Tomáš Halík é um dos mais reputados intelectuais católicos da Europa contemporânea. Nascido em Praga nos anos 40, Halík fez a formação cristã na total clandestinidade durante o período da Checoslováquia comunista e anticlerical, tornando-se num dos rostos da “Igreja da Resistência”, ou “Igreja do Silêncio”, e foi ordenado sacerdote em segredo. Hoje, é um dos mais proeminentes teólogos e filósofos, embora viva num dos países mais ateus do mundo. Crítico frequente da hierarquia eclesiástica, recebeu em 2014 o prestigiado Prémio Templeton, destinado a reconhecer contributos excecionais para o pensamento da espiritualidade (e que inclui figuras como Madre Teresa de Calcutá, o Dalai Lama, Billy Graham ou Desmond Tutu na lista de premiados).
Autor de inúmeros livros incontornáveis para a teologia contemporânea, muitos deles publicados em português, o teólogo checo concilia a vida académica internacional com a orientação da paróquia de São Salvador, em Praga, um pólo de debate intelectual hoje transformado num ponto de referência global para o diálogo ecuménico, inter-religioso e inter-cultural. Foi a partir daquela igreja do centro histórico da capital checa que Tomáš Halík pregou durante a Quaresma e a Páscoa de 2020, já em plea pandemia, em frente à câmara e perante uma igreja vazia. Propositadamente, não transmitiu a missa — só as meditações, já que garante que “não podemos celebrar online, tal como não podemos jantar online”.
As meditações que transmitiu ao longo daqueles meses de 2020 em que a Covid-19 obrigou ao fecho das igrejas e à suspensão das missas estão agora reunidas num livro, O Tempo das Igrejas Vazias, publicado em português pela editora Paulinas.
Numa entrevista ao Observador a partir de Praga, Tomáš Halík salienta que a pandemia trouxe desafios, mas também oportunidades — e não poupa nas críticas à hierarquia católica, que se preocupou mais em manter o funcionamento da Igreja Católica e em transmitir missas, do que em perceber o fenómeno espiritual que os fiéis atravessaram. Lamentando que tenha havido bispos que recomendaram aos fiéis que não tentassem interpretar o evangelho em casa, Halík diz que é precisamente essa possibilidade de interpretação individual das escrituras que alimenta a fé e denuncia o “medo do livre pensamento acerca do evangelho” existente na estrutura eclesiástica.
“A eucaristia ainda é muitas vezes uma espécie de prémio para os miúdos bem-comportados”, afirma, numa entrevista em que sublinha que a grande missão da Igreja Católica no mundo de hoje deve ser a de dialogar — sem tentar converter a todo o custo — com os não-crentes e com os “apateístas”, que colocam questões espirituais a que a Igreja não dá resposta; e adverte ainda para os perigos de os líderes católicos juntarem forças com os políticos que capturaram os argumentos do Cristianismo para se afirmarem entre os mais conservadores.
No livro, podemos testemunhar como a pandemia aparece como uma preocupação na homilia de uma semana e, na semana seguinte, a igreja está fechada e o senhor está a pregar para uma câmara dentro de uma igreja vazia. É uma imagem muito forte, mas há um detalhe curioso: decidiu não transmitir a missa. Porquê?
Penso que para a presença real de Jesus Cristo na eucaristia é necessária também a presença real dos fiéis. Através dos meios eletrónicos, podemos enviar informações, dados, podemos enviar até leituras, homilias e catequeses. Mas não podemos celebrar online, tal como não podemos jantar online. Por isso, creio que é melhor que nos concentremos no evangelho, na explicação do evangelho, uma vez que para a liturgia precisamos do espaço real.
Em certo ponto do livro, pergunta “o que faz de um cristão, um verdadeiro cristão, quando o funcionamento tradicional da Igreja deixa de funcionar?”. Tem uma resposta? Um tradicionalista, por exemplo, dir-lhe-ia que é a eucaristia, por isso é que pressionaram bispos e governos para reabrir as igrejas?
