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RODRIGO MENDES/OBSERVADOR

RODRIGO MENDES/OBSERVADOR

Teresa Veiga: esquiva e incerta, como nos sonhos

Praticamente anónima, a escritora revela-se exímia na arte do conto e na construção de uma voz e de um estilo próprios. O novo livro "Vermelho Delicado" leva-nos de volta a uma obra ímpar.

Uma das formas possíveis de iniciar conversas ou exposições de ideias acerca de determinado livro de ficção consiste em discorrer sobre a vida da pessoa que o escreveu. Nos dias de hoje, essa prática tende a ser valorizada porque ajuda a dar resposta a grande parte das perguntas que os leitores costumam fazer ao virar de cada página. Essas perguntas anseiam esclarecer as semelhanças entre a experiência das personagens e a do seu autor, bem como o grau de legitimação que a segunda confere à descrição da primeira: se o escritor viveu ou sentiu alguma coisa, então talvez possa escrever melhor sobre personagens que vivem e sentem essa coisa. Este tipo de abordagem literária está na moda e acaba a valorizar tanto ou mais a vida do que a arte, e a promover, entre outras confusões, o casamento da palavra ‘auto’ com a palavra “ficção”.

Fora de moda parecem pelo contrário os escritores que impedem que se discorra sobre a sua vida, evitando coisas como entrevistas, declarações políticas, reels ou contas de instagram. Não sendo uma novidade na História da Literatura, privilegiar o anonimato da escrita é uma prática cada vez mais rara, e vai contra o espírito do tempo, as propensões do mercado editorial e as abordagens de leitura acima descritas. Neste contexto, os escritores anónimos são aparentemente movidos por duas crenças em vias de extinção: a de que devem ser julgados pelo que escrevem e não pelo que vivem, e a de que a arte, servindo ou não para imitar a vida, vale sempre mais do que ela. Parece ser este o caso da escritora que, desde 1981, assina livros com o nome Teresa Veiga.

Sobre a sua vida, pouco sabemos: um boato, entretanto desmentido, de que seria um homem; uma ou outra fotografia captada em eventos literários que visaram distingui-la e que não evidenciam nada para além do facto de aparentar ser, realmente, uma mulher; uma pequena nota biográfica que costuma acompanhar os seus livros e que a dão como nascida em Lisboa, licenciada em Direito e em Filologia Românica, professora, conservadora dos Registos e notária no Alentejo e no Algarve.

A ausência de exposição biográfica obriga o leitor que queira conversar ou expor uma ideia sobre Teresa Veiga a debruçar-se exclusivamente sobre a ficção. Quanto a isso, sabemos cada vez mais: entre 1981 e 2022, publicou nove livros, entre volumes de contos, novelas e romances. Ao longo desses anos, Teresa Veiga foi distinguida com vários prémios literários, entre eles o Grande Prémio do Conto Camilo Castelo Branco/APE (por três vezes), e sobre ela se estabeleceu a qualificação de “grande contista”, “a mais genial contista da literatura portuguesa contemporânea” ou “um dos nomes mais importantes da nossa ficção actual”. De Teresa Veiga importa, pois, conversar e expor ideias sobre o que vale a pena: a sua arte e, mais especificamente, a arte dos seus contos. A recente publicação de Vermelho Delicado é para isso um óptimo pretexto.

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"Um dos traços mais interessantes da sua prosa é aquilo a que podemos chamar de "jogo de perspectiva". Teresa Veiga parece estar constantemente a alertar-nos para o facto de a verdade de uma história estar dependente de uma descrição, sendo essa descrição por sua vez condicionada por uma perspectiva: a mesma história contada por duas pessoas diferentes, por exemplo, contém duas verdades diferentes."

Chegados agora a este décimo livro, podemos dizer sobre toda a obra de Teresa Veiga em geral o que em particular se dizia na badana do seu livro de estreia (Jacobo e Outras Histórias, Círculo de Leitores, 1981): “contos […] escritos por Teresa Veiga em épocas diferentes mas, no seu conjunto, não são muito desiguais”. Essa tendencial igualdade entre os contos é o tipo de igualdade que associamos ao elogio mais do que à desaprovação, à consistência mais do que à falta de versatilidade: Teresa Veiga tem um estilo e uma voz próprios.

