“Escondam as bebidas!” Jean Devergnies levanta-se num salto quando vê a câmara apontada ao grupo com cerca de 30 escuteiros acantonados à porta do “Camone Bar”, no Bairro Alto. “Dá má imagem aos escuteiros”, admite o suíço, num inglês que escorre alemão. É líder de equipa e quer dar o exemplo, mas a cerveja na mão também lhe compõe o uniforme. “O mais importante é ser coerente”, acaba por dizer, já com menos pruridos, embalado pelos cânticos patriótico-religiosos dos colegas que enchem a rua da Atalaia. “Se somos cristãos na missa, também somos cristãos no bar”.
Não faltam cristãos nos bares do Cais do Sodré e do Bairro Alto na primeira noite oficial da Jornada Mundial da Juventude (JMJ). Em grupos numerosos, nunca menos de algumas dezenas, devidamente identificados com a fita do evento ao peito e, invariavelmente, a bandeira de um país às costas. Vermelho, azul e branco são as cores que pintam a rua que habitualmente é cor de rosa. “Viemos beber uma cerveja, talvez duas”, diz ao Observador Cosmo de Dianous. Veio de Paris com um grupo de amigos, todos na casa dos 20 anos. A noite é um extra na JMJ, admitem. “Talvez tentemos ir a uma discoteca”. Na semana da Jornada, acordam muito cedo e têm o dia repleto de atividades. E têm de ter em conta um revés que não agrada a todos. Todos os peregrinos que ficam alojados em escolas têm de cumprir um recolher obrigatório. À meia noite em ponto, os portões fecham.
A regra é revelada em tom mais ou menos conformado, por vezes acompanhado por um rolar de olhos. E uma admissão de culpa. “Ontem não chegámos à meia noite e tivemos de saltar o muro”, revela Juliette Schmidt, peregrina francesa alojada numa escola da Amadora. Nos próximos dias vão voltar a transgredir. “Eles percebem, sabem que somos jovens e queremos divertir-nos. Não há penalizações”. São jovens, “pessoas normais que se querem divertir”, aponta. Sem excessos, porque “com moderação nada é proibido”.
“Não ficaremos admirados se vierem pedir só água”
As hordas de peregrinos franceses que vão enchendo, aqui e ali, algumas ruas das principais zonas de diversão noturna da capital não são suficientes para animar quem faz da noite negócio. “São muito jovens, vêm com pouco dinheiro e comem e bebem com as senhas de refeição. São poucos os que vêm para aqui. Na verdade, achamos que a JMJ vai fazer mais mal do que bem ao negócio”, diz ao Observador Giuseppe Brasca, dono da Adega dos Canários, no Cais do Sodré. “Trabalhamos com locais, e muita gente decidiu ir para fora esta semana por causa da confusão esperada”, lamenta. “É verdade, na semana passada, mesmo a uma terça-feira, havia mais movimento”, corrobora Daniel Baz, dono do Boteco da Dri.
Algumas portas acima, Leonardo Oliveira, do bar O Bom, o Mau e o Vilão, faz os últimos preparativos para o concerto da noite. Espera uma boa casa, mas duvida que os peregrinos, sejam ou não mais de um milhão, façam aumentar o negócio neste e nos próximos dias. “Quanto muito, podem compensar aqueles que fugiram da cidade esta semana. Mas não esperamos faturar mais por causa da JMJ”.
Por entre as esplanadas atravancadas dos bares do Cais do Sodré, há inclusive espaços onde as mesas e cadeiras repletas deram lugar ao vazio. E nem é por ser terça-feira. Alguns estabelecimentos da zona decidiram encerrar esta semana. “O bar aqui da frente está fechado, por exemplo. Eles são jovens, vêm sem dinheiro para gastar e dormem em escolas, têm horinha para estarem deitados. É normal que alguns colegas decidam fechar”, diz Ricardo Gaspar, gerente do bar A Livraria, na rua cor de rosa, que admite ter reforçado os stocks de bebidas apenas porque as entregas estão condicionadas, devido às restrições ao trânsito.
“É outra vibe”, descreve João Vítor, gerente do bar Jobim, na mesma zona. “São animados, passam a cantar. Mas não ficaremos admirados se vierem pedir só água. Só hoje é que vamos começar a perceber se vai render. No fim de semana pode ser que venha muita gente”, espera o responsável. Do lado de fora do bar, o samba do Jobim rivaliza com o esforço de uma peregrina de megafone em riste que, em francês, mobiliza as tropas a entoar um cântico “com outra vibe”.
O avião do Papa e uma fé não inabalável
Pela rua mais movimentada do Cais do Sodré fora, sucedem-se os brindes, e a água é, de facto, omnipresente. “Mas estamos a vender mais cerveja”, diz a responsável de um bar que não quis ser identificada. Muitos dos que desanuviam ao início da noite no Cais do Sodré e no Bairro Alto estiveram presentes na missa de abertura da JMJ, no parque Eduardo VII. Mas não é a homilia do Cardeal Patriarca de Lisboa que domina as conversas. “Sagres ou Super Bock?”, discute-se entre um grupo de franceses, acompanhados por um padre, para quem o facto de a JMJ se realizar em Portugal foi decisivo para a sua vinda. “Já dissemos às nossas famílias que queremos voltar cá de férias”. O consenso que não existe sobre a marca de cerveja encontra-se nos motivos que os trouxeram de Paris a Lisboa.