A distância da eucaristia também é uma oportunidade para perceber o que é a eucaristia. Às vezes, só percebemos o valor da nossa saúde quando estamos doentes; o valor da comida quando temos fome. Também esta distância é uma oportunidade para pensar na eucaristia. Lembro-me de algo que é mencionado na biografia de Pascal. Pascal foi proibido de receber a comunhão por causa dos seus escritos e da sua teologia; convidou um homem pobre e doente para a casa dele e disse: “Se não posso receber o corpo de Cristo na eucaristia, vou tratar do corpo de Cristo neste homem pobre e doente”. Também o nosso serviço às pessoas que passam por problemas, aos doentes, aos que estão tomados pelo medo e pela ansiedade, pode servir o corpo de Cristo nos corpos e nas almas dos nossos mais próximos. Não há apenas a mesa do pão e do vinho, também há a mesa do evangelho, das escrituras. É um desafio: ler mais o evangelho. Conheço muitas famílias que, durante o tempo em que não foi permitido celebrar missas e visitar as igrejas, celebraram uma espécie de celebração caseira, em que leram o evangelho, falaram dele, discutiram-no. E disseram-me que, para eles, tinha sido a primeira vez que tinham falado da fé com os seus filhos, com os avós… Portanto, isto também foi uma grande oportunidade para celebrar em casa, de um modo improvisado. Uma celebração especial.
No entanto, quando logo no início do livro faz uma crítica à hierarquia da Igreja, até dá o exemplo de uma diocese que recomendou aos fiéis que não tentassem interpretar o evangelho por si próprios em casa… No seu entender, porque é que a Igreja resiste a estas celebrações domésticas?
Tinham medo do livre pensamento acerca do evangelho. A explicação do evangelho tem de estar exclusivamente nas mãos do clero. Tinham medo de que as famílias, os leigos, pensassem e discutissem livremente o evangelho. É um exemplo deste clericalismo.
Medo de perder algum poder sobre os fiéis?
Sim.
Acabou de referir a biografia de Pascal e o episódio em que lhe foi proibida a comunhão — e não consigo resistir a uma comparação. Por exemplo, Joe Biden, que é o segundo Presidente católico dos EUA, viu um padre recusar dar-lhe a comunhão em 2019 porque ele, apesar de se assumir como católico, defende o direito ao aborto. Essa é aliás a grande crítica de que ele é alvo, da parte dos chamados tradicionalistas radicais. Isto é uma versão contemporânea desse problema que estava a identificar?
Esta ausência da eucaristia para nós pode também ser uma expressão de solidariedade para com as pessoas que não são autorizadas a receber a eucaristia. Mesmo para as outras igrejas. Conheço muitos cristãos da Igreja Protestante e eles têm uma crença verdadeira na presença de Cristo na eucaristia. Eles visitam a nossa igreja, a nossa paróquia, a gostariam de receber a comunhão, mas é-lhes proibido. Temos um Cristo, uma crença, mas há esta interpretação teológica da eucaristia, que é da Idade Média, e hoje já ninguém percebe as diferenças entre luteranos, calvinistas e católicos. Há uma verdadeira sede por esta unidade na mesa do Senhor. Portanto, isto é uma forma de solidariedade para com estes cristãos que, normalmente, não têm autorização para receber a comunhão nas nossas igrejas. E também para com as pessoas naquelas situações extraordinárias, aqueles sobre quem o Papa Francisco escreveu na Amoris Laetitia, os divorciados que voltaram a casar, e muitos outros. Para nós, muitas vezes, a eucaristia ainda é muitas vezes uma espécie de prémio para os miúdos bem-comportados. Mas é panis viatorum, pão para os peregrinos, pão para os famintos, devia dar-nos força para o nosso caminho em frente, não devia ser um prémio para os melhores fiéis.
É por isso que chama a esta ausência de celebrações públicas “uma rara manifestação da pedagogia de Deus”? É mais otimista do que aqueles que dizem que a pandemia é uma punição pelos pecados da Humanidade?
Esse é um ponto de vista muito perigoso, porque atrás dele está a imagem de um Deus vingativo e furioso. Muitas vezes, é uma projeção das sombras da nossa própria vida. Projetamos as sombras nos outros e no Céu, e este Deus que pune as pessoas é, na verdade, uma projeção de muitos daqueles que sabem exatamente quem é que devia ser punido e por quê! (Risos) A imagem de Deus é o prolongamento da sua própria vingança e do seu próprio medo. Não devíamos procurar um Deus por detrás desta catástrofe, devíamos procurá-lo no riso, na nossa esperança e na nossa fé. Esta é a presença de Deus no nosso mundo. Deus está presente através deste rosto humano de esperança e de alegria. Creio que deveríamos descobrir o poder de Deus deste modo e não por detrás da catástrofe.
