Pediram-lhe para apontar uma palavra para o futuro e Luísa Loura, diretora da PORDATA, recorreu à sua paixão de sempre – a matemática – para identificar aquela que, para si, é a palavra que melhor explica não só o presente, mas sobretudo o futuro: transiência. Porquê? Já lá vamos, porque percebê-lo implica aceder a conceitos de matemática e estatística, que a também docente e investigadora da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa não se furtou a partilhar nesta entrevista. Por entre referências às maiores realizações da sua vida, ao livro que mais a marcou, até às personalidades que mais admira, a antiga responsável da Direção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência (DGEEC) revelou a sua essência na segunda edição da 5 Great Things Talks e deixou uma mensagem, que é simultaneamente um apelo e um aviso: “nós temos que ser capazes de aceitar os outros, conhecê-los para os aceitar”. E criar um atlas virtual das culturas mundiais poderia, na sua opinião, ajudar no processo fundamental de conhecimento, compreensão e aceitação de povos e culturas.
A conversa decorreu no âmbito da iniciativa 4Leaders, desenvolvida pelo SAS Portugal, que consiste numa série de entrevistas inspiracionais a líderes destacados do nosso país, com o objetivo de estes partilharem a sua visão do mundo, refletindo sobre o passado para antecipar o futuro.
O desafio de conciliar estudo e família
Moderada por Cláudia Gouveia, do SAS Portugal, a conversa partiu da identificação das grandes realizações da vida de Luísa Loura, para quem “fazer a licenciatura em matemática” foi sem dúvida a maior concretização a nível pessoal. A justificação prende-se com a sua condição de mulher e mãe, como explica: “Tive filhos muito cedo, só iniciei os meus estudos na área da matemática depois de ter filhos e naquela época, que já foi há muitos anos, as mulheres ainda eram muito vistas como as fadas do lar e eu tive de conciliar da melhor forma que consegui a atenção aos filhos, ao marido, à família e ao estudo para conseguir concluir uma licenciatura numa área que sempre me apaixonou.”
Quanto à realização profissional de que mais se orgulha, destaca o trabalho que desenvolveu à frente da DGEEC. Este organismo, criado em 2012, congregou as áreas da educação relativas aos ensinos básico, secundário e superior, o que abriu caminho para a concretização de uma espécie de sonho para quem tem um doutoramento em estatística e computação:
Os grandes Marie Curie e Nelson Mandela
Questionada sobre as grandes personalidades que mais a marcaram, Luísa Loura divide-se em duas referências, cada qual associada a um tempo da sua vida. Na adolescência, assume que foi tocada pelo exemplo da primeira mulher a quem foi atribuído um Nobel. “A fase adolescente é aquela em que estamos a ser construídos como pessoas e todos os inputs que venham de fora e nos marquem vão-nos servir de leme e aqui o leme foi a vida de Marie Curie”, refere, acentuando como a biografia daquela investigadora lhe serviu de modelo. “É preciso perceber que estávamos nos anos 60, em Portugal, um país sob ditadura e em que as mulheres ainda tinham mesmo muito pouco campo de manobra”, diz, contextualizando por que se sentia pouco confortável no papel que a sociedade atribuía ao sexo feminino. A verdade é que tomar contacto com a vida de Marie Curie lhe abriu horizontes e o exemplo foi “inspirador”, pois percebeu que mesmo mantendo “uma vida em família” era possível conciliar.
A segunda grande personalidade da história que Luísa Loura realça terá começado a influenciá-la já na idade adulta, altura em que começa a empenhar-se o mais que consegue “em tudo o que tinha a ver com os direitos humanos e o respeito pelos outros”. Não é, pois, de admirar que a escolha recaia em Nelson Mandela. “Penso que é das maiores figuras de todos os tempos na história da humanidade”, afirma.
E se criássemos um atlas virtual das culturas?
“Não sei se alguém já teve grandes ideias para a humanidade. Esta foi a primeira resposta que deu quando lhe foi pedido para identificar uma grande ideia para a humanidade, exemplificando com a Internet e as redes sociais. Logo a seguir, porém, avançou com aquela que é seguramente uma excelente ideia e que passa pela criação de “um museu virtual das culturas, uma espécie de atlas das culturas mundiais”. “A globalização corre bem em quase tudo menos na aceitação das pessoas umas pelas outras e das pessoas de diferentes culturas”, afirma, defendendo que a existência do atlas poderia ajudar nesse propósito, o qual deveria conter não só informação numérica relativa às diferentes culturas, mas também qualitativa, nomeadamente, “informação sobre hábitos culturais, hábitos sobre vivência em família, hábitos de partilha de momentos em conjunto”.
O futuro e a analítica de dados
Outra boa ideia de que estamos todos a beneficiar é, na perspetiva da responsável pela base de dados online sobre Portugal contemporâneo, a analítica. “Foi uma ideia que certamente surgiu para dar resposta a um problema concreto de muita informação que havia e que está a ter um grande impacto na humanidade”, considera, mas ressalvando que “ainda não há massa crítica de pessoas que dominem as ferramentas da analítica para a fazer desenvolver e progredir à velocidade que ela potencialmente já tem capacidade”.. Ainda assim, não tem dúvidas em considerar que quando existir a tal massa crítica, a analítica “é o futuro”.
Uma aula e uma palavra
Chegamos ao ponto de início deste artigo: afinal, qual é a grande palavra de Luísa Loura para o futuro? A especialista em matemática e estatística não hesita e transiência é o vocábulo escolhido. A docente explica porquê, não sem antes pedir desculpa, com sentido de humor, porque vai dar “um pouco de aula”. Partindo da análise de um fenómeno evolutivo, sabe-se que este “tem oscilações, há vários impactos aleatórios que fazem com que ele altere”. Ora, “todo o histórico ao longo do tempo permite aos analíticos fazerem projeção para o futuro, com mais ou menos erro, mas conseguem encontrar os padrões”, o que leva os estudiosos a dizerem que nestes processos há “fases que se podem considerar estacionárias e fases transientes”. Transiente significa, assim, que aquele processo “tem muitas oscilações, mas está mesmo a mudar de regime”. “O futuro próximo vai trazer coisas que quase certamente [levarão a] entrar num período de transiência, um período em que a analítica, se bem usada pode ser extremamente informativa”, sustenta.
Um dos fatores que irá contribuir para esta transiência é a Covid-19. “Há aqui uma incerteza total, nem conseguimos quantificar de maneira nenhuma a incerteza”, sintetiza, reforçando que “estamos completamente às escuras”. Mas chama também a atenção para um outro fenómeno, este pouco falado nos média e que se prende com a “reviravolta” que se vai operar na demografia mundial. “Onde vai haver um crescimento como nunca houve em zona nenhuma do mundo, no histórico todo da humanidade, é em África”, explica, remetendo o assunto para aquele que identifica como o “grande desafio para a humanidade”. “O maior desafio que a humanidade enfrenta neste momento é o respeito pelos outros.” conclui, deixando claro porque é que a defesa dos direitos humanos constitui uma das suas bandeiras há anos.