque é que eles foram embora. Achei que era por causa da pobreza, mas o lado da minha mãe não me parecia assim tão empobrecido — sobre o lado do meu pai, não consegui perceber. Depois percebi que as ilhas tinham população a mais e que havia poucas oportunidades. Só consegui realmente compreender a história da minha família ao fim de uns 15 anos. Comecei por fazer uma lista de todas as pessoas vivas e entrevistá-las. Mas foi mesmo complicado porque a maioria das pessoas só conhece a árvore genealógica até aos avós. Através de bases de dados, consegui rastrear a família do meu pai até meados do século XV.
E em relação à sua família materna?
Fui ainda mais longe, fui até ao século II. Apanhei um batalhão de antepassados que vieram de Espanha por causa do Infante Dom Henrique de Avis para se dedicarem ao cultivo de canas de açúcar. Depois percebi que eu tinha algum tipo de laço familiar com todas as pessoas da ilha de Santa Maria. Todas! Não há uma pessoa que não seja meu familiar. Também tenho laços com… Enfim, consegui 62 gerações. Sou um descendente direto do primeiro rei de Portugal e até o Cristóvão Colombo faz parte da minha família, embora não seja um descendente direto.
Conseguiu descobrir como é que a sua família saiu do Continente para as ilhas?
Esta parte da família que saiu de Espanha, eles eram templários da Ordem de Cristo e as crianças eram templários da Ordem de San Diego. Cheguei a pensar que talvez tivessem saído porque eram judeus, com receio da Inquisição, mas não.
Voltemos então às experiências com tartarugas e esquilos. Como é que esses animais podem ajudar a compreender o Alzheimer em humanos?
Nós escolhemos os esquilos e as tartarugas porque eles baixam o metabolismo para praticamente zero durante a hibernação. E isso era o que eu queria compreender: nós sabemos que o impulsionador do stress oxidativo é o metabolismo, o fluxo de oxigénio e de comida que passa pelo corpo. Por isso, queríamos compreender como é que o cérebro podia baixar o consumo de oxigénio para zero. Nós, humanos, não podemos: temos de ter um fluxo constante de energia a passar por nós, senão morremos.
O estudo com as tartarugas não deu em nada. Mas descobrimos que, durante a hibernação nos esquilos, o cérebro é refratário a danos. Estes esquilos hibernam em túneis e diminuem a temperatura deles a -3ºC e assim diminuem o metabolismo a níveis extremamente baixos. Enquanto estão nesse estado, é impossível que os neurónios morram. Mas isto é uma adaptação evolucionária completa. Nós não estamos completamente adaptados ao Alzheimer.
E não podemos de alguma forma mimetizar esse fenómeno em humanos?
Acho que não. As pessoas conseguem arrefecer o cérebro para diminuir os danos, mas apenas em alguns graus. Nós fizemos aquela experiência porque queríamos perceber como é que os neurónios podem evitar a morte, uma vez que uma das características mais importantes da doença de Alzheimer é a morte dos neurónios. Mas, no nosso caso, acho que a resposta está naquele ponto de viragem. Há uns anos descobrimos uma enzima que é induzida pela doença de Alzheimer. É um marcador para a alteração metabólica.
E quais são os primeiros sinais externos desse ponto de viragem?
A maior parte das pessoas diagnosticadas com Alzheimer têm mais de 85 anos. Primeiro, podem ver-se alguns problemas de humor. E outro sintoma são alguns tipos de esquecimentos. Mas vamos lá ver: se perdeu as chaves e não sabe onde as guardou, deve preocupar-se? Não, mas se não sabe para que servem as chaves do carro, então sim.
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Mas pode ser mais complexo do que isto. Uma teoria que está a emergir e que ainda não foi completamente desenvolvida é que a doença de Alzheimer pode ser uma coleção de doenças, todas com um fenótipo semelhante. Mas pode haver muitas coisas que causam esta doença. E, por causa da heterogeneidade da doença, é difícil perceber tudo. Como referi, um dos sintomas podem ser problemas de humor, mas algumas pessoas tornam-se mais agressivas e isto pode realmente ser um problema para quem cuida delas.
A culpa é dessa enzima que mencionou?
