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MANUEL MOURA/LUSA

MANUEL MOURA/LUSA

Tragédia de Alcafache deixou vítimas por identificar. 33 anos depois, seria "impensável"

Passaram 33 anos do desastre ferroviário de Alcafache. Há corpos que nunca foram identificados, restos mortais confundidos com destroços e fragmentos humanos que ficaram em frigoríficos durante anos.

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Caíam-me as lágrimas a cada corpo que encontrava. A mim e aos outros bombeiros”. Américo Borges perdeu conta à quantidade de cadáveres que retirou das carruagens e carregou nos braços, naquele 11 de setembro de 1985. Os corpos estavam carbonizados e praticamente irreconhecíveis. Alguns mutilados. O então comandante dos bombeiros de Canas de Senhorim deparou-se com partes espalhadas pelas carruagens ou fora delas, tal foi a violência da colisão entre os dois comboios.

Nunca se soube ao certo quantas pessoas morreram no desastre ferroviário de Moimenta-Alcafache. Algumas fontes garantiam que havia cerca de 14 cadáveres completos e reconhecíveis. Outras apontavam para 35 mortos. Outros ainda iam além da centena ou da centena e meia. Alguns falavam de 400 — um valor que se chegou a considerar exagerado. O número oficial avançado pela CP – Comboios de Portugal — e aquele que foi tido em conta no julgamento dos quatro funcionários da empresa, que acabaram em liberdade — ficou nos 49. O balanço ficou, até hoje, por apurar, associando-se ao acidente cerca de 150 mortos.

O comboio Sud-Express, com destino a Paris, transportava centenas de emigrantes portugueses (Foto: MANUEL MOURA/LUSA)

AFP

O comboio regional 1324, provindo da Guarda e com destino a Coimbra, aguardava pelo Sud-Express, provindo do Porto e com destino a Paris, na estação de Mangualde — um dos pontos do percurso com duas linhas e onde seria possível fazer o cruzamento. Mas o comboio internacional circulava com vários minutos de atraso, levando a uma alteração do cruzamento para a estação de Nelas. O atraso, contudo, não era tão grande quanto isso: não deu tempo suficiente para o comboio regional 1324 chegar a Nelas. Os funcionários das estações sabiam que a colisão ia acontecer mas, com os comboios em circulação, não havia nada a fazer senão esperar, em silêncio. Poucos minutos depois, começaram a ver uma coluna de fumo a erguer-se, na zona de Alcafache. Os dois comboios tinham chocado frontalmente entre as duas estações. Eram 18h37.

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A colisão foi tão violenta que projetou quatro carruagens para um pinhal junto à linha ferroviária. E, com elas, os passageiros. Passados 33 anos do acidente na Linha da Beira Alta, há corpos que nunca foram identificados ou sequer reclamados. Algo que hoje em dia, “nunca aconteceria”, mas “o que se fez foi o que se fazia na época”. A lógica da altura era semelhante à do terramoto de 1755: enterrar os mortos e cuidar dos vivos. Afinal, havia uma linha ferroviária para reabrir.

Sem lista de passageiros, a identificação dos corpos foi mais difícil

“As pessoas, aquelas que conseguiam andar, estavam todas a correr para a estrada, a correr no meio de pinhal. Queriam ser socorridas”. Luís Abreu, com 22 anos na altura, seguia numa ambulância na estrada nacional “nem a 100 metros” da linha ferroviária. Era bombeiro voluntário e aproveitava as férias de verão para fazer transporte de doentes. Não chegou a ver a colisão entre os dois comboios, mas quando estava a passar lá perto, começou a ver fumo. “Como era setembro, pensámos que estava ali a começar um incêndio. Ainda assim, não podíamos ir”, conta Luís ao Observador. Preparou-se para fazer uma comunicação através do rádio transmissor que tinha na ambulância — a qual seria alcançada por todas as corporações ali perto.

Foi nesse instante que Luís notou que dezenas de pessoas “feridas na cabeça” e com “cortes no corpo” corriam em direção à sua ambulância. E fez uma comunicação diferente daquela que julgava que ia fazer — e que viria a ser ouvida por Américo Borges. “As que couberam, entraram”, recordou o bombeiro voluntário ao Observador. O doente que transportavam acabou por ser acompanhado por cerca de 10 pessoas. O pai de Luís, também bombeiro e motorista da ambulância, levou até uma criança pequena ao colo.

