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Aos 56 segundos, Volodymyr Zelensky respira fundo. Faz uma pausa quase impercetível no discurso, embora a expressão corporal continue a falar. Durante esse tempo, arqueia os braços, deixa-os cair, desvia o olhar da câmara, e contorce os lábios. O Presidente da Ucrânia, no discurso diário que costuma ser feito de um só fôlego, questiona o que os russos têm a ganhar em Bakhmut. Pausa. Arrepio de ombros. “Está tudo completamente destruído, quase não resta vida.”
Nesta sexta-feira, 13 de janeiro, o Ministério de Defesa russo anunciou ter controlado Soledar, cidade vizinha de Bakhmut. A informação foi rejeitada pelo lado ucraniano.
Bucha. Izium. Mariupol. São cidades ucranianas que podem ter passado pela mente de Zelensky durante o tempo em que respirou fundo. O massacre de Bucha, em março de 2022, fez mais de mil mortos. Em Izium, os primeiros relatos apontavam para cerca de 500 mortos, mas acabariam por subir também para os mil. Em ambos os casos, os cadáveres encontrados nas estradas e em valas comuns eram maioritariamente de civis e mostravam sinais de agressão e de mortes violentas.
Só quando os russos retiraram, e o exército ucraniano recuperou as terras, foram descobertas as mortes que estão a ser investigadas como crimes de guerra.
Mariupol continua sob controlo russo. Na localidade portuária, terão morrido cerca de 25 mil civis, segundo as autoridades ucranianas, e 95% da cidade foi devastada pela artilharia russa. A verdadeira dimensão do que se passou só será descoberta quando a região voltar às mãos dos ucranianos.
E em Bakhmut? E em Soledar? Não é difícil imaginar o que será encontrado no terreno, nem é preciso especular. Os relatos dos refugiados, dos militares e dos políticos ucranianos mostram que ali só se vai encontrar destruição. Do lado russo, as palavras vão no mesmo sentido. O que é oposta é a crença de quem controla efetivamente o quê, e é difícil ter certeza absoluta de quem está no poder em Soledar e Bakhmut — os relatos independentes, como do Instituto para o Estudo da Guerra (ISW) ou das secretas britânicas, apontam para o domínio russo, mais dia, menos dia.
A última posição oficial da Rússia é que tomou a cidade de Soledar, embora a Ucrânia já tenha negado essa informação.
Ucrânia. Na pequena cidade de Soledar, a Rússia procura à força uma vitória essencialmente simbólica
Além das palavras, há imagens. Esta quinta-feira, 12 de janeiro, imagens de satélite da Maxar Technologies, empresa de tecnologia espacial, mostram a diferença, antes e depois da invasão russa, em Soledar e Bakhmutske (vizinhas de Bakhmut), esta última capturada por Moscovo a 9 de janeiro, segundo alegações de militares russos.
“Trituradora de carne” foi como Yevgeny Prigozhin chamou a Bakhmut, muito antes de a cidade ter chegado ao ponto atual. O milionário, próximo de Putin e fundador do Grupo Wagner — os mercenários que lutam pela Rússia —, é um dos principais interessados naquela batalha, onde os wagneritas (e os ucranianos) não param de morrer.
Bakmut “está destruída”, a cidade vizinha está pior
Era assim que estava Bucha. Os cadáveres encontravam-se por todo o lado, nas ruas da cidade e nas valas comuns que foram sendo descobertas. Em Soledar não será diferente, segundo o próprio Presidente ucraniano. O que muda é que, em vez de civis mortos, o chão cobre-se de combatentes sem vida, russos e ucranianos. “Se, em Mariupol, 90% das vítimas mortais eram civis, em Soledar e Bakhmut são militares”, afirmou Mykhaylo Podolyak, conselheiro do Presidente Zelensky.
“O que pretende a Rússia ganhar ali? Está tudo completamente destruído, quase não resta vida [em Bakhmut]. Perderam-se milhares de pessoas: todo o chão de Soledar está coberto de cadáveres dos ocupantes e cicatrizes dos ataques. É assim que se parece a loucura”, afirmou Zelensky, no seu discurso de 9 de janeiro.
No dia anterior, o Presidente ucraniano afirmava que Bakhmut estava a aguentar-se, “embora a maior parte da cidade tenha sido destruída”. Em Soledar, disse, “ainda há mais destruição”.
Olha: “Os apartamentos ardiam, partiam-se ao meio”
Os refugiados que vão deixando a região contam histórias de devastação. Em Kramatorsk, está Olha (nome típico ucraniano, variante de Olga), cuja descrição atual da sua cidade correu a imprensa internacional. O britânico Guardian escreve que a mulher de 60 anos decidiu abandonar Soledar depois de andar de um apartamento para o outro, de cada vez que um novo refúgio era destruído pela artilharia.
“Durante a semana passada não podíamos sair de casa. Andava toda a gente a correr de um lado para o outro, enquanto os soldados com armas automáticas gritavam”, contou Olha. “Não havia uma única casa intacta. Os apartamentos ardiam, partiam-se ao meio.”
Numa rua de Bakhmut, a cerca de 15 quilómetros de Soledar, uma mulher mais velha, de 75 anos, mas exatamente com o mesmo nome próprio, desabafa com a canadiana CBC. “Meu Deus, a nossa cidade era tão bonita. Havia rosas e flores por todo o lado.”
Em vez de rosas, é a morte que se espalha pelas calçadas. Os russos, conta a ministra Anna Maliar, chegam a passar por cima dos cadáveres dos colegas em Soledar. “O inimigo literalmente pisa os cadáveres dos seus próprios militares, usa a artilharia de forma massiva, sistemas de tiro de salva e morteiros, cobrindo até mesmo os seus próprios combatentes com fogo”, escreveu a ministra adjunta da Defesa da Ucrânia na rede social Telegram, a 9 de janeiro.
