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Três décadas de Nazarbayev à frente do Cazaquistão. O fim do líder "astuto" que não soube sair de cena

Produto do regime soviético, Nazarbayev liderou o Cazaquistão 31 anos. Com a ajuda do petróleo, sobreviveu entre Ocidente e Rússia. Mas o "Pai da Nação" já não agrada aos cazaques — nem ao sucessor.

Larry C. Napper esteve várias vezes com Nursultan Nazarbayev. Estávamos na década de 90 e Napper era diretor do antigo Gabinete para os Estados Independentes — nome das repúblicas agora independentes da União Soviética —, razão pela qual o diplomata norte-americano voava frequentemente para Astana e se encontrava com o Presidente do Cazaquistão. Entre 2001 e 2004, os encontros voltaram a repetir-se, já que Napper se mudou de vez para a capital cazaque como embaixador norte-americano no país. Em ambos os momentos, a sua impressão foi a mesma: a de que estava perante um líder que era “uma personagem”.

“Era um dos líderes estrangeiros mais formidáveis com quem já lidei”, conta o diplomata reformado ao Observador a partir do Texas, onde dá agora aulas como professor universitário. “Tinha muito carisma e determinação, era extraordinário a debater. Conseguia ser caloroso. E sabia lidar com líderes ocidentais, sabia como usar o humor, por exemplo.”

President Nursultan Nazarbayev

Nazarbayev está no poder no Cazaquistão desde 1989, altura em que se tornou primeiro secretário do Partido Comunista no país

Sygma via Getty Images

O retrato é corroborado por Paul Stronski. Antigo diretor do Conselho de Segurança Nacional norte-americano para a região da Rússia e Ásia Central, o agora investigador do Carnegie Endowment teve oportunidade de assistir a muitos eventos onde Nazarbaeyv esteve presente e até de ter um encontro a sós por uma vez. “Ele consegue encantar os interlocutores ocidentais, mas também consegue ser brutal”, partilha entre gargalhadas com o Observador. “Sabe lