“Escondam as bebidas!” Jean Devergnies levanta-se num salto quando vê a câmara apontada ao grupo com cerca de 30 escuteiros acantonados à porta do “Camone Bar”, no Bairro Alto. “Dá má imagem aos escuteiros”, admite o suíço, num inglês que escorre alemão. É líder de equipa e quer dar o exemplo, mas a cerveja na mão também lhe compõe o uniforme. “O mais importante é ser coerente”, acaba por dizer, já com menos pruridos, embalado pelos cânticos patriótico-religiosos dos colegas que enchem a rua da Atalaia. “Se somos cristãos na missa, também somos cristãos no bar”.
Não faltam cristãos nos bares do Cais do Sodré e do Bairro Alto na primeira noite oficial da Jornada Mundial da Juventude (JMJ). Em grupos numerosos, nunca menos de algumas dezenas, devidamente identificados com a fita do evento ao peito e, invariavelmente, a bandeira de um país às costas. Vermelho, azul e branco são as cores que pintam a rua que habitualmente é cor de rosa. “Viemos beber uma cerveja, talvez duas”, diz ao Observador Cosmo de Dianous. Veio de Paris com um grupo de amigos, todos na casa dos 20 anos. A noite é um extra na JMJ, admitem. “Talvez tentemos ir a uma discoteca”. Na semana da Jornada, acordam muito cedo e têm o dia repleto de atividades. E têm de ter em conta um revés que não agrada a todos. Todos os peregrinos que ficam alojados em escolas têm de cumprir um recolher obrigatório. À meia noite em ponto, os portões fecham.
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▲ Julliette Schmidt, Olivier Peneau e amigos divertem-se no Bairro Alto.
ANDRÉ DIAS NOBRE/OBSERVADOR
A regra é revelada em tom mais ou menos conformado, por vezes acompanhado por um rolar de olhos. E uma admissão de culpa. “Ontem não chegámos à meia noite e tivemos de saltar o muro”, revela Juliette Schmidt, peregrina francesa alojada numa escola da Amadora. Nos próximos dias vão voltar a transgredir. “Eles percebem, sabem que somos jovens e queremos divertir-nos. Não há penalizações”. São jovens, “pessoas normais que se querem divertir”, aponta. Sem excessos, porque “com moderação nada é proibido”.
“Não ficaremos admirados se vierem pedir só água”
As hordas de peregrinos franceses que vão enchendo, aqui e ali, algumas ruas das principais zonas de diversão noturna da capital não são suficientes para animar quem faz da noite negócio. “São muito jovens, vêm com pouco dinheiro e comem e bebem com as senhas de refeição. São poucos os que vêm para aqui. Na verdade, achamos que a JMJ vai fazer mais mal do que bem ao negócio”, diz ao Observador Giuseppe Brasca, dono da Adega dos Canários, no Cais do Sodré. “Trabalhamos com locais, e muita gente decidiu ir para fora esta semana por causa da confusão esperada”, lamenta. “É verdade, na semana passada, mesmo a uma terça-feira, havia mais movimento”, corrobora Daniel Baz, dono do Boteco da Dri.
Algumas portas acima, Leonardo Oliveira, do bar O Bom, o Mau e o Vilão, faz os últimos preparativos para o concerto da noite. Espera uma boa casa, mas duvida que os peregrinos, sejam ou não mais de um milhão, façam aumentar o negócio neste e nos próximos dias. “Quanto muito, podem compensar aqueles que fugiram da cidade esta semana. Mas não esperamos faturar mais por causa da JMJ”.
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▲ O Cais do Sodré foi uma das zonas preferidas dos peregrinos.
ANDRÉ DIAS NOBRE/OBSERVADOR
Por entre as esplanadas atravancadas dos bares do Cais do Sodré, há inclusive espaços onde as mesas e cadeiras repletas deram lugar ao vazio. E nem é por ser terça-feira. Alguns estabelecimentos da zona decidiram encerrar esta semana. “O bar aqui da frente está fechado, por exemplo. Eles são jovens, vêm sem dinheiro para gastar e dormem em escolas, têm horinha para estarem deitados. É normal que alguns colegas decidam fechar”, diz Ricardo Gaspar, gerente do bar A Livraria, na rua cor de rosa, que admite ter reforçado os stocks de bebidas apenas porque as entregas estão condicionadas, devido às restrições ao trânsito.
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▲ Alguns bares optaram por fechar portas na semana da JMJ.
ANDRÉ DIAS NOBRE/OBSERVADOR
“É outra vibe”, descreve João Vítor, gerente do bar Jobim, na mesma zona. “São animados, passam a cantar. Mas não ficaremos admirados se vierem pedir só água. Só hoje é que vamos começar a perceber se vai render. No fim de semana pode ser que venha muita gente”, espera o responsável. Do lado de fora do bar, o samba do Jobim rivaliza com o esforço de uma peregrina de megafone em riste que, em francês, mobiliza as tropas a entoar um cântico “com outra vibe”.
O avião do Papa e uma fé não inabalável
Pela rua mais movimentada do Cais do Sodré fora, sucedem-se os brindes, e a água é, de facto, omnipresente. “Mas estamos a vender mais cerveja”, diz a responsável de um bar que não quis ser identificada. Muitos dos que desanuviam ao início da noite no Cais do Sodré e no Bairro Alto estiveram presentes na missa de abertura da JMJ, no parque Eduardo VII. Mas não é a homilia do Cardeal Patriarca de Lisboa que domina as conversas. “Sagres ou Super Bock?”, discute-se entre um grupo de franceses, acompanhados por um padre, para quem o facto de a JMJ se realizar em Portugal foi decisivo para a sua vinda. “Já dissemos às nossas famílias que queremos voltar cá de férias”. O consenso que não existe sobre a marca de cerveja encontra-se nos motivos que os trouxeram de Paris a Lisboa.