Os sete contos que integram este Vermelho Delicado pertencem ao universo temático e estilístico que a autora tem construído ao longo da sua obra.

A característica mais óbvia desse universo, e que une também todos estes sete contos, é a centralidade das personagens femininas: em quase todos os contos (à excepção de “Betânia”), o enredo é narrado ou protagonizado por pelo menos uma mulher: empregadas domésticas, donas de casa verdadeiras e a fingir, filhas de empregadas domésticas, filhas de donas de casa, mães, mulheres que não querem ter filhas, viúvas, desaparecidas, alegadas homicidas e alegadas assassinadas. Todas elas se vão expondo, directa ou indirectamente, na primeira ou na terceira pessoa, quase sempre através do contacto com homens. Mas esta característica, que frequentemente se vê abreviada com recurso ao chavão “escrita feminina”, responde-nos apenas (de forma imprecisa e vaga, própria dos chavões) à pergunta “quem?”, deixando sem resposta a pergunta certa para nos ajudar talvez a explicar a mestria narrativa de Teresa Veiga, bem como a legitimidade das qualificações que a determinam como grande contista: “como?”.

Um dos traços mais interessantes da sua prosa é aquilo a que podemos chamar de “jogo de perspectiva”. Teresa Veiga parece estar constantemente a alertar-nos para o facto de a verdade de uma história estar dependente de uma descrição, sendo essa descrição por sua vez condicionada por uma perspectiva: a mesma história contada por duas pessoas diferentes, por exemplo, contém duas verdades diferentes. O conto “Estalagem de Aldebarã”, protagonizado por uma mulher contratada para encarnar na pessoa da falecida proprietária e que a determinado momento deseja fugir com um dos visitantes da estalagem, é um exemplo disso: o conto divide-se em duas partes, uma contada por ela, outra por ele. Este “jogo de perspectiva” ganha especial interesse quando jogado por uma só pessoa, como no conto “Betânia”, em que um engenheiro emigrado em França conta várias versões de um suposto reencontro com Betânia, ou quando a jogada de perspectiva é espoletada por elementos externos a quem conta a história, como nas vezes em que o detalhe do efeito provocado pela luz solar muda a perspectiva que se tem de uma determinada personagem, rua ou acontecimento.

A capa de "Vermelho Delicado", de Teresa Veiga (edição da Tinta da China)

É que, em Teresa Veiga, como em qualquer bom contista, cada detalhe conta: o facto de não haver palavras a mais (como muitas vezes se diz quando se fala acerca da economia, rigor e sobriedade com que escreve) implica necessariamente que cada palavra tenha uma função importante, mesmo quando parece excedentária. A descrição da roupa das personagens serve, por exemplo, para pressagiar o que lhes vai acontecer, ou para manifestar aquilo que são, ou até o que queriam ser, como quando uma das personagens fala da sua roupa como “uma projecção do que poderia ter sido se a vida não me tivesse sido tão madrasta”. Sabermos, de passagem, que uma das personagens está a ler determinado livro pode passar como uma informação inútil, mas a escolha daquele livro é na verdade a manifestação de algo importante sobre o conto, como quando a narradora de “A Estalagem Aldebarã” refere a certo ponto que leu e adorou “A Mulher de Branco”: o leitor de Teresa Veiga que se dê ao trabalho de investigar o pormenor poderá chegar à conclusão de que se trata do livro de Wikkie Collins, que, entre outras coisas, aborda o tema do papel social da mulher e é contado por diferentes narradores, tal como este conto de Teresa Veiga que subtilmente o refere. Os livros, as roupas e outros detalhes que à primeira vista passariam por dispensáveis, afirmam-se depois como essenciais à construção e compreensão dos mistérios.

