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“Um julgamento Dreyfus dos tempos modernos”. Foi assim — invocando o histórico julgamento francês do oficial judeu, denunciado por Zola em J’accuse pelos seus contornos antissemitas — que Benjamin Netanyahu reagiu à decisão desta quinta-feira do Tribunal Penal Internacional (TPI) de emitir mandados de captura contra si e o ex-ministro da Defesa, Yoav Gallant.
“Um dia negro”, acrescentou o Presidente israelita Isaac Herzog. “Um precedente perigoso”, classificou Gallant. “Antissemita” e “completamente perigoso”, rematou o ministro Itamar Ben-Gvir. Menos de uma hora depois do comunicado do TPI, era evidente que a estratégia de defesa em Telavive já estava previamente montada: criticar a decisão de Haia — que também emitiu um mandado de captura para o comandante do Hamas Mohammad “Deif” al-Masri — nos termos mais fortes possíveis e acusar o tribunal internacional de fazer equivaler a ação do grupo terrorista Hamas ao Exército de um país.
As acusações contra Netanyahu e Gallant são graves: crimes de guerra e crimes contra a Humanidade. O coletivo de três juízes considerou, de forma unânime, haver indícios de que o primeiro-ministro israelita e o seu ex-ministro da Defesa terão, desde o dia 8 de outubro de 2023, privado “intencionalmente a população civil em Gaza de matérias indispensáveis à sua sobrevivência, incluindo água, comida, medicamentos, combustível, eletricidade e acesso a cuidados de saúde”, utilizando assim “a fome como arma de guerra”. Acusam também os dois líderes políticos de terem direcionado ataques “intencionalmente” contra civis. A estes dois mandados podem seguir-se outros, para outros políticos ou chefias militares.
Telavive iniciou uma guerra na Faixa de Gaza em retaliação pelo ataque de 7 de Outubro do Hamas, onde quase 700 civis foram mortos, mais de mil foram feridos, centenas foram alvo de agressões sexuais e outros tantos foram raptados (alguns permanecendo ainda como reféns em Gaza). Desde então, os ataques aéreos e a invasão terrestre das Forças de Defesa de Israel a Gaza já provocaram a morte de mais de 45 mil pessoas (a maioria civis, mas também militantes do Hamas e soldados israelitas) e criaram uma crise humanitária de deslocados internos que não têm, na maioria, acesso a comida e medicação.
Na prática, o efeito desta ação do TPI será limitado, já que Haia não dispõe de uma força policial própria e a sua jurisdição só se aplica nos países que subscrevem o Estatuto de Roma (124 ao todo, incluindo a maioria das nações europeias, mas não os EUA, a China, a Rússia e o próprio Estado de Israel). Isto significa que Netanyahu e Gallant só serão detidos se viajarem para algum destes países — o que pode ser facilmente evitado, como o Observador explicou em maio, quando o pedido foi feito pelo procurador.
Mas o impacto político da decisão pode ter ramificações imprevisíveis, sobretudo num momento em que Israel negoceia a possibilidade de um cessar-fogo quer com o Hamas quer com o Hezbollah e em que o seu maior aliado, os Estados Unidos da América, estão num processo de transição para uma nova presidência.
Dentro de Israel — onde o primeiro-ministro enfrenta um processo judicial por suspeitas de corrupção, que tem manchado a sua popularidade e que terá uma audiência em breve —, a decisão do TPI pode ter um efeito de união. De Washington já vieram sinais claros de alinhamento total com Telavive, que podem resultar numa guerra aberta com Haia. Mas as reações de vários governos europeus mostram que o Velho Continente está completamente fraturado sobre como deve responder.
Oposição unida com Netanyahu contra decisão do TPI. “Isto pode jogar a favor dele”
A decisão do TPI é, de facto, sem precedentes: nunca líderes de um país democrático e alinhado com o Ocidente tiveram mandados de detenção emitidos pelo tribunal internacional. No passado, o TPI pediu a captura de dirigentes de países como a República Democrática do Congo, o Sudão, o Afeganistão e, mais recentemente, o Presidente russo Vladimir Putin.
Isso tem ocorrido porque, como explica o jornal alemão Frankfurter Allgemeine Zeitung (FAZ), as orientações do TPI são para atuar apenas quando os mecanismos judiciais dos próprios países falham — o que habitualmente não acontece em democracias. Ao tomar esta decisão, nota o FAZ, o tribunal está “a acusar implicitamente a Justiça israelita de fechar os olhos às violações legais em Gaza”, por não ter aberto qualquer processo judicial de investigação às ações militares israelitas no território.
Não se espere, porém, que tal venha a acontecer agora. Isto porque o sentimento geral em Israel é de revolta contra a decisão do TPI — basta ver as reações dos políticos da oposição, que se alinharam totalmente com Netanyahu. Benny Gantz decretou a decisão como “uma cegueira moral” e “uma mancha vergonhosa”; Yair Lapid considerou-a “uma recompensa ao terrorismo”.
Em maio deste ano, quando o procurador Karim Khan pediu ao tribunal a emissão dos mandados de captura, o professor israelita de Direito Humanitário Neve Gordon definiu assim o sentimento popular: “A auto-perceção é de vitimização. E isto vai ser interpretado como parte disso, mesmo por aqueles que não gostam nada de Netanyahu e querem-no fora do poder”, afirmou o académico da Universidade Queen Mary à New Statesman. “Dentro de Israel, isto pode, ironicamente, jogar a favor dele.”
Esta quinta-feira, poucas horas depois de se efetivar essa decisão do tribunal (tomada ao fim de oito meses e um dia), o professor Nathan J. Brown reforçava esta mesma ideia ao Observador: “Em Israel, há um sentimento forte em quase todo o espectro político de que os mecanismos legais internacionais são ilegítimos, hostis a Israel e até hostis aos judeus”, resumiu o especialista em Médio Oriente da Universidade George Washington. “Há algumas pessoas na extrema-esquerda e alguns palestinianos com cidadania israelita que não sentem isto, mas eles não têm qualquer influência na maior parte da opinião pública.”
Na prática, aquilo a que deveremos assistir nos próximos tempos é a um aumento da popularidade de Netanyahu e da sua política em Gaza, já que para muitos a decisão do TPI confirma a perceção de que instituições internacionais como a ONU, por exemplo, têm um viés contra o Estado de Israel — e até, para alguns, antissemita. O sentimento pode ser resumido na expressão invocada esta quinta-feira pelo ministro David Amsalem, que escreveu no X “Hague [Haia] Shmague”, acompanhado de um emoji a mostrar o dedo do meio. O termo não é novo e refere-se, como explicava o Haaretz em 2019, a uma atualização da famosa expressão “Um-Shmum”, usada por David Ben-Gurion, que se pode traduzir por “Desprezo pela ONU”. Agora, é aplicada ao TPI.
האג שמאג…???????? pic.twitter.com/bpGQBqZIsk
— דודי אמסלם ???????? (@dudiamsalem) November 21, 2024
Congresso e futuro governo dos EUA preparam-se para aplicar sanções a Haia — e também estão de olho na ONU
No campo internacional, Telavive conta com outro amparo de peso: a ação dos EUA, que — apesar de estar numa fase de transição ente administrações — parecem estar unidos na defesa intransigente de Israel.
“Os efeitos políticos desta decisão vão ser neutralizados por uma forte posição americana que irá resistir a quaisquer tentativas de aplicar a ordem [de detenção]”, notava ao início da tarde Nathan Brown. “Poderão até ser tomadas medidas contra os próprios indivíduos que tomaram a decisão.” Para o académico, seria um caminho perigoso, que abriria um precedente de “criminalização do Direito Internacional”.
Poucas horas depois, confirmava-se parte destes prenúncios. Um porta-voz da Casa Branca afirmou ao Axios que a atual administração está “profundamente preocupada” com “os erros processuais perturbadores que levaram a esta decisão”. Em maio, quando o procurador fez o pedido ao Tribunal, o Presidente Joe Biden tinha classificado a situação como “escandalosa”, acrescentando que “não há qualquer equivalência entre Israel e o Hamas”.
Do lado da futura administração Trump, não há qualquer divergência. “Podem esperar uma resposta forte ao viés antissemita do TPI e da ONU em janeiro”, avisou Mike Waltz, que será conselheiro de segurança nacional do novo governo. A rádio estatal israelita Kann noticiou esta mesma quinta-feira que, ao longo dos últimos dias, Telavive tem estado a recolher ideias e sugestões de ações que a administração Trump pode vir a aplicar ao TPI.
A porta já tinha sido aberta por alguns políticos norte-americanos. John Thune, que será o próximo presidente do Senado norte-americano, afirmou no domingo que, se a emissão dos mandados de detenção contra Netanyahu e Gallant avançassem, “o Senado deve imediatamente aprovar leis para sanções [ao TPI], como a Câmara [dos Representantes] já fez, com votos dos dois partidos”.
Esta quinta-feira, depois de ser noticiada a emissão dos mandados, o senador Lindsey Graham confirmou que vai apresentar uma proposta nesse sentido: “Vou apresentar uma proposta de lei que vai ser um aviso a outros países: se auxiliarem o TPI depois desta ação contra o Estado de Israel, podem aguardar pelas consequências vindas dos Estados Unidos”, escreveu no X, acrescentando que qualquer nação que colabore com o TPI é “um parceiro numa ação desbragada que atropela o Estado de Direito”.