É, por causa do efeito em algumas das partes basais do cérebro e da amígdala. A maior parte das pessoas que têm Alzheimer começam por ter perda de memória a curto prazo, mas depois ela evoluiu para uma perda de memória a longo prazo. Porquê? Porque ela se espalha para o córtex e impede essas ligações. Algumas pessoas são afetadas na zona que relativa ao humor, por exemplo.
Onde entra a amilóide? Pode explicar-me a teoria baseada nela e por que acha que a sua é melhor?
Bem, eu estudei profundamente as proteínas amilóides, por isso não é que eu não esteja interessado nelas. Esta proteína foi descoberta no início da década de 80, poucos anos depois de eu ter entrado neste ramo — eu entrei em 1982 e ela foi descoberta em 1984. É uma proteína que forma umas placas que são características da doença de Alzheimer e também estão em depósitos nos vasos sanguíneos. À medida que a doença avança, a placa substitui a camada muscular dos vasos sanguíneos, o que os torna muito frágeis.
Depois, em 1987, o gene que provoca isto foi clonado e um pouco mais tarde descobriu-se que podia haver mutações. Ou seja, há algumas formas raras de doença de Alzheimer que são hereditárias. E descobriu-se que algumas dessas pessoas têm mutações nesta proteína. É uma proteína grande, tem 700 aminoácidos, mas depois um fragmento dela, uma peça, é cortada e forma fibras. Isso é a amilóide. Mas há muitas outras proteínas que têm propriedades similares e algumas estão associadas a doenças neurológicas e sistémicas.
Nessa altura, no fim dos anos 80 e início dos anos 90, a ideia era que esta mutação existia, ela foi considerada a causa da doença, de modo que, se removêssemos esta proteína, isso impediria que ela continuasse a formar-se e apagaríamos o Alzheimer. Teríamos um tratamento. Essa ideia foi testada com muitos recursos e tornou-se a área de investigação dominante.
Qual é o problema desta teoria?
A hipótese da amilóide em cascata, sugerida por John Hardy, foi testada em ratos e o trabalho… É assim: se criarmos ratinhos, se pusermos neles genes humanos, se originarmos estes depósitos de amilóide e se conseguirmos remover a amilóide, eles ficam melhores. Isto é como pôr um saco de plástico na cabeça: fica-se com uma dificuldade respiratória e pode ser fatal, mas se tirarmos o saco da cabeça fica-se curado. Ou seja, cria-se o problema e retira-se o problema. Claro que se fica melhor, mas isso não nos diz nada sobre o problema em si. Isto não importa porque esta não é a doença humana.
Há animais que desenvolvem mudanças semelhantes ao Alzheimer à medida que envelhecem, como os cães e os primatas. Mas eles mal são estudados. Por outro lado, nesses estudos as pessoas põem os tais sacos de plástico nos animais. Eles são úteis nestes estudos — eu mesmo uso estes animais, mas não assumo que estou a abordar o Alzheimer. Estou a abordar questões mais pequenas.
Mas, pronto, os ratos foram curados. Por volta do ano 2000, as pessoas começaram a investir mesmo em tentar tratar humanos e fizeram pelo menos 19 grandes ensaios clínicos com a abordagem da vacina. Nenhum teve benefício em produzir melhoras nos pacientes. Eles dizem que a amilóide causa a doença — causa! E já volto a isto porque demorei imenso tempo a tentar compreender o problema disto. Mas enfim: se ela causa a doença e se a removemos, porque é que pelo menos alguns doentes não ficaram melhores? É que nenhum ficou melhor!
A única coisa que se quer provar com este estudo que está a tentar ser aprovado é que [as placas de amilóides] podem diminuir um pouco o impacto da doença. Isso não seria assim tão inconsistente com a minha visão porque eu acho que a amilóide tem um papel importante.
Então quais são exatamente as suas críticas?
Primeiro, não há provas de que a amilóide seja a causa da doença. Isso já foi testado do modo mais rigoroso possível — em humanos, tiraram a amilóide e eles não melhoraram. Agora argumentam que foi porque não tiraram mais cedo, mas isso é inventado: se fosse preciso tratar mais cedo, então tínhamos de começar no útero porque este processo nunca acaba. Aliás, os voluntários do estudo da Biogen foram analisados extremamente cedo, eram da fase mais precoce que se consegue ter. Eles era pessoas cognitivamente normais com altos níveis de amilóide, mas a idade não é a questão: se começarmos a tratar pessoas normais aos 50 anos, temos de as acompanhar por 20 anos. Não é prático e é custoso.