Angelina: “O meu pai, se sair, escolhe a Rússia”
Angelina e Maxim abandonaram Bakhmut. Já não tinham energia, nem comida, nem água há demasiado tempo. Estavam fartos de ter frio e fome. No dia em que partiram na carrinha que todos os dias transporta refugiados da linha da frente, contaram a sua história à France 24.
“Fiquei surda. As ondas de choque atingiram-me de lado e fiquei a coxear”, conta a jovem ucraniana à televisão francesa, quando recorda o dia em que a sua casa foi atingida. Mostra as janelas partidas, onde era a cozinha e o quarto onde dormia. Agora são ruínas.
Antes de deixar a cidade, Angelina visita pela última vez o prédio onde vivia a sua família, rasgado ao meio pela força dos ataques. Vários membros da sua família escondiam-se na cave e tiveram a sorte de não estar no edifício quando foi bombardeado. Os vizinhos, conta Angelina, ficaram presos nos escombros e a maioria morreu. “Eu quero viver, não quero sobreviver”, diz a ucraniana, sublinhando que a sua família já partiu. Só resta o seu pai. “Ele, se sair, escolhe a Rússia. Eu sou patriota. Tentamos não discutir estas coisas em família.”
"Remember, we are on God-given land, they will never break us!" – Ukrainian actor Dmytro Linartovych was wounded in Soledar. He recorded a message for everyone.
Glory and full recovery to Hero! pic.twitter.com/ZcQMJpFAmc
— Anton Gerashchenko (@Gerashchenko_en) January 11, 2023
Antes da guerra, Bakhmut tinha uma população de cerca de 70 mil habitantes. Agora, depois de “os russos a terem transformado numa ruína em chamas”, como disse Zelensky, a 11 de dezembro, o pai de Angelina faz parte do pequeno grupo de residentes que se mantém na cidade — cerca de 7 mil pessoas.
As contas do governador da região de Donetsk, Pavlo Kyrylenko, apontam para que 90% da população já tenha deixado a cidade. Em termos de edificado, Kyrylenko diz que mais de metade das infraestruturas foi destruída. “Os russos não contam as baixas em Bakhmut. Eles inundam a linha da frente com carne para canhão. Mais de 60% da infraestrutura da cidade foi destruída.”
Sobre Soledar, numa entrevista à televisão estatal ucraniana, Pavlo Kyrylenko disse ter-se chegado a uma situação em que é impossível resgatar quem ainda está na localidade: 559 civis, entre eles 15 crianças — antes da guerra, a população era de pouco mais de 10 mil habitantes. Ao Kyiv Independent, o governador afirmou que 80% de Soledar foi destruída. O inimigo escolheu uma “estratégia de terra queimada”.
Em Soledar, “ninguém conta os mortos”
“Ninguém conta os mortos”, disse um militar ucraniano, sob anonimato, à norte-americana CNN. “Ninguém vai dizer quantos mortos e feridos existem, porque ninguém sabe ao certo. Nem uma única pessoa.” A sua descrição é de um campo de batalha onde os corpos não param de tombar, e onde cada posição é tomada, perdida e retomada novamente, uma e outra vez. “O que hoje era a nossa casa, amanhã é casa dos Wagner.”
Update from Bakhmut (and Soledar), morning of 11 January. pic.twitter.com/KOKCklaXgw
— WarTranslated (Dmitri) (@wartranslated) January 11, 2023
Por isso, o militar da 46.ª Brigada Aérea Móvel, estacionado em Soledar, afirma que ninguém sabe exatamente quem detém o quê. “Há uma enorme área cinzenta na cidade que todos afirmam controlar, é apenas propaganda vazia.” As mortes sucedem-se a um ritmo tão acelerado que diz não ser possível decorar nomes e indicativos dos reforços que vão chegando.
Em Bakhmut, o cenário repete-se. Kyrylo Budanov visitou a frente da batalha em dezembro e o chefe das secretas ucranianas contou parte do que viu numa entrevista à emissora norte-americana ABC News: cadáveres empilhados, como se de escudos humanos se tratassem.
“Há centenas de cadáveres a apodrecer em campo aberto. Em alguns lugares são empilhados no topo de outros corpos como uma espécie de parede”, afirmou Budanov. “Quando as tropas russas atacam nesses campos, usam esses cadáveres como um escudo.”
Se os russos tomarem a região será “uma vitória de Pirro”
Os números são sempre impressionantes quando Serhiy Cherevatyi, porta-voz do Comando Militar do Leste da Ucrânia, faz o balanço das munições disparadas.
A 26 de dezembro, falava em 28 episódios de combates e 225 disparos de artilharia e de tanques na área de Bakhmut. A 9 de janeiro, classificava as batalhas em Soledar como “brutais e sangrentas” com 106 ataques num só dia. A 10 de janeiro, o seu balanço era de 86 ataques, com recurso a diversos sistemas de artilharia, na cidade e nos arredores.
Nas contas de Cherevatyi entram somente os ataques russos. Se os contra-ataques ucranianos forem em igual medida, percebe-se porque é que tantos refugiados falam da ausência de silêncio na frente da batalha.
Na terça-feira, 10 de janeiro, Cherevatyi também deixou claro qual o objetivo dos militares ucranianos: esgotar os russos para, “mesmo que obtenham uma vitória tática, se torne uma vitória de Pirro”, obtida a preço elevado, com prejuízos irreparáveis.
Moscovo, apontou o porta-voz do Comando Militar, está a fazer de tudo para “apoderar-se das ruínas” de Soledar à custa de um “número incontável” de soldados russo. “Esta, basicamente, não é uma guerra do século XXI.”