"As pessoas, aquelas que conseguiam andar, estavam todas a correr para a estrada, a correr no meio de pinhal. Queriam ser socorridos"
Luís Abreu, bombeiro voluntário

O alerta estava feito e as ambulâncias e autotanques iam a caminho. Luís e o pai seguiram até ao hospital onde, inicialmente, iam deixar o doente que transportavam. Quando passaram novamente na estrada nacional, já havia vários meios no local e “até um helicóptero de combate ao fogo que tinha vindo de Viseu”. “Ainda havia corpos queimados em cima das carruagens”, lembra Luís Abreu.

O acidente de Alcafache tinha, desde logo, um obstáculo inerente: era o que, do ponto de vista da medicina legal, se chama de incidente aberto — ocorrências em que não se sabe quem são as possíveis vítimas. “Por exemplo, num acidente de avião, temos a lista com os nomes dos passageiros. É um incidente fechado. Naquela altura, não se tinha o registo de quem ia nos comboios”, explicou fonte do Instituto de Medicina Legal do Porto (IMLP) ao Observador, nem se sabia ao certo quantos passageiros seguiam nas duas composições. No serviço regional, estavam entre 30 a 40 passageiros. No Sud-Express, o número era bem maior, mas igualmente incerto: de 200 a 350.

Nunca se soube ao certo quantas pessoas morreram no desastre ferroviário de Moimenta-Alcafache (Foto: MANUEL MOURA/LUSA)

AFP

Em desastres assim, como o de Moimenta-Alcafache, tenta-se “ir fechando o incidente com toda a informação que se vai trabalhando na parte ante mortem”: informações das pessoas que se vão obtendo através de familiares ou representantes diplomáticos. “Se alguém nos disser que um familiar tinha estado naquele comboio, vamos recolhendo essa informação e fechando o incidente”, explicou a mesma fonte do IMLP, adiantando que “a identificação humana é um exercício de comparação entre dados post morterm e dados que cheguem”. “Tenho de ter informação de quem pode ser e não de quem é”, resume a mesma fonte. Mas, em 1985, estas práticas não eram utilizadas: “Não havia, nessa época, a forma de trabalhar ante-mortem.”

O único método para identificar corpos era pelas impressões digitais

Passados 33 anos, Américo consegue reproduzir a mensagem, transmitida por rádio e repetida várias vezes, que ouviu naquela tarde de quarta-feira: “Enviem muitas ambulâncias para a estrada entre Nelas e Mangualde”. Américo era médico e costumava passar umas horas no quartel, ao final do dia, “para assinar os papéis que eram precisos e fazer o trabalho de comandante”. Naquele 11 de setembro e nos dias que se seguiram, deixou tudo por fazer. A mensagem enviada pelo rádio transmissor continuava: “Enviem autotanques que as carruagens estão a arder”.

Algumas carruagens ficaram em chamas durante horas. Américo Borges recorda que terão atingido cerca de 600 graus de temperatura um valor semelhante ao dos fornos crematórios. Daí que se acredite que a maior parte das mortes tenha sido originada não pelo choque dos comboios, mas pelo incêndio. Falava-se, na altura, que alguns corpos ficaram praticamente transformados em cinzas.

Fonte do IMLP acredita que “transformados em cinza” possa ser uma força de expressão. Ainda assim, não excluindo a possibilidade de tal ter acontecido em alguns casos, a mesma fonte adianta que, hoje em dia, é possível descobrir o ADN da pessoa através de “pequenos fragmentos ósseos”. A genética é uma das três formas principais para identificação das vítimas, utilizadas atualmente. “Existem três grandes áreas: impressões digitais, dentes e ADN”, refere a mesma fonte, explicando que essa é a ordem utilizada: “Trabalhamos do mais barato para o mais caro e do mais fácil para o mais difícil. Se conseguirmos identificar o corpo através das impressões digitais, já não tentamos através dos dentes”.

Estima-se que as carruagens terão atingido cerca de 600 graus de temperatura -- um valor semelhante ao dos fornos crematórios (Foto: MANUEL MOURA/LUSA)

AFP

No desastre de Moimenta-Alcafache, “o único método era a dactiloscopia”. Mas com os corpos carbonizados ou mutilados, tornava-se difícil fazê-lo. Além disso, a identificação com impressões digitais só era possível através da base de dados civil do país. Isto significa que só funcionava em pessoas com nacionalidade portuguesa. Muitos dos passageiros eram emigrantes. Alguns deles, podiam ter filhos já nascidos em França e por isso, não faziam parte da base de dados portuguesa.

