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Na Azambuja, há uma comunidade escolar em choque. Na terça-feira, um aluno de 12 anos esfaqueou seis colegas, um ataque que aconteceu dentro das instalações da escola e que, além das seis vítimas, foi testemunhado pelas muitas crianças que se encontravam nos corredores ao início da tarde. Mesmo aqueles que não estavam ali — e que por isso não assistiram aos esfaqueamentos, não viram os ferimentos provocados nos colegas, não ouviram os gritos de pânico —, falaram, ou vão falar nos próximos dias e semanas, com outros alunos. O medo que muitos (alunos e pais) assumiam sentir nas horas a seguir ao ataque pode não ter afetado apenas quem foi testemunha direta daqueles minutos. A direção da escola quis retomar as atividades letivas já esta quarta-feira, um dia após o ataque. Mas ainda há uma ferida por sarar — e isso poderá levar algum tempo a acontecer.
Como é que isso se faz? Como é que se trabalha com uma comunidade — alunos e professores, auxiliares, encarregados de educação — traumatizada pelo que aconteceu? E o autor do ataque? Como se faz a ressocialização de alguém que, aos 12 anos, pegou numa faca e atacou os colegas de escola que foi encontrando pela frente?
As vítimas têm de ser, numa primeira fase, o centro de toda a atenção, defende o psicólogo João Veloso ao Observador. E logo a seguir é preciso olhar para a comunidade escolar e para o próprio agressor. Mas, numa outra fase deste processo, deve também refletir-se sobre como estão a ser educadas as crianças — e ensiná-las a identificar e gerir emoções, aponta a pedopsiquiatra Salomé Ratinho.
“Vítimas são o objeto principal”
Toda a intervenção deve começar pelas “crianças esfaqueadas e as suas famílias”, começa por dizer o psicólogo João Veloso, acrescentando que “as vítimas são o objeto principal”.
Primeiro, é preciso “estabilizar a parte física”, dando início depois a processos para “lidar com o acontecimento”, tendo sempre em mente que, “como existem ferimentos [visíveis], o evento ainda decorre para as famílias afetadas“. “O evento ainda não terminou, só para quem não foi agredido”, que acha que tudo chegou ao fim quando o menor parou de agredir outros colegas, diz o psicólogo especialista em crianças e jovens.
Depois, é importante “disponibilizar recursos às crianças, ou seja, pessoas com valências na área do trauma e adolescentes”. São também necessários “técnicos especializados que partilhem informações com os adultos, para estes monitorizarem as crianças”, diz João Veloso. O psicólogo considera que pode ser positivo “dar aos pais uma cronologia” dos sintomas que os seus filhos (enquanto vítimas) podem vir a desenvolver, como uma espécie de guia.
No Agrupamento de Escolas de Canelas, em Vila Nova de Gaia, é precisamente isto que acontece sempre que há situações de violência graves: as vítimas são apoiadas, acompanhadas e ouvidas, diz o diretor. “Quando acontece uma situação grave, tenho um gabinete de crise implementado na escola, com professores, psicólogos e uma educadora social, que está quase permanentemente nesse espaço. Quando há uma altercação maior, os alunos são automaticamente encaminhados, porque há lá psicólogos que sabem lidar melhor com estes assuntos”, conta Artur Vieira.
O ataque que aconteceu na Azambuja na terça-feira, diz a pedopsiquiatra Salomé Ratinho, deve motivar uma reflexão. “O que aconteceu é um choque e um sofrimento para todos e tem de colocar a sociedade a olhar para si mesma. A situação tem eco em todas as escolas. É preciso refletir, as emoções têm de ser alvo de currículo obrigatório desde o jardim de infância, tem de haver conteúdos trabalhados, consciência emocional, o saber estar um com o outro”, defende.