Parece-lhe que essa é a explicação mais fácil? Imagine um ateu. Quando ele se pergunta sobre porque é que, se há um Deus, houve uma pandemia, a resposta mais fácil será dizer-lhe “porque Deus nos está a castigar”.
Obviamente. Toda a gente tem alguma espécie de explicação. O verdadeiro perigo, o que é mesmo duro nesta catástrofe — e em qualquer catástrofe das nossas vidas —, é o sentimento de que estamos numa situação sem qualquer sentido. Todos temos, no nosso subconsciente e na nossa inconsciência, alguma expectativa de que o mundo tem um sentido, de que o bom é melhor que o mau. Em algumas situações, como a pandemia, como a morte de um amigo, corremos o risco de perdermos esta confiança básica e de nos perguntarmos: o que significa, qual é o sentido? Perguntamo-nos, procuramos as respostas, mas é perigoso ter uma explicação demasiado simplista.
E porque é que lhe parece que esta explicação continua a ser oferecida por alguns setores da Igreja? É um dos problemas que a ala mais conservadora está a criar no seu interior?
É um problema psicológico. Haverá sempre quem use a religião como instrumento, uma instrumentalização da Igreja. É uma grande tentação para as pessoas religiosas.
Diz que a ausência da eucaristia pode levar os católicos a entender verdadeiramente o seu valor e usa uma imagem interessante no livro, a cobertura das imagens e da cruz durante o período da Quaresma. Isso leva-o a crer que no final da pandemia e do confinamento haverá efeitos positivos para a Humanidade que agora não antevemos?
Para algumas pessoas sim, para outras não. Não espero uma renovação generalizada da fé e das religiões. Depois das guerras mundiais, houve sempre grandes expectativas de que toda a gente se iria converter — e isso não se concretizou. Para algumas pessoas, será o caminho para entender a vida e a fé de um modo melhor e mais profundo, mas certamente não para todos.
Na sua própria vida, o que é que mudou?
A proximidade das pessoas é muito importante. Usamos estas ligações, como a que nós estamos a usar agora. Tenho este contacto com os meus estudantes, todos os dias tenho aulas. De certo modo, é ótimo: consigo ver todos os meus estudantes nas suas casas, nos seus apartamentos, e para mim também é melhor ficar na minha casa e não ter de ir à faculdade. Mas, por outro lado, é algo artificial. Martin Heidegger dizia que a técnica encurtou todas as distâncias, mas não criou qualquer proximidade. Redescobrir a cultura da proximidade também é uma tarefa para os cristãos.
E a pandemia é uma oportunidade para isso.
Sim. E também é uma oportunidade para falar com pessoas sobre estas questões. Esta pandemia tem tantas dimensões, tantos aspetos. É uma crise dos sistemas de saúde, é uma crise política — o governo do nosso país é terrível e todos o vemos, as pessoas desconfiam do sistema político. É perigoso que as pessoas não confiem na democracia. É um tempo de muitas notícias falsas e de teorias da conspiração.
Algumas teorias da conspiração, sobre as vacinas e a Covid, também inflamadas por alguns setores da Igreja.
Sim, é verdade.
A dada altura do livro, diz que, infelizmente, a Igreja não tem tido grande sucesso em perceber porque é que as pessoas estão a abandoná-la. Até escreve que a maioria das pessoas que viram as costas à Igreja não se tornam ateus, simplesmente levam a fé mais a sério do que aquilo que encontram na Igreja. Acredita que estes conflitos internos entre fações da Igreja tem contribuído para a dificuldade da instituição em dar respostas às pessoas numa altura em que elas precisavam de respostas?