“É muito fácil conversar com as pessoas, é isso que queremos. Além de aprofundar a nossa fé e reforçar os laços entre nós”, revela Josephine, de 20 anos, que tenta ser porta-voz de um grupo em que todos — Pauline, Heloise, Justine, Thomas e Alexis — querem fazer-se ouvir. É isso, afinal, que os une. E que procuram na Igreja católica. “Vim tentar perceber como se vive a fé de forma diferente nos vários países. Claro que o Papa é a grande estrela (‘depois de Jesus’, ressalva o amigo Thomas), vamos à missa no domingo, é a pessoa de quem todos falam. Mas mais do que o Papa, queremos contactar com as pessoas”.
Entre o grupo de amigos, há quem admita que a religião não tem um grande peso no seu dia a dia. “É fácil arranjar desculpas para não rezar e não ir à missa”, diz Thomas. Mas a fé não vacila. “Tirar esta semana para rezar é uma demonstração de amor a Deus”, defende. Ainda assim, aproveitam a conversa com jornalistas para tirar uma dúvida que os inquieta. “O Papa voa num avião privado ou num avião comercial? É que falam tanto de pobreza, que pensámos que podia vir num avião como as pessoas normais”. A resposta desilude, mas não surpreende. O Papa Francisco chega esta quarta-feira a Lisboa num voo especial, com 78 jornalistas de todo o mundo a bordo (o Observador estará lá), operado pela italiana ITA Airways e regressa num avião da TAP.
Mas ver o Papa não parece, de longe, o principal foco dos jovens peregrinos que vão sarapintar a região de Lisboa e arredores nos próximos dias. E as inquietações e questionamentos sobre a Igreja Católica são comuns nas conversas dos jovens. “Perdi um pouco a minha fé nos últimos anos, afastei-me de Deus”, confessa Olivier Peneau, francês de 20 anos, à mesa de um bar do Bairro Alto. Ainda assim, quis participar no maior evento de jovens católicos do mundo. “Há aqui muita gente que eu acho que me pode ajudar a encontrar um caminho”. A própria Igreja, acredita, “está a mudar”, e “a dar voz a muitos jovens que viviam ansiosos com os seus problemas, e está a tratá-los com mais respeito”.
“Eu acho que ainda é muito difícil o contacto entre pessoas mais jovens e mais velhas na Igreja”, completa a amiga Juliette Schmidt. “Há um mundo a mudar, mas nós também somos a Igreja. Nós, as novas gerações. Por isso, se nós estamos a mudar, a Igreja vai mudar connosco e tornar-se mais aberta”, defende Juliette, enquanto pede mais uma cerveja.
“Os evangelhos não são contra o prazer”
Nas curvas labirínticas do Bairro Alto, um “viva Espanha” entrecorta o rubor gaulês que tomou a noite de assalto, para (boa) surpresa dos comerciantes. “Eles que venham”, celebra Tilin da Bahia, dono de um bar com o mesmo nome, enquanto centenas de franceses de cerveja de litro e mojitos ocasionais na mão despertam a rua da Atalaia do sossego de uma noite de terça-feira.
Entre eles está o Padre Pierre, francês na faixa etária dos restantes peregrinos. “Tentamos manter o espírito da peregrinação nestas saídas à noite”, explica. “Sem excessos, com segurança e sem acabarmos por nos encontrar em situações para as quais não há saída”. Olympe de Lacy, que acompanha o sacerdote, concorda. “Se bebermos demasiado não vamos estar bem para rezar no dia seguinte, e não é esse o objetivo da JMJ”.
Sair à noite na JMJ não é sequer incoerente com os valores da Igreja, defende o padre. “Os jovens aqui não pretendem escapar, mas completar a experiência. Querem divertir-se mas, ao mesmo tempo, manter alguns valores que herdaram das gerações anteriores. Não é uma contradição”.
Sentados à porta do bar que anuncia “os shots mais baratos da cidade”, os escuteiros suíços concordam. “Estou aqui para passar um bom bocado com os meus amigos. Podemos aproveitar a vida, mas temos de fazer o bem. Jesus tem um projeto para nós. Temos de conhecer os nossos limites, porque às vezes, quando bebemos, fazemos coisas de que nos arrependemos”, ressalva Jean Devergnies. “Nós apreciamos cerveja e beber uma boa cerveja é o mesmo que beber uma Coca-Cola fresca. Nao há problema em ter prazer com uma cerveja”.
“Muitas pessoas acham que os evangelhos são contra o prazer”, completa o padre Pierre. “Mas isso não é verdade. O prazer é bom se for acompanhado por uma boa ação. Ou quando é sinal de uma boa ação. Se procurarmos o prazer por si próprio, isso vai desfocar-nos do seu objetivo, porque vai ser forçado. É como quando já não temos fome mas continuamos a comer. Isso é forçar o prazer”.
Nas ruas mais mexidas da noite lisboeta, o prazer acaba cedo para os jovens católicos. À meia-noite em ponto, são poucos os que ainda vagueiam num Cais do Sodré iluminado pela super lua. De camisola às riscas e boina à banda, um último grupo de franceses acende o silêncio com o cântico mais conhecido do mundo: “Parabéns a você”. Amanhã chega o Papa Francisco e o dia começa cedo. Depois das doze badaladas já vai ser preciso saltar o muro.