“Foi a filha do casal quem identificou os mortos através das roupas e da aliança”. Alguns rostos foram até reconstituídos

As camas com feridos e as camas com mortos, estes cobertos com lençóis brancos, misturavam-se nos corredores dos hospitais ali perto: Nelas, Santa Comba Dão, Mortágua, Carregal do Sal, Viseu e Mangualde. Neste último, improvisou-se uma morgue. Lá foram colocados os corpos das vítimas ou partes deles que não eram reconhecíveis. Nos corredores dos hospitais, apareciam também familiares, vindos de vários locais do norte do país, em busca de informações. Aqueles que não os encontravam, seguiam caminho até às morgues para, aí, identificar quem procuravam.

Foi o caso da filha de Esperança Marques de Figueiredo e Arnaldo Rodrigues Moura. Dirigiu-se ao hospital de Nelas para saber dos pais. Tinham morrido. “Foi a filha do casal quem identificou os mortos, através das roupas do pai e da data da aliança da mãe”, lê-se na edição de 12 de setembro do Diário de Lisboa. São “metodologias secundárias” cada vez menos usadas. Identificar cadáveres através dos objetos pessoais são formas “muito pouco fiavéis”, mas que “na época, usavam-se”, explica fonte do IMLP, acrescentando ao Observador que é preciso algum cuidado, por poder cair-se no erro de considerar que alguns objetos pertenciam àquela pessoa só porque se encontrava perto da vítima.

“Reconstruir as eventuais feições do indivíduo é uma técnica que tem muitos anos. Mas há muitos traços que não têm tradução óssea, como o tamanho do nariz, o cabelo ou as sobrancelhas"
Fonte do Instituto de Medicina Legal do Porto

Alguns cadáveres que não foram reclamados nos hospitais, foram transportados para o Instituto de Medicina Legal do Porto, onde os rostos de duas vítimas foram reconstituídos no Instituto [de Medicina] Legal do Porto”, noticiava a edição de dia 14 de setembro de 1985 do Diário de Lisboa. Uma delas era uma “mulher, de cor negra”. Em relação à outra, não se sabia o sexo, mas aparentava ter “entre 40 e 50 anos”. Além disso, foram encontrados “vestígios de uma camisola branca, calção azul” e, “num dos bolsos, um conjunto de cinco chaves, duas das quais de automóvel, uma de porta e outra de mala”. As imagens da reconstituição apareçam na edição desse mesmo jornal.

Não se sabe se alguma vez esses corpos chegaram a ser identificados ou reclamados. “Reconstruir as eventuais feições do indivíduo é uma técnica que tem muitos anos. Mas há muitos traços que não têm tradução óssea, como o tamanho do nariz, o cabelo ou as sobrancelhas”, explica fonte do IMLP, acrescentando que são “técnicas que ainda se usam” e que “podem dar uma ajuda”.

Alguns restos mortais foram arrastados pela água. Outros ficaram em frigoríficos durante anos

As chamas dificultaram não só o socorro, mas também a conservação dos corpos. Américo Borges não tem problemas em admitir que algumas ossadas terão sido arrastadas pelas grandes quantidades de água atirada para as carruagens, no combate às chamas. E acabaram soterradas junto aos destroços. Hoje em dia, mesmo que os restos mortais tivessem ficado misturados com os destroços, teria havido um cuidado em recuperá-los, garante fonte do IMLP.

Alguns cadáveres que não foram reclamados nos hospitais, foram transportados para o Instituto de Medicina Legal do Porto (Foto: MANUEL MOURA/LUSA)

LUSA

Mas não houve, nem sequer “as famílias se sentiam no direito de reclamar os restos mortais”. Aliás, dois dias depois do acidente, foram sepultados no cemitério de Mangualde restos de corpos que seriam impossíveis de identificar, em oito urnas. Podia ser impossível na altura, mas não atualmente. “Há restos humanos que estão a ser processados há anos e lá se vai chegando a conclusões”, explicou a mesma fonte.

Foi nesse sentido que foram guardados pedaços de fragmentos humanos em gavetas nos frigoríficos do Instituto de Medicina Legal do Porto. “Num dos frigoríficos, havia dois ou três pedaços carbonizados que nunca se soube de quem eram”, recorda a mesma fonte. Mas 15 anos depois, “houve um procurador que mandou enterrar numa sepultura comum”.

A mesma fonte não duvida que tenham sido feitos enterros com toda a dignidade, mas a identificação dos corpos não era, ao contrário de hoje em dia “uma tarefa à qual os estados estão obrigados”. “As famílias têm o direito de ter os restos mortais dos seus familiares”, acrescenta. E muitas, fosse pelo descuido ou pela falta de métodos de medicina legal, não tiveram esse direito.

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