A palavra “mistério” é aliás uma palavra importante para ter conversas ou ideias sobre a escrita de Teresa Veiga. Desde logo, no sentido habitual que costumamos atribuir à expressão “história de mistério”. O conto “Equinócio da Primavera” remete para essa ideia mais comum de uma história que apresenta um determinado caso de polícia cuja solução está por resolver: o inspector narra a desventura de Dona Constança a partir dos relatos das testemunhas que com ela interagiram no dia em que desapareceu. A forma como o mistério se vai desenlaçando é que é rara, e pode remeter os leitores mais atentos à relação entre Teresa Veiga e grandes escritores clássicos deste tipo de história, como Edgar Allan Poe. No final do conto de Teresa Veiga, o inspector, a fazer lembrar a personagem do conto “The Purloined Letter” de Poe, funda o seu palpite sobre a resolução do caso abdicando da razão e privilegiando o “sentimento, que é outro tipo de inteligência”. O sentimento que aí está em causa é, diríamos, o sentimento literário, que atenta e confia no efeito dos detalhes (como o efeito provocado pela luz solar), o sentimento que importa. A semelhança entre o inspector de Poe e o inspector de Veiga não interessa apenas para dizermos que as personagens de ambos funcionam de maneira parecida. Além disso, e de forma mais relevante, o que essa semelhança demonstra é que Teresa Veiga está do lado dos escritores que demonstram, com a subtileza das suas ficções, uma espécie de convicção segundo a qual apenas a literatura pode compreender certos mistérios.

Mesmo quando não se trata de casos de polícia, as personagens de Teresa Veiga atiram sempre o leitor para espécies particulares de mistério, como o existencial. Em todas elas há um incómodo ou inquietação por esclarecer, sendo tudo manifestado através de sentimentos ambivalentes e frases ambíguas. Como em grande parte da boa literatura, nunca chegamos bem a perceber quem é o bom ou um mau da história, se determinada condenação é justa ou injusta, ou sequer se simpatizamos muito ou pouco com quem nos descreve os factos e a verdade que neles vê reflectida.

Como leitores de Teresa Veiga, o principal prazer está em ficarmos sempre com coisas por perceber, certos de que a melhor forma de tentar perceber essas coisas é através de um sentimento parecido ao dos investigadores dos grandes contistas e não à lógica dedutiva dos investigadores da vida real.

Num dos contos mais admiráveis do livro, “Serenata Melancólica”, é descrita a história de amizade entre a filha de uma dona de casa e a filha da empregada doméstica. Em vez de optar pelo caminho fácil, que seria vestir as personagens por forma a separá-las muito evidentemente entre boa e má, Teresa Veiga dá à narradora, filha da empregada doméstica, uma voz sempre ambivalente e contraditória, como a natureza humana, e isso nota-se entre o mais numa das descrições que faz da relação instável com a amiga: “Esta era a Letícia de quem eu gostava, a irmã mais velha eficiente e protectora, mas havia também a outra, autoritária e má, sem que se pudesse dizer qual era a mais verdadeira […] afinal não era bem assim, mas também não me enganava totalmente”.

E é curioso notar que os momentos de deslize deste livro se encontram precisamente naqueles casos em que o mistério parece mitigado por uma necessidade de evidenciar propósitos narrativos (como o propósito de crítica social): nesses casos, como no conto “Le Cose Belle”, o efeito político da crítica faz desvanecer um certo efeito estético misterioso da ambiguidade.

Como leitores de Teresa Veiga, o principal prazer está em ficarmos sempre com coisas por perceber, certos de que a melhor forma de tentar perceber essas coisas é através de um sentimento parecido ao dos investigadores dos grandes contistas e não à lógica dedutiva dos investigadores da vida real. Tentar perceber os mistérios da vida através da arte, dos jogos de perspectiva, da luz do sol, do mistério da ambiguidade e da ambivalência, é, no fundo, o que Teresa Veiga tenta fazer com a sua ficção, por caminhos “esquivos e incertos como nos sonhos”. Na ficção, não costumamos estar muitos preocupados em chegar a resultados alcançáveis e certos; talvez por isso haja quem ache que a arte vale mais a pena do que a vida.

O autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico.

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