Sim, sem dúvida. Mas, por outro lado, alguns gestos, como aquela famosa oração do Papa Francisco na Praça de São Pedro vazia, foi uma imagem tão poderosa, um momento tão poderoso, que foi percecionado também pelos não-crentes. Em alguns momentos, há sinais, gestos, palavras por parte de pessoas no interior da Igreja que surgem também para os não-crentes. É exatamente isso que o Papa Francisco está a fazer. Mas alguns dentro da Igreja — e da hierarquia — concentram-se apenas no modo tradicional, preocupam-se apenas com a possibilidade de as pessoas irem à igreja, com a missa. E muitas pessoas têm tantas perguntas, questões espirituais. O melhor é olhar por cima dos nossos próprios ombros: as pessoas estão a confrontar-se com isto na nossa cultura, está presente nas nossas sociedades, na nossa civilização. Há muitas questões metafísicas, mesmo para os não-crentes.
Refere-se no livro ao conceito de “apateístas”. Não ateus, mas pessoas que estão apáticas, que colocam perguntas mas não encontram respostas na Igreja. O que é que a Igreja oferece hoje a estas pessoas? O padre Halík é de um país muito pouco religioso, terá uma experiência provavelmente muito diferente do que acontece aqui em Portugal.
Sim. Habitualmente fala-se da República Checa como o país mais ateu do mundo, mas não creio que haja assim tantos ateus. O que há é muito poucas pessoas que se identificam totalmente com a Igreja. Mas também existem estes “apateístas”: não têm nada contra a Igreja, contra Deus ou contra a religião, mas pensam que tudo isso é algo que não tem nada a ver com as suas vidas, não estão interessados. Depois, há alguns agnósticos e há muitos buscadores espirituais, pessoas que se dizem espirituais, mas não religiosas. Este é o grupo em que nos devíamos focar, e não apenas nos nossos crentes, nos nossos paroquianos. Devíamos dirigir-nos às pessoas que estão fora dos limites visíveis da igreja, não apenas como missionários que os querem converter ou empurrar para as instituições e estruturas mentais da Igreja, mas abrindo as estruturas e ir ter com essas pessoas, dialogar respeitosamente com elas, acompanhá-las. É disso que as pessoas precisam agora: acompanhamento e não apenas a clássica missão. E para acompanhar as pessoas é necessário ter sensibilidade, porque estamos a falar línguas diferentes. O futuro da Igreja depende da nossa capacidade de comunicar com as pessoas fora da Igreja — ou com as pessoas que, estando formalmente na Igreja, estão desapontadas, passivas, porque lamentam que o que a Igreja faz não tenha qualquer ligação às suas vidas, às suas expectativas, às suas questões. Muitas vezes, a Igreja tem muitas respostas para as perguntas que ninguém fez!
Mas, no livro, também alerta para os perigos de uma “modernização fácil” da Igreja. Em que é que está a pensar quando fala disto?
Por exemplo, em alguns tipos de liturgia que se conformam totalmente ao gosto das pessoas, ou na receção acrítica daquilo que existe à nossa volta; o conformismo com a cultura. Temos sempre de ter um equilíbrio entre a proximidade e a distância relativamente à cultura do nosso tempo. Não podemos criar uma espécie de sociedade paralela, mas também não devemos perder a nossa identidade. Não devemos conformar-nos de modo acrítico a tudo. É preciso um equilíbrio entre esta proximidade e a distância. Se não temos uma distância crítica, podemos perder a nossa identidade.
Também é necessário evitar um regresso aos tempos ancestrais, às celebrações barrocas folclóricas, como diz no livro.
Claro. Porque se nos limitarmos a imitar uma qualquer forma do passado, estamos a fazer uma coisa diferente! A tradição é algo criativo. A tradição é a recontextualização. Se nos limitamos a repetir mecanicamente o que era feito no passado, estamos a fazer algo diferente do que se fazia no passado, porque no novo contexto tem outro significado. Simplesmente repetir, por exemplo, aqueles modos folclóricos é apenas um espetáculo para turistas e não uma expressão da fé viva. A fé tem a sua própria história.
Mas consegue entender o fenómeno? Porque é que há pessoas — e não falo dos turistas, mas de alguns setores dentro da Igreja — atraídas por estas formas antigas de cerimónia?
Bom, obviamente tem um certo valor estético. Se a liturgia tradicional é feita com entendimento… Porque, para muitos padres conservadores jovens, é apenas uma contra-cultura, fazem-no sem o entenderem. Tudo tem de ter o seu próprio ambiente. É importante que haja pluralismo na Igreja — e também pluralismo na liturgia. Se a liturgia tradicional é a expressão do estilo de vida de uma comunidade monástica, se há uma comunidade monástica que tem uma experiência diferente com o tempo, com o ritmo da vida, então a antiga liturgia é a expressão do seu estilo de vida, é algo autêntico. Eu próprio também gosto de, às vezes, ir a algum mosteiro e desfrutar disso, porque tem as raízes na própria vida da comunidade. Mas fazê-lo na paróquia normal, para as pessoas que têm um estilo de vida diferente, um ritmo diferente na vida, é mau.