Europa dividida terá dificuldade em responder “de forma coerente e consistente”
As ameaças de Washington podem ajudar a explicar as hesitações de alguns dos países subscritores do Estatuto de Roma que demoraram a confirmar se iriam proceder à detenção, caso os líderes israelitas viajem para os seus países.
Foi o que aconteceu em França, por exemplo, onde o porta-voz Christophe Lemoine começou por dizer que não iria comentar o tema por ser “legalmente complexo” e, horas depois, veio clarificar que Paris apoia “a ação do procurador do tribunal, que age com total independência” e que a reação do governo francês será em linha com “a luta contra a impunidade”. De Itália, o ministro dos Negócios Estrangeiros Antonio Tajani garantiu que o país “apoia o TPI”, mas avisou que este “deve ter um papel judicial e não político”.
Fora da União Europeia, mas com peso na diplomacia do continente, o Reino Unido também quis manter alguma ambiguidade: garantiu que respeita a “independência” do TPI, mas sublinhou que “não há equivalência moral entre Israel — uma democracia — e o Hamas e o Hezbollah libanês, que são organizações terroristas”.
Nathan J. Brown não tem dúvidas de que a decisão do TPI irá colocar sérias dificuldades à Europa, até porque há a possibilidade de Haia vir a emitir mais mandados de captura para outras figuras israelitas no futuro. “Alguns países europeus, onde se levam muito a sério os mecanismos legais internacionais, vão ficar numa posição embaraçosa”, decreta o investigador. “Divisões intra-europeias, a aliança com os EUA e, por vezes, a política interna vão fazer com que não queiram deter responsáveis israelitas — mas os seus enquadramentos legais e alguns eleitores vão pressioná-los e terão dificuldades em responder de forma coerente e consistente.”
As horas seguintes ilustraram precisamente a divisão profunda entre vários países europeus.
Por um lado, a Hungria apressou-se a condenar a decisão, que classificou de “vergonhosa”; a República Checa afirmou que o Tribunal “minou a sua própria autoridade noutros casos”; a Áustria falou numa medida “totalmente incompreensível”. Por outro, os Países Baixos garantiram que irão deter os líderes israelitas se estes entrarem no país e a Bélgica foi ainda mais longe e pediu que sejam impostas sanções económicas a Israel, porque “crimes de guerra e crimes contra a Humanidade não podem simplesmente não ser castigados” (nas palavras da vice primeira-ministra Petra De Sutter).
A Alemanha foi a ausência mais notada: até ao início da noite desta quinta-feira, Berlim não se tinha pronunciado sobre o assunto.
A Comissão Europeia, contudo, fez-se ouvir rapidamente, através da conta no X de Josep Borrell: “Tomo nota da decisão de emitir mandados de detenção do primeiro-ministro israelita Netanyahu, o antigo ministro Gallant e o líder do Hamas Deif”, escreveu o alto-representante para os Assuntos Externos. “Estas decisões são vinculativas para todos os Estados presentes no Estatuto de Roma, o que inclui todos os Estados-membros da UE.”
O tema abrirá certamente brechas dentro da próxima Comissão, que deve tomar posse em dezembro, dificultando a posição da Europa para lidar com a situação no Médio Oriente. Mas a decisão do TPI, acreditam vários especialistas, contribuirá para que alguns países reforcem as suas críticas a Israel — que, a longo prazo, pode sentir consequências políticas. “Isto cria uma narrativa de um país que não cumpre o Direito Internacional e, portanto, é mais legítimo ostracizá-lo”, resumiu ao Wall Street Journal Yuval Shany, investigador do Instituto pela Democracia de Israel.
E o professor Nathan Brown acredita que, apesar do apoio inicial de que Netanyahu irá gozar, a decisão acabará também por pesar internamente: “A longo prazo, isto irá aumentar a sensação de desmoralização e isolamento nas partes da sociedade israelita que são mais viradas para o resto do mundo (por questões de origens, educação ou interesses profissionais e de negócios)”, avisa. “Até muitos que consideram a medida injusta estão preocupados com o futuro da sociedade em que os seus filhos e netos vão crescer, envolvida numa guerra perpétua e em isolamento internacional.”
Por enquanto, o procurador de Haia Karim Khan, que apresentou o pedido ao tribunal para emitir os mandados de detenção, continua inflexível: “Peço a todos os Estados que mantenham o seu compromisso com o Estatuto de Roma, respeitando e cumprindo estas ordens judiciais.”