O vento vem escanado de todo o lado. “É assim que se diz corrente de ar aqui”, explica-nos Beatriz, são micaelense de corpo e alma, habituada a levar a vida entre intempéries que a nós, leigos continentais, nos abanam os alicerces e a ela e aos seus conterrâneos apenas causam umas inofensivas cócegas.
Por esta altura do ano, nota-se em Ponta Delgada um aumento de pessoas inexperientes a lidar com estes maneirismos ilhéus, cortesia de boas-vindas que só alguém muito vaidoso é que poderia considerar ofensivo. O tempo, já se sabe, é brincalhão nos Açores. Portanto, o melhor a fazer é rirmo-nos de nós mesmos e trazer sempre um corta-vento à mão, não vá levarmos com um sopro à Dizzy Gillespie, de bochechas bem cheias, que nos espalme a cara e desgrenhe os cabelos.
Dizíamos nós que, por esta altura do ano, há uma tribo errante a saltitar por Ponta Delgada e isso deve-se a um fenómeno muito concreto: o Tremor. Este ano, o festival celebra a sua décima edição e nunca os bilhetes esgotaram tão rapidamente. Em janeiro e com apenas três meses de venda, já as 1.500 entradas tinham voado.
Muitos foram aqueles que, com voo e alojamento marcados, ficaram a chorar às portas do festival, rogando por um bilhete que pudesse cair do céu. Houve até quem tivesse escrito poemas à organização, conta Márcio Laranjeira, como Antero de Quental escreveu à razão: Razão, irmã do Amor e da Justiça, / Mais uma vez escuta a minha prece. Márcio escutou, mas nada pôde fazer. “Não cabe mais ninguém”, é a mais pura verdade e, enquanto se mantiver assim pura, puro se manterá o Tremor.
A “semana-mais-que-santa antes da Semana Santa”
Falamos de um festival que não tem pretensão de se agigantar em tamanho, nem se quer tornar uma “Disneyland” exclusiva para turistas, mesmo que estes estejam em clara maioria: 70% dos bilhetes foram comprados por pessoas de fora, 30% por residentes. Para o crescimento ser sustentável há que respeitar os ritmos da ilha, “preservar os espaços e não criar uma romaria que os destrua”, salienta Márcio. Só assim o Tremor pode continuar a ser a “semana-mais-que-santa antes da Semana Santa”, como escreveu António Pedro Lopes na sua página pessoal do Facebook.
António, que se afastou da organização em 2021 para se dedicar à candidatura de Ponta Delgada a Capital Europeia da Cultura, foi uma das primeiras pessoas que Luís Banrezes puxou para o seu sonho de criar algo na ilha que nunca até então tinha sido feito. “Tudo o que acontecia culturalmente aqui, era muito clássico. Isso não era necessariamente mau, mas faltava uma irreverência que eu sabia existir nos Açores”, diz Luís, portuense a viver em São Miguel desde 2006, por conta do hóquei em patins.
“É uma história rebuscada”, ri-se, mas vamos então atalhar os factos: Luís foi contratado ao Académico do Porto pelo Santa Clara; jogava e, paralelamente, trabalhava numa empresa de construção civil, onde conheceu os locais que lhe deram a conhecer a ilha; daí a querer começar a mexer culturalmente com São Miguel foi um instantinho, assumindo a cabine de alguns bares enquanto Kitas ou lançando uma agenda cultural chamada Yuzin. “Fui pegando em coisas que sentia que faziam falta e fui fazendo-as”, diz sem complicações. Uma das últimas coisas que fez foi criar, em plena pandemia, a editora Marca Pistola, focada apenas em projetos do arquipélago.
Nada parece impossível para Kitas, nem mesmo começar a rabiscar o esqueleto de um festival numa toalha de papel de restaurante, com o seu amigo António Pedro Lopes. Estávamos em 2014 e daquela vertiginosa troca de ideias, saiu um nome: “Ocupa”. Ocupar Ponta Delgada com cultura, era isso que eles queriam.
Mas “Ocupa” não vingou. O nome tinha uma conotação política pesada e foi então que Tremor surgiu. Luís gostou da ideia de ter um festival que, a partir da sua alcunha, começasse logo a agitar as moléculas, revolvendo a terra como se faz nos campos, antes de se semear, para que a colheita rebente fértil. Águas paradas não movem moinhos e o mesmo se passa com a cultura: ela tem que estar em movimento, envolver comunidades, misturar linguagens para que se abram novas vias de comunicação. “Dá-se e recebe-se. É neste pingue-pongue que um festival deste tipo vive”.
A Selva Coragem da Isla bonita
As palavras, desta feita, são de Joaquim Durães, parceiro de Márcio Laranjeira na Lovers & Lollypops, a produtora a quem Kitas bateu à porta para concretizar o seu festival. As duas partes entenderam-se lindamente e a primeira edição fez-se de um modo “muito singelo”, lembra Joaquim. Foram convidadas 15 bandas agenciadas pela Lovers, mais o Noiserv, com quem Kitas já tinha acordado um concerto nos Açores, e foram-lhes pagos os voos, o alojamento, oferecida uma cozinha comunitária e um autocarro para andar de um lado para o outro. “Todos aceitaram as condições”.
Era o próprio Joaquim, o único que tinha carta de condução, que guiava o autocarro, andando com as bandas de um lado para o outro. “Eu era runner, stage manager, era tudo!”. No final do festival, quando meteu a chave na engrenagem para levar a comitiva de artistas ao aeroporto, ouviu do rádio “La Isla Bonita”, de Madonna. “Foi um momento perfeito, quase toda a gente chorou”.
O motivo não era para menos, se se pensar que na festa de receção da primeira edição do Tremor apareceram dois gatos pingados. “Achámos que ia ser um desastre”, conta Márcio. Porém, no sábado, vieram 700 pessoas, uma multidão deambulando entre o Teatro Micaelense, o Arco 8 ou a Baía dos Anjos e que, de forma orgânica, percebeu o que Kitas tinha sonhado: um festival em movimento. “Quando vejo um aglomerado de gente a ir de um concerto para o outro, fiquei muito emocionado. As pessoas estavam a entender o que nós estávamos a fazer, era mesmo para circular”.
De tal forma entenderam que, no arranque desta décima edição não eram apenas duas pessoas que esperavam a inauguração da instalação Selva Coragem, no quiosque do Jardim Antero de Quental, mas sim umas cinco dezenas. O projeto, com curadoria do Teatro do Frio e que marcou o arranque oficial do Tremor 2023, partiu de um apelo à população para que emprestasse as suas plantas para a construção de uma bio instalação.
Chegaram 72 vasos, um deles de Ana Monteiro, florentina a viver em São Miguel que nunca falhou uma única edição do Tremor e que trouxe a sua lavanda para esta Selva. Chama-se Coragem, explica por sua vez Catarina Lacerda, uma das cofundadoras do Teatro do Frio, porque requer coragem confiar uma planta a um conjunto de desconhecidos, bem como para ocupar espaços desvitalizados.
O “Selva” é fácil de ver: suspensas em diferentes níveis, pousadas no chão ou em cima de pedras basálticas, as plantas criam uma teia densa dentro deste antigo quiosque, obrigando-nos a serpentear por entre o verde das suas folhas, a terra jorrada no chão, flores que nos entram pelo nariz, em suma, a natureza pulsante a insurgir-se onde antes havia o vazio. “É uma forma bonita de celebrar a natureza”, disse Márcio, discursando brevemente para o público que esperava a sua vez de entrar nesta instalação imersiva, com música a sair de diferentes pontos de escuta. Sem ela – a natureza e a música – o Tremor seria também um espaço desvitalizado.
Um delírio coletivo, com causas à mistura
Márcio, Joaquim, Kitas e António perceberam exatamente isso desde o primeiro momento, que para o festival vingar havia que zelar pela sustentabilidade ambiental da ilha. Este ano deu-se um passo importante nesse sentido: há pontos de água em vários locais do recinto para que, do público aos artistas, cada qual com o seu cantil, se possam hidratar sem deixar um rasto de garrafas de plástico atrás de si. “O Tremor é de causas”, reforça Kitas, ao ponto de a própria Câmara Municipal de Ponta Delgada ter resolvido colocar pontos de água gratuitos na marginal.
O merchandising também foi reinventado nesta edição. Ao invés de montarem uma banquinha de objetos alusivos ao Tremor, a organização apelou ao público a trazer uma peça de roupa ou um saco de pano próprios para serem serigrafados por Gonçalo Duarte, ilustrador que estará nas Portas do Mar durante os dias todos do festival. Cada impressão custa €2 e, de uma peça velha, que provavelmente acabaria esquecida numa gaveta, cria-se uma arte nova, diminuindo a pegada ambiental. Ficamos todos a ganhar.
Cada edição é uma oportunidade de repensar o festival e é esse o conceito de crescimento que Kitas e a Lovers & Lollypops têm estabelecidos para si: não interessa vender mais bilhetes, mas sim fazer com que cada ano a “experiência no meio do Oceano Atlântico” seja mais prazerosa para todos os intervenientes.