Não é autêntico, como dizia.
Exato. Tudo tem de ter o seu contexto, a sua biosfera.
Também aborda no livro o problema do populismo, que tem crescido na Europa, e diz que, por vezes, os políticos populistas tentam aproveitar a retórica e os símbolos do Cristianismo — mas que a Igreja não deve aliar-se a eles. Teme que esses partidos populistas estejam a atrair cada vez mais católicos por causa dos seus argumentos? Como o aborto, a eutanásia…
Sim. Há muito tempo que existe uma atração para algum autoritarismo, para um sistema rígido, entre alguns católicos. Penso que tem algumas raízes históricas. No tempo do Iluminismo, no tempo da Revolução Francesa, especialmente durante o terror dos jacobinos, a Igreja ficou tão aterrorizada que se afastou de todos os valores do Iluminismo e criou uma contra-cultura contra a modernidade. O Primeiro Concílio do Vaticano foi a expressão deste catolicismo enquanto contra-cultura paralela contra a cultura moderna — especialmente para o catolicismo europeu. Algo diferente aconteceu nos Estados Unidos. Na Inglaterra e na América, o Iluminismo não teve este aspeto anti-cristão e anti-religioso, e os Estados Unidos, praticamente desde o início, foram uma sociedade pluralista. A Igreja Católica entendeu que é possível viver numa sociedade democrática pluralista e a experiência do catolicismo americano também influenciou o Concílio Vaticano II, através de alguns pensadores e também através de Jacques Maritain, que passou vários anos na América, durante a Segunda Guerra Mundial. Este catolicismo enquanto contra-cultura é um modelo que é atrativo para algumas pessoas.
Ainda hoje?
Sim, sobretudo nos momentos em que há alguma mudança na sociedade, em que há algum fenómeno perigoso, em que as pessoas sentem medo e ansiedade, e procuram algumas respostas simples, por algum espaço de certeza. Tudo bem, a Igreja tem de perceber isto, mas não para manipular.
A pandemia poderá contribuir para este problema.
Certamente.
Qual é a sua pior expectativa sobre o pior que pode acontecer se políticos populistas e líderes religiosos se juntam para aproveitar esse medo das pessoas? Já o temos visto em teorias da conspiração sobre as vacinas.
Sim, sim. Sempre. Vimo-lo nos Estados Unidos com estas teorias absurdas, extremistas e loucas, que eram apoiadas por Donald Trump e por aí fora. Foi muito visível o quão perigoso pode ser. Mas há uma verdadeira crise da democracia, uma crise da confiança na democracia. Está ligado ao processo da globalização — e há uma crise da globalização. A globalização atingiu o pináculo no nosso tempo, mas agora está a tornar-se visível também o lado sombrio da globalização. A pandemia é um desses lados sombrios da globalização. Também a democracia clássica foi projetada, criada a pensar no tamanho dos Estados-nação. Agora, há organismos internacionais, económicos e políticos, e não é tão fácil implementar a democracia a uma dimensão global. É também um desafio para os cristãos: apoiar a democracia e criar uma biosfera moral para a democracia. A democracia precisa de uma biosfera moral e de confiança entre os povos. É necessário ter pessoas credíveis na política e hoje vemos o oposto. Vemos os populistas, muito influentes, e muitos deles estão a usar erradamente os símbolos religiosos, que estão cheios de energia. Os símbolos são poderosos, estão relacionados com a estrutura profunda do nosso subconsciente — e os populistas sabem usá-los. E poderá haver também um problema: as pessoas mais progressistas, de esquerda, têm alguma falta de confiança nas instituições, enquanto as pessoas de direita, mais conservadoras, estão concentradas nas instituições. As instituições estão cheias de pessoas conservadoras assustadoras. (Risos) Temos de levar isto a sério: as instituições são parte da nossa vida. Devemos ajudar a criar instituições de confiança.