Há, atualmente, quatro hospitais em Portugal em regime de parceria público-privada (PPP): Vila Franca de Xira, Loures, Cascais e Braga. Os dois últimos estão a chegar ao final do contrato. No caso de Cascais, o parceiro privado concordou em continuar . No caso de Braga, cujo contrato acaba em agosto do próximo ano, o assunto é polémico. É que, esta quarta-feira, no final de uma audição na comissão parlamentar de Saúde, que se prolongou por mais de seis horas, a ministra com essa pasta, Marta Temido, anunciou que o Hospital de Braga poderia voltar à esfera do Serviço Nacional de Saúde (SNS).
Mas quando o hospital em questão é, pelo segundo ano consecutivo, o melhor do país; o único a conquistar classificação máxima em oito áreas clínicas; o único a alcançar três estrelas na área da Cardiologia; aumentou, entre 2009 e 2015, em cerca de 99% o número e consultadas externas; e, especialmente, quando esta parceria público-privada poupa muitos milhões ao Estado, é inevitável perguntar: porquê mudar? Por duas razões: a quebra de contratos para tratamento do VIH, esclerose múltipla e Hepatite C e o défice de contratualização que leva ao aumento de filas e tempos de espera.
As respostas são diferentes dos dois lados. A ministra da Saúde respondeu no mesmo momento em que anunciou o possível fim da PPP com o Hospital de Braga: porque há uma “indisponibilidade definitiva do parceiro privado para continuar a operar”. Ou seja, porque a empresa José Mello Saúde não quereria continuar a gerir o hospital. Marta Temido explicou que, como não foi lançado nenhum concurso público até agora nem se conseguiria lançar um a tempo do fim do contrato atualmente em vigor, em agosto do próximo ano, o Governo colocou a possibilidade de prolongar o contrato atual. Mas, segundo a ministra, “não tem havido manifestação de solidariedade da parte do parceiro privado”.
Assim, face à alegada “indisponibilidade” e “solidariedade” do parceiro privado, a ministra defendeu que seria necessário encontrar uma de duas soluções: “Ou o regresso à esfera pública ou a continuação em condições excecionais do atual modelo de gestão”. “Se o parceiro privado não se mostrar interessado em continuar, o Estado tem de assegurar”, disse já esta quinta-feira, num encontro com os jornalistas, horas antes do Conselho de Ministros, onde demonstrou a sua vontade de “principalmente afirmar a gestão pública” na prestação de cuidados de saúde, admitindo que existam “exceções, como as PPP” — mas “apenas se necessário”.
A resposta do outro lado, do parceiro privado, a empresa José Mello Saúde, desmente Marta Temido. Em declarações ao Observador, logo após o anúncio da ministra, o grupo esclareceu que se mostrou “desde o primeiro momento, disponível para o prolongamento do contrato de gestão da parceria público-privada do Hospital de Braga, dentro do atual modelo contratual, desde que esclarecidas as condições de execução do contrato e da sustentabilidade financeira da parceira”.
Os dois lados acusam-se mutuamente: ambos dizem que é a outra parte que se mostra indisponível para continuar. Os dois lados convergem, no entanto, num aspeto: ambos falam em condições que seriam necessárias para a continuidade do contrato atual. O que motivou, então, esta polémica?
A quebra de contratos para tratamento do VIH, esclerose múltipla e Hepatite C
Os “contratos verticais” são contratos de prestação de cuidados de saúde a que os hospitais do SNS têm direito e, desde 2009, também o hospital de Braga. No fundo, é um programa de financiamento que presta um pagamento fixo por doente e inclui consultas e medicação para essas doenças específicas — e que se soma ao orçamento do contrato geral. Esses contratos verticais com o Hospital de Braga não foram renovados, em 2016, pelo atual Governo. Ainda assim, a empresa gestora José Mello Saúde decidiu que tinha de continuar a tratar esses doentes e a dispensar medicamentos para o efeito. As duas partes ainda tentaram chegar a um acordo e decorreram algumas negociações, com a mediação da Entidade Reguladora da Saúde. Acabou por não se chegar a nenhuma conclusão.
Por isso, em dezembro do ano passado, a empresa gestora do hospital entendeu que o Estado teria de comparticipar cerca de 33 milhões de euros — valor das despesas com estes doentes contabilizadas desde 2016 e as previstas até 2019, ano em que termina o contrato geral. O parceiro privado José Mello Saúde solicitou então, nessa altura, a constituição de um tribunal arbitral para apreciar o seu pedido de reposição de equilíbrio financeiro. Assim, apesar “não reconhecer a existência de fundamentos que ditem a abertura de um processo de avaliação do desequilíbrio financeiro do contrato invocado pela entidade gestora do estabelecimento do Hospital de Braga”, num despacho publicado, no início deste ano, em Diário da República, o secretário de Estado Adjunto e das Finanças e a secretária de Estado da Saúde determinaram que “seja desenvolvido processo de arbitragem com vista a dirimir o conflito”.