“É muito fácil conversar com as pessoas, é isso que queremos. Além de aprofundar a nossa fé e reforçar os laços entre nós”, revela Josephine, de 20 anos, que tenta ser porta-voz de um grupo em que todos — Pauline, Heloise, Justine, Thomas e Alexis — querem fazer-se ouvir. É isso, afinal, que os une. E que procuram na Igreja católica. “Vim tentar perceber como se vive a fé de forma diferente nos vários países. Claro que o Papa é a grande estrela (‘depois de Jesus’, ressalva o amigo Thomas), vamos à missa no domingo, é a pessoa de quem todos falam. Mas mais do que o Papa, queremos contactar com as pessoas”.
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▲ Peregrinos franceses tomaram conta da noite lisboeta.
ANDRÉ DIAS NOBRE/OBSERVADOR
Entre o grupo de amigos, há quem admita que a religião não tem um grande peso no seu dia a dia. “É fácil arranjar desculpas para não rezar e não ir à missa”, diz Thomas. Mas a fé não vacila. “Tirar esta semana para rezar é uma demonstração de amor a Deus”, defende. Ainda assim, aproveitam a conversa com jornalistas para tirar uma dúvida que os inquieta. “O Papa voa num avião privado ou num avião comercial? É que falam tanto de pobreza, que pensámos que podia vir num avião como as pessoas normais”. A resposta desilude, mas não surpreende. O Papa Francisco chega esta quarta-feira a Lisboa num voo especial, com 78 jornalistas de todo o mundo a bordo (o Observador estará lá), operado pela italiana ITA Airways e regressa num avião da TAP.
Mas ver o Papa não parece, de longe, o principal foco dos jovens peregrinos que vão sarapintar a região de Lisboa e arredores nos próximos dias. E as inquietações e questionamentos sobre a Igreja Católica são comuns nas conversas dos jovens. “Perdi um pouco a minha fé nos últimos anos, afastei-me de Deus”, confessa Olivier Peneau, francês de 20 anos, à mesa de um bar do Bairro Alto. Ainda assim, quis participar no maior evento de jovens católicos do mundo. “Há aqui muita gente que eu acho que me pode ajudar a encontrar um caminho”. A própria Igreja, acredita, “está a mudar”, e “a dar voz a muitos jovens que viviam ansiosos com os seus problemas, e está a tratá-los com mais respeito”.
“Eu acho que ainda é muito difícil o contacto entre pessoas mais jovens e mais velhas na Igreja”, completa a amiga Juliette Schmidt. “Há um mundo a mudar, mas nós também somos a Igreja. Nós, as novas gerações. Por isso, se nós estamos a mudar, a Igreja vai mudar connosco e tornar-se mais aberta”, defende Juliette, enquanto pede mais uma cerveja.
“Os evangelhos não são contra o prazer”
Nas curvas labirínticas do Bairro Alto, um “viva Espanha” entrecorta o rubor gaulês que tomou a noite de assalto, para (boa) surpresa dos comerciantes. “Eles que venham”, celebra Tilin da Bahia, dono de um bar com o mesmo nome, enquanto centenas de franceses de cerveja de litro e mojitos ocasionais na mão despertam a rua da Atalaia do sossego de uma noite de terça-feira.
Entre eles está o Padre Pierre, francês na faixa etária dos restantes peregrinos. “Tentamos manter o espírito da peregrinação nestas saídas à noite”, explica. “Sem excessos, com segurança e sem acabarmos por nos encontrar em situações para as quais não há saída”. Olympe de Lacy, que acompanha o sacerdote, concorda. “Se bebermos demasiado não vamos estar bem para rezar no dia seguinte, e não é esse o objetivo da JMJ”.
Sair à noite na JMJ não é sequer incoerente com os valores da Igreja, defende o padre. “Os jovens aqui não pretendem escapar, mas completar a experiência. Querem divertir-se mas, ao mesmo tempo, manter alguns valores que herdaram das gerações anteriores. Não é uma contradição”.
Sentados à porta do bar que anuncia “os shots mais baratos da cidade”, os escuteiros suíços concordam. “Estou aqui para passar um bom bocado com os meus amigos. Podemos aproveitar a vida, mas temos de fazer o bem. Jesus tem um projeto para nós. Temos de conhecer os nossos limites, porque às vezes, quando bebemos, fazemos coisas de que nos arrependemos”, ressalva Jean Devergnies. “Nós apreciamos cerveja e beber uma boa cerveja é o mesmo que beber uma Coca-Cola fresca. Nao há problema em ter prazer com uma cerveja”.
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▲ Escuteiros suíços no Bairro Alto.
ANDRÉ DIAS NOBRE/OBSERVADOR
“Muitas pessoas acham que os evangelhos são contra o prazer”, completa o padre Pierre. “Mas isso não é verdade. O prazer é bom se for acompanhado por uma boa ação. Ou quando é sinal de uma boa ação. Se procurarmos o prazer por si próprio, isso vai desfocar-nos do seu objetivo, porque vai ser forçado. É como quando já não temos fome mas continuamos a comer. Isso é forçar o prazer”.
Nas ruas mais mexidas da noite lisboeta, o prazer acaba cedo para os jovens católicos. À meia-noite em ponto, são poucos os que ainda vagueiam num Cais do Sodré iluminado pela super lua. De camisola às riscas e boina à banda, um último grupo de franceses acende o silêncio com o cântico mais conhecido do mundo: “Parabéns a você”. Amanhã chega o Papa Francisco e o dia começa cedo. Depois das doze badaladas já vai ser preciso saltar o muro.