Professores devem falar “sobre tudo” e transmitir segurança”
Numa segunda fase, é necessária uma intervenção mais alargada, ao nível da própria comunidade escolar. Para tal, deve ser dada “formação aos professores para que estejam em alerta para algumas manifestações que possam acontecer, uma vez que são mais próximos das crianças e da sua dor”, considera João Veloso. Até porque, acrescenta a pedopsiquiatra Salomé Ratinho, “os problemas instalam-se e muitas vezes não são detetados”. “Qualquer situação que tenha chegado a um limite destes é porque houve uma situação prévia que, ou não foi detetada, ou não foi atendida atempadamente”, explica a especialista.
Num email enviado pela direção da escola Básica da Azambuja aos docentes, ao qual a RTP teve acesso, além de ser partilhada informação sobre o apoio psicológico disponibilizado pela escola já a partir desta quarta-feira, também é reafirmado que “nunca houve qualquer indício de que esta criança (ou qualquer outro aluno do agrupamento) pudesse ter um comportamento de risco para com os outros”. O psicólogo Eduardo Sá sai em defesa das escolas.
Num artigo de opinião publicado no Observador, escreve que “é claro que as escolas, porque os professores são sensíveis e experimentados, sentem, entre os seus alunos, quem não está bem”. Mas o “sistema espera que os professores sejam, por vezes, mais burocratas da educação do que pessoas muito presentes na vida dos seus alunos”, acabando por sinalizar “os que perturbam as aulas ou aqueles que, pelo seu comportamento mais exuberante, põem problemas desafiantes à escola”, deixando os restantes à sua mercê.
Os docentes da escola da Azambuja, onde o ataque ocorreu, devem, primeiramente, abordar o assunto “de forma coletiva”, defende João Veloso, monitorizando “depois o que acontece com cada uma das crianças de forma individual”. Há muitas formas para o fazer, diz o psicólogo: “Por exemplo, conversar sobre tudo, dar segurança, explicar que foi algo que aconteceu e que não é frequente, que já se fez algumas coisas para que não se repita e dizer que podem vir ter connosco para falar. No fundo, adotar estratégias para dar sensação de segurança.”
Caso seja necessário acompanhar alguma criança de forma individual, pode ser necessário adotar “alguns modelos terapêuticos para processar memórias traumáticas”, um trabalho em que é fundamental a intervenção de técnicos especializados, explica João Veloso. Foi precisamente para que isto pudesse ser feito que a direção da escola Básica da Azambuja decretou, ainda na terça-feira (horas depois do ataque), que as aulas iriam ser retomadas com normalidade logo no dia seguinte.
Pais terão de reconstruir relação com o agressor
Terminado aquilo que o psicólogo João Veloso apelida de “percurso das vítimas”, surge espaço para “curar” e acompanhar o agressor — que, para João Veloso, “também é vítima, apesar de comportamentalmente ser um agressor“. “Aqui, a intervenção é diferente porque, independentemente do que originou isto, houve um comportamento desviante. Ou seja, a intervenção tem de ser mais musculada do ponto de vista técnico”, sem se basear apenas em “comunidades” como a escola, diz.
O psicólogo Eduardo Sá defende ser necessário que os adultos que se relacionam com este aluno de 12 anos tenham “a humildade de perceber” onde terão “contribuído, mesmo sem dar por isso, para a sua maldade”. E, depois, “perceber que ela representa — sempre! — um apelo ao apego que, de decepção em decepção, se foi perdendo” para a criança.
Já João Veloso considera ser necessário agir em duas frentes. A primeira diz respeito a uma análise pedopsiquiátrica e psicológica: “Enquanto agressor, todos os processos estão claros. O Tribunal de Família sabe o que fazer, o Ministério Público sabe o que fazer e o processo jurídico é altamente claro e bem pensado.” O Ministério Público já confirmou, aliás, que foi instaurado um processo tutelar educativo e que o processo vai ser conduzido pelo Tribunal de Família e Menores de Vila Franca de Xira. “Depois”, continua Eduardo Sá, “há a linha da intervenção clínica junto do jovem, em que importa perceber o que aconteceu. Zangados todos podemos estar, mas não fazemos isto. Houve uma situação de distúrbio grave, é preciso entender o que aconteceu“, defende o psicólogo.
A segunda frente de trabalho prende-se com uma intervenção em “contexto de família”. “Não sei como está o jovem, mas estará perturbado. A família estará triste, incrédula e com emoções com as quais terá de lidar — e que passam para a vivência com o filho. É preciso reconstruir estas relações: do ponto de vista sensorial (com o toque; um abraço) e do afeto (porque aqui algo falhou a esse nível)”.
Agressor deve mudar de escola para própria segurança
Segundo o especialista, o ataque levado a cabo por este aluno de 12 anos é um “evento de grande disrupção que afeta a intimidade psicoterapêutica”, pelo que certamente “há algo muito forte a acontecer com este jovem”, assegura João Veloso. O autor do ataque adotou um mecanismo que usa “para reagir perante determinada coisa” e “é preciso alterá-lo”, de forma que passe a pedir ajuda se tiver medo, acrescenta.
Para o psicólogo, a hipótese de o jovem regressar à mesma escola deve ficar logo fora da mesa: a ideia de, no sítio onde está o agressor, estarem também os agredidos, “tem potencial de ativar um desconforto maior”, porque “os agredidos têm o direto de imaginar que [o ataque] pode ser repetido”.
Questionado sobre qual o procedimento no agrupamento de Escolas de Canelas, o diretor Artur Vieira diz que “geralmente”, num caso destes a instituição encaminha para outra escola. E explica: “Não porque poderá continuar a agredir, mas porque, por retaliação dos outros colegas, poderá passar a ser agredido. Um dos dois tem de ir, o agressor ou o agredido.”
Esta quarta-feira, o Ministério da Educação deu indicações à direção desta escola da Azambuja de que o aluno deveria ser mudado de estabelecimento de ensino. No mesmo email enviado pela direção aos docentes, lê-se que, “por orientação do Ministério da Educação, será promovida a transferência de escola“. João Veloso, porém, considera que isto só irá resultar se for “preservado o anonimato” do aluno. “É preciso esta sensibilidade e garantir também que tem sempre acompanhamento”, defende.
Abrir portas e ouvir os pais de todos os alunos
Para João Veloso, é também necessário que toda a comunidade escolar esteja informada, sendo transmitida segurança aos encarregados de educação dos alunos: “São pessoas distantes [do agressor], mas ao mesmo tempo perto, porque estão na mesma escola. Não conhecem o jovem, mas identificam-se com o que aconteceu.”
Uma vez mais, é preciso assegurar que os professores têm formação para aprender a conversar sobre estes temas, aproveitando para educar para os afetos e trabalhando a agressividade e as emoções com a comunidade escolar. E até, “eventualmente, fazer um esclarecimento com os pais, seja por comunicado ou presencialmente. Irem à escola e falarem com os responsáveis, para as famílias se sentirem seguras”, sugere o psicólogo.
Para a CONFAP (Confederação Nacional das Associações de Pais), uma forma de prevenir acontecimentos como o desta terça-feira é “criar gabinetes de apoio à comunidade educativa“, diz a presidente Mariana Carvalho, que coloca a tónica na “prevenção” e na necessidade de ir “melhorando os valores” de todos. Além disso, “os professores, no dia a dia, podem, além da matéria, dar lugar às questões emocionais”, acrescenta.
A pedopsiquitra Salomé Ratinho concorda, acrescentando que “as competências socio-emocionais e de consciência emocional estão muito comprometidas“. “As crianças acabam por estar no cuidador ‘internet’, que substitui a relação familiar e a relação com os pares. Chegam ao primeiro ciclo e estão sentadas nos telemóveis”, diz.
E, indo mais além na caracterização da sociedade atual, alerta que “as famílias estão cada vez mais isoladas, com menos presença da família alargada”, havendo também um “contacto demasiado precoce com as tecnologias — internet, telemóveis, tablets e smartvs —, num acesso que é feito sem supervisão e sem controlo parental”.