Já à espera da decisão do Tribunal Arbitral, o Governo pôs de parte 33 milhões de euros, previstos na “análise de riscos” do Orçamento de Estado para 2018, caso a decisão seja a de que o Governo terá de indemnizar a José Mello Saúde. Segundo apurou o Observador, caso fique decidido que é a empresa gestora do Hospital que tem de assumir os custos, isso será um factor decisivo para que a JMS não continue com a PPP.
O défice de contratualização que leva ao aumento de filas e tempos de espera
O trabalho feito pelas PPP é pré-negociado: do número exato de consultas prestadas às cirurgias realizadas. Tudo o que esteja acima daquilo que foi pré-negociado entre o parceiro privado e o parceiro público, carece de autorização. Por exemplo, se apenas são contratadas 300 cirurgias vasculares num ano e se o hospital decidir fazer 350, as 50 cirurgias a mais estariam pendentes de autorização de financiamento — que poderia não ser dada e, assim, as despesas teriam de ser acarretadas pela empresa gestora.
Como, no passado, em situações em que foi excedida a produção, as despesas não foram financiadas, a empresa gestora do Hospital de Braga optou não as realizar. Assim, como há défice de contratualização, o hospital diz que não consegue dar resposta a todas as necessidades da população.
Hospital de Braga. Estado trava assistência a doentes por restrições orçamentais
Esse é, aliás, um dos pontos referidos no relatório da auditoria à execução do contrato de gestão do Hospital de Braga, realizada em 2016. O Tribunal de Contas alerta que “a produção de cuidados hospitalares acordada anualmente entre o Estado e o parceiro privado não se tem subordinado às necessidades de serviços de saúde da população, conduzindo ao aumento das listas e dos tempos de espera para consultas e cirurgias”. No relatório é ainda referido que, quanto a este aspeto, o Governo tem “subordinado o volume de cuidados hospitalares prestados aos utentes às restrições orçamentais”. Por sua vez, a empresa gestora José Mello Saúde “tem-se acomodado às propostas do parceiro público, ‘investindo’ numa eventual renovação do Contrato de Gestão que lhe permita ressarcir-se das perdas já acumuladas”.
Além disso, há ainda outro ponto: o facto de toda a produção estabelecida ser contratualizada com pouca ou nenhuma antecedência. A produção para este ano foi contratualizada já em abril — o que dificulta a gestão e planeamento da empresa. A ata da reunião para discussão da produção prevista, e respetiva remuneração contratualizada para ano de 2018, disponível no site da Administração Regional de Saúde do Norte, foi assinada em 11 de abril.
E no dia 1 de setembro de 2019? Como será feira a transição para o SNS
Falta menos de um ano para o final do contrato atualmente em vigor. Muitas negociações e cedências poderão ser feitas, a decisão do tribunal arbitral deverá chegar, mas o que acontecerá no dia 1 de setembro, caso não se chegue a nenhum acordo com o parceiro privado? O Hospital de Braga passa mesmo para a esfera pública e essa transição terá alguns efeitos práticos.
A 1 de setembro começa a contar um período de seis meses de transição. Esse tempo terá de servir para passar toda a estrutura do hospital para a esfera pública, sendo que os doentes terão de continuar a ser tratados. Toda a estrutura de gestão, toda a parte organizacional terá de se adaptar ao setor público do Estado. Todas as estruturas de gestão terão de ser nomeadas: conselho de administração, conselho executivo, etc.
Terá também de se averiguar se será necessário repor ou não os diretores clínicos, bem como os trabalhadores. Médicos e profissionais de saúde terão de ser recontratados ao abrigo do direito público. Alguns trabalhadores foram incorporados do antigo hospital, pela empresa gestora — era, aliás, uma das condições da PPP. Outros saíram por diversos motivos. Assim, a José Mello Saúde teve de contratar outros profissionais, ao abrigo do direito privado. Alguns podem optar por ficar no hospital. Outros por sair.
Questionada pelo Observador, fonte do Ministério da Saúde não quis fazer qualquer comentário sobre o assunto. “Neste momento, o Ministério da Saúde não vai prestar mais declarações sobre a parceria público-privada de Braga, além das prestadas durante o dia de ontem”, disse a mesma fonte, numa resposta por escrito ao Observador.