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O problema da causalidade é que, quando se fazem estudos genéticos, obtém-se um número estatístico. Isso significa que não estamos a falar de causalidade, mas sim de associação. E este é o problema: não compreender as evidências genéticas. Há uns anos disseram-me que as minhas ideias eram anti-Mendelianas. E eu pus-me a pensar: “Como é que eu posso ser anti-Mendel?”. Perguntei à pessoa mais proeminente na área da genética e ela não me soube responder, comprei livros e li sobre a matemática da causalidade e… Uau, não é fácil compreender o que é a causalidade, nem sequer de um ponto de vista filosófico.
O que eu sei é que a evidência não tem nada a ver com causalidade, mas sim com associação. Podem fazer-se estatísticas para compreender se dois eventos são comuns, mas para compreendê-los realmente é preciso analisá-los de fio a pavio. Infelizmente, os ratinhos não fazem isso porque neles nós estamos a provocar o problema. Já escrevi muito sobre isto e digo que a ideia de remover a amilóide para tratar o Alzheimer não é diferente de usar sanguessugas e exorcismo. Isto é baseado na ideia de que o que é feio numa pessoa é mau — mas como é que se sabe o contexto em que isto ocorre?
Como emerge finalmente a sua teoria do stress oxidativo?
Primeiro, nós pensámos realmente que a amilóide podia ser causativa, por isso estudámo-la. A certa altura, quisemos compreender como é que ela se relaciona com o stress oxidativo, que estávamos a estudar paralelamente, e descobri esta propriedade estranha: sempre que encontrávamos mais amilóide, encontrávamos menos stress oxidativo.
Nesse caso, a amilóide seria uma coisa boa, é isso?
Foi exatamente isso que escrevemos, o que deixou muita gente infeliz. Dissemos que a amilóide estava a funcionar como se fosse… Comparei a amilóide a um bombeiro e a um incendiário. Imagine que a Marta, por ser jornalista, vai cobrir o incêndio. No momento em que chega, vai ver um bombeiro a deitar água para cima do fogo, destruindo a casa. Se não souber o contexto do que estava a acontecer — que um incendiário tinha provocado o fogo — podia muito bem pensar que o bombeiro estava a destruir a casa. Não saberia que, 10 minutos antes, um incendiário tinha estado lá.
Ou seja, alguma coisa tinha acontecido antes, essa coisa era o verdadeiro problema e aquilo era apenas a resposta, que pode ter aspetos bons e maus. No meu ponto de vista, a amilóide é como uma inflamação. O que nos tinham prometido com a hipótese da amilóide em cascata é que isto seria uma cura, que retirá-la reverteria o problema e restauraria a vida normal nas pessoas com Alzheimer. Mas mudar a resposta não vai fazer isso, só vai alterar um pouco o rumo da doença.
Corrigir a amilóide não ajuda assim tanto, mas corrigir o stress oxidativo sim?
Também não é tão fácil assim. Se pudermos reduzir o stress oxidativo, será que ele é sempre reduzido? Também pode estar lá porque tem um propósito. Certo é que na doença de Alzheimer, no síndrome de Down e noutras doenças, quando se encontra mais amilóide, encontra-se menos stress oxidativo — e essas duas coisas estão correlacionadas. Mas como é que isto funciona? Nós olhámos para a amilóide no cérebro e descobrimos muito cobre e ferro. E isso é o que mais estamos a estudar neste momento. Também estudamos as mitocôndrias, que é provavelmente de onde esses metais vêm.
Num paper que aceitámos esta semana, descobrimos que conseguimos encontrar partículas de cobre e de ferro em placas de proteínas amilóides; e esta é a primeira vez que elas são encontradas no corpo humano. Uma interpretação simples para isto é que a amilóde está a encontrar estes metais e a impedi-los de causar stress oxidativo. Mas eu vou mais longe: acho que esta é uma das suas funções normais. Quando se tem a mitocôndria, que normalmente tem de ser degradada na célula… tudo no nosso corpo tem de ser degradado e feito de novo, exceto o ADN, que pode ser transformado. Mas isso não faz parte do seu metabolismo e, com tudo o resto, se alguém tem 90 anos, o seu corpo na verdade não tem 90 anos, só o ADN é que vai ter. Mas quando a mitocôndria é degrada, liberta todos estes metais. E eles são tóxicos quando estão livres, por isso é preciso ter maneira de os manter sob controlo. Eu acho que a amilóide faz parte disso.