Houve um ano, porém, em que as coisas podiam ter descambado. Estávamos em 2016, os Açores tinham começado a ter os seus primeiros voos low cost, o arquipélago abria-se aos continentais e aos estrangeiros e a organização arriscou numa edição “a la norte da Europa”, com espetáculos sobrepostos que mais não fizeram do que atarantar o público entre escolhas desvairadas. “Foi um ano em que crescemos sem saber crescer e foi um caos. Correu muito mal, mas foi muito importante, porque deu para perceber muita coisa, inclusive se queríamos mesmo continuar a fazer isto”.
Felizmente quiseram e a edição de 2017 veio-lhes dar o colo merecido depois da coça do ano anterior. A coisa até começou torta, com o cancelamento dos Beak a agourar protestos e devoluções de bilhetes. “Já estávamos preparados para isso”, diz Márcio, como quem vai dar o corpo às balas. O comunicado de cancelamento seguiu, respirou-se fundo, mas, ao contrário do esperado, não surgiu nenhum pedido de devolução. Aliás, o festival esgotou pela primeira vez, hábito que se mantém até aos dias de hoje.
Estava consumada a união entre organização, staff, artistas e público, na qual todos os elementos se leem e compreendem mutuamente. “As pessoas aqui estão em partilha e isso acaba por criar relações que fazem com que as coisas sejam vistas de outra maneira quando temos que mudar alguma coisa”, refere Márcio, dando ao fenómeno o nome de “delírio coletivo”.
Todos família, todos amigos e nada de VIPs
No histórico Café Clipper, o delírio é vivido na grelha. “Ele está sozinho, está fodido”, assusta-se um cliente ao balcão, mas Miguel, que já anda nisto há muitos anos, tranquiliza os ânimos. Os pregos vão-lhe saindo das mãos para as mesas num ápice e quando estes esgotam, venham de lá as bifanas. “Está bom?”, está pois. “Então venha amanhã e depois, que ainda vão ficar melhores”.
Não há restaurante que tenha um segundo de sossego durante o Tremor e isso também faz parte da magia do festival. Os serviços parecem estar sempre na iminência de colapsar, mas a boa disposição e a simpatia açorianas não deixam ninguém de estômago vazio. Quem participar na Cozinha Comunitária da Ribeira Grande, no dia 29 de março, perceberá isso mesmo. Aí serão servidas as receitas do baú, aquelas que passam de geração em geração e que muito dizem sobre o viver da população de Rabo de Peixe.
Por ora, continuamos em Ponta Delgada. No Clipper, inaugurado em 1944 com a presença do jornal Correio dos Açores, que lhe desejava “as maiores prosperidades”, como se lê numa cópia da notícia pendurada na parede, misturam-se clientes de todos os dias com as novas hordas invasoras, feitas hortênsias que, uma vez na ilha, nunca mais a querem largar. “Isto aqui é mesmo genuíno”, atesta Ricardo, cliente regular que, vendo o aperto de Miguel, saltou para trás do balcão para despachar alguns finos e outros que tais. “Sou operador turístico, mas vi o Miguel atrapalhado e quis ajudar. Somos uma família”.
A afluência ao Clipper deverá continuar alta nos próximos dias, não só pela rapidez do serviço e pela competência da bifana, aqui temperada com a massa de pimentão típica dos Açores, mas porque o Teatro Micaelense está ao virar da esquina. É lá que Owen Pallett se apresenta para o primeiro concerto desta edição. Sozinho vai alternando entre a guitarra e o violino, acomodando dobragens de vozes, secções rítmicas e melódicas que nos vão enfeitiçando graças aos pedais, aliado precioso de qualquer one man band em palco.
As suas canções, construções ambientais com distorção, mas de voz límpida, são como contos que se interligam numa narrativa de múltiplos mundos, tantos quanto é possível caberem no imaginário de um músico. Lembrando um Andrew Bird do início do milénio, Pallett bebe de várias influências, do clássico ao indie, ele que é pródigo em arranjos orquestrais (para além da nomeação para um Óscar pela banda sonora do filme “Her”, de Spike Jonze, venceu um Emmy com a composição para a série “Fourteen Actors Acting”).
O Canadá, para onde voou grande parte da diáspora açoriana, é a sua terra natal, tal como é a dos Arcade Fire, com quem já colaborou. O seu trabalho com The Suburbs (2011) foi inclusivamente distinguido com um Grammy. A solo tem três discos lançados: Heartland (2010), Conflict (2014) e Island (2020) (depois dois discos como Final Fantasy, Has a Good Home e He Poos Clouds, de 2005 e 2006) e é precisamente a ilha o ponto mediano da sua digressão nacional, que, vinda de Braga e de Viseu, ainda irá para Lisboa (30 mar.) e Espinho (31 mar.).