Se me perguntar se isso já foi demonstrado de forma convincente, respondo que não, mas certamente que a amilóide cabe nesse caminho de pensamento. O que acontece quando as pessoas envelhecem é que se vê que as coisas que trabalham muito bem em alguém com 20 anos já não trabalham tão bem, por isso tornam-se mais óbvias, mas estão a trabalhar para manter a pessoa normal. Eu ensino biologia e falamos de moléculas a toda a hora, como elas justificam estes processos. Mas a verdade é que tudo o que importa é se a pessoa é funcional. Se estivesse numa sociedade muito primitiva, se conseguir fugir de um leão ou caçar para sobreviver, essa pessoa é funcional. Se o cérebro está cheio de placas, isso não faz realmente diferença. Mesmo uma pessoa jovem: se tiver o cérebro cheio de placas, alguém ia deixar de sair consigo por tê-las? Eles não saberiam, só teria impacto de fosse demente. Ou seja, a funcionalidade é um elemento importante em tudo isto.
Vê-se como um insurgente no seu campo de investigação?
Não. Eu tenho é as minhas próprias visões. Ao princípio, adoto sempre as visões das outras pessoas, é assim que começo. Depois penso: “Isto é preditivo? Posso aprender com esta ideia?”. Não sei se assumo à partida que uma ideia está certa ou errada, mas penso sobre ela e penso em previsões sobre o que ela significa. Se essas previsões se mantiverem de pé com base nessas ideias, assumo que a ideia provavelmente é útil.
Devo ser assim por ter crescido numa quinta, muito isolado, por isso não sinto necessidade de ter outro tipo de reconhecimento. Não é que não goste de ser validado pelos outros. Fico surpreendido quando as pessoas dizem que sou um rebelde ou dissidente porque eu, na verdade, sou muito tímido e envergonhado. Só que, como cientista, acho que é importante ir para onde os dados nos levarem. Pode-se sonhar com coisas e tentar concretizá-las — e se a teoria amilóide estivesse correta, eu tê-la-ia seguido a 100%. Em vez disso, sou dos poucos que a contraria. Tenho sido dos poucos a escrever sobre isso, eu e o meu colega temos escrito as histórias mais tolas que podíamos escrever para tornar isto mais interessante. Mas está a tornar-se difícil para nós ter novas ideias.
Não está a atacar a teoria, então?
Não, só questionamos porque é que as pessoas não estão a considerar outras possibilidades. Diziam que o maior teste ia ser aquele ensaio clínico em humanos. Mas, quando os resultados foram negativos, em vez de admitirem que a teoria tinha de ser modificada, surgiram com uma teoria nova e mais abstrata. Na verdade, o que eles inventaram foi uma teoria virtualmente impossível de testar. E quando as coisas se tornam impossíveis de testar deixam de ser ciência.
Passam a ser o quê?
Filosofia ou religião. Não se consegue realmente testar se Jesus Cristo ressuscitou na Páscoa, certo? E mesmo que alguém conseguisse provar que isso aconteceu, o resultado ainda teria de ser reproduzido para ser confirmado. Esta coisa de termos de tratar os pacientes mais cedo? Isto não tem fim! Quando dizem que não conseguiram tratar a doença porque já havia demasiados danos no cérebro… tanto quanto sabemos o cérebro é capaz de se reparar sozinho ainda um bocado, por isso nem toda a gente ia melhorar — mas nem uma melhorou em milhares de pessoas.
Ao mesmo tempo que isto acontece com os ensaios com a amilóide, estamos a ter mais trabalho que sugere mais a linha do stress oxidativo; e que diz que as pessoas que fazem exercício físico, têm uma boa nutrição e dormem bem diminuem a probabilidade de ter Alzheimer. Ela está a evoluir de uma doença com base genética para uma coisa mais parecida com uma doença coronária, uma vez que, embora algumas pessoas tenham problemas cardíacos hereditários, na maioria é uma combinação de genes e ambiente e outras coisas.
A minha bisavó tinha Alzheimer. Se pensarmos no estilo de vida que a geração dela tinha e que a minha tem, estou mais propensa a ter Alzheimer do que ela estava?
Se olharmos para o mundo em geral, provavelmente as pessoas estão a colocar-se em maior risco porque muita gente está a ficar mais pesada, têm síndromes metabólicas, diabetes tipo II, provavelmente fazem menos exercício. Todas estas coisas estão relacionadas com o metabolismo.
Tomar antioxidantes resultaria para colmatar isso?
Nós olhámos para isso em meados dos anos 90 e não encontrámos evidências de que tomar suplementos teria um grande benefício, de todo. O corpo arranja sempre forma de se auto-regular, a não ser que tenha uma deficiência. Se a sua dieta não for equilibrada, então é um problema. Mas se comer uma dieta equilibrada, com caldo verde e bacalhau… Bem, a verdade é que o sal não é assim tão bom e os portugueses têm um problema com o sal, é uma causa de morte importante em Portugal. O mesmo acontece no Japão, já agora: as pessoas que comem comida tradicional japonesa tendem a ter mais ataques cardíacos. As pessoas tendem a enfatizar que eles não têm doenças coronárias, mas eles têm mais AVCs do que os ocidentais.
Mas, bom, a razão para isto é que estes antioxidantes são quimicamente redundantes e interagem com estes metais, causando outros problemas. A diferença com a dieta não tem a ver com as vitaminas, tem a ver com as coisas que não são vitaminas. O efeitos delas é mais homeopático: quando se come plantas, come-se também as toxinas das plantas, mesmo que elas induzam alguma proteção em nós. Se isso vai ser a cura para a doença? Não, acho que vai ser como as doenças de coração, em que se tomam coisas para diminuir os triglicéridos, coisas para diminuir o colesterol, coisas para diminuir a pressão arterial, faz-se exercício, reduz-se o stress… E todas essas coisas têm um grande benefício para a saúde pública.
Infelizmente, com o Alzheimer, não temos nada que modifique a doença de todo porque temos estado sempre a olhar para a amilóide como uma coisa má, o diabo que temos de tirar de dentro das pessoas, em vez de compreendermos que provavelmente tem um papel importante que é preciso conhecer melhor.
Cientistas anunciam nova estratégia de combate à doença de Alzheimer
Atrasaram-se outras linhas de investigação por se preferir esta, que é a dominante?
Totalmente. E se este ensaio clínico que está em aprovação receber luz verde, vai atrasar o ensaio da Biogen, o que coloca muita pressão política, não uma pressão científica: o argumento é que não se aprova nenhum medicamento contra o Alzheimer há 20 anos. Mas isso significa que temos de aprovar um medicamento que não funciona? Esta questão inibiu o campo de investigação por uns 20 ou 30 anos. Pode dizer-me: “Está bem, mas só sabemos disso agora”. E eu respondo-lhe: eu sabia disso há 20 anos. Era óbvio!
Como é que era óbvio para si e não para os outros?
Como sou treinado como biólogo… A teoria amilóide é intrinsecamente uma nova ideia para a biologia. Eu acho que as pessoas neste campo não compreenderam isso porque não percebem de biologia — e aqui refiro-me a níveis muito básicos de biologia. Tudo o que o nosso corpo faz deve ter um benefício para nós porque está adaptado, senão tínhamo-nos extinto há muito tempo. Quer dizer: a amilóde é produzida no nosso corpo a toda a hora, mesmo quando somos jovens e estamos saudáveis. Então, porque é que teríamos uma resposta que é intrinsecamente sempre má?
Além disso, todas as boas respostas também são más — depende da concentração, certo? Se consumir demasiado de qualquer coisa na sua vida, é fatal. A amilóide é uma molécula biológica forte, por isso, quando a colocamos em ratinhos, claro que vai ter um efeito — bom ou mau. Mas isso não nos diz nada, só nos diz que a molécula está ativa. Mas o que quis dizer é que a ideia que foi proposta foi baseada num nível de biologia mais baixo que o de um caloiro.