Brincando com dedilhados e staccatos e vestindo-os de floreados no arco como se estivesse a interpretar os concertos para violino de Mozart, Owen apresentou-nos músicas antigas, como “This Lamb Sells Condos”, piadas que se lembrara ao acordar de manhã no hotel — “disseram-me que se a piada tivesse graça, as pessoas rir-se-iam, senão aplaudiam”, e a gargalhada fez-se veredicto — e canções “difíceis”, como “The Butcher”, tão difíceis que até ouvimos sons de pássaros de fundo para o acalmar. “Não parece, mas estou realmente nervoso”. Tocar para uma sala “enorme, cheia de estranhos” é coisa que o deixa a ventilar, mas a plateia logo o lembra que aqui ninguém é estranho, “somos todos amigos”.
Lá está outra vez o delírio coletivo a aproximar partes que, em festivais de grande escala, estariam, à partida, condenadas ao distanciamento. Aqui tudo é próximo, nem áreas VIP há, algo que agrada bastante a Kitas, e o ecossistema vai fluindo com leveza e sem alarido. “Gosto desta proximidade e desta relação familiar que temos e que faz do festival tão único”.
A jangada comunitária do Tremor
O ecossistema é de tal forma rico que nele cabem várias comunidades. Recuemos novamente até 2016, ano em que o Tremor se expandiu para Ribeira Grande, para olhar para uma das relações mais frutíferas do festival, com a Escola de Música de Rabo de Peixe. “É uma relação muito recíproca. Ver os miúdos a crescer e a tornarem-se músicos por excelência, acaba por ser o ex-libris da relação”, salienta Durães.
Miúdos que já tocaram com Peter Evans, Rodrigo Amado ou Jerry the Cat e que este ano tiveram um sobressalto com a notícia de possibilidade de venda do Cine-Teatro Miramar, a sua residência oficial. “É um espaço cultural onde eles podem descobrir coisas que, de outra forma, não teriam oportunidade de descobrir”, nota Kitas, reforçando o quão importante é este teatro manter-se ao serviço da comunidade.
A comunidade, perante este cenário de venda, ergueu a voz, reuniu perto de 1.000 assinaturas numa petição pública e o Governo Regional já veio dizer, “nada disso, meus senhores”, o teatro continuará público e a população de Rabo de Peixe continuará a ver na música outros voos, para além do mar que tantos pescadores dali vai desafiando, engolindo também.
A jangada tornará a ir para o mar, para um peixe bom trazer para terra, mas graças a Deus também navegará para o jazz, para alimentar os que ali vivem com outro tipo de pescado. O tipo que faz com que Rabo de Peixe deixe, progressivamente, de estar tão isolado no seu canto e seja referenciado por motivos que envaidecem os seus habitantes e não por razões que só agravam a estigmatização.
Este ano, a Escola de Música apresenta-se ao lado da Associação de Surdos da Ilha de S. Miguel no espetáculo Som.Sim.Zero (1 abr., 21h), associação que na edição passada nos ensinou que a música não se ouve só com os ouvidos. Só alguém de ideias muito cegas, que ainda não se tenha cruzado com o trabalho deste coletivo, é que poderá negar tal evidência. A concetualização do espetáculo está a cargo da ondamarela.
Será um dos pontos altos desta edição, como o serão também os concertos de Pongo (1 abr, 22h45), Angel Bat Dawid (1 abr., 20h), Fado Bicha (data e local ainda a anunciar), III Considered (30 mar., 23h), Penelope Isles (31 mar., 21h30) ou dos ZA!, uma daquelas bandas que tem uma história de amor antiga com o Tremor ao ponto de criarem projetos novos só para aterrarem novamente no festival. “Na sexta, quando eles entrarem no Coliseu, já vão ter o público na mão”, antevê Durães (31 mar., 23h).
Até lá, faltam alguns dias. Havemos ainda de passar por trilhos performativos, concertos em locais surpresa, exposições, conversas no bazar La Bamba e DJ sets a lançar perfume, como aquele que o Dj Piri Piri do Paco nos deu na primeira noite. Ao lado das Atelineiras, um coletivo de cinco jovens artistas e estudantes residentes em São Miguel, transformou o clube Portas do Mar num Barco do Amor, cheio de disco, glitter e purpurinas. É a ilha pondo-se bonita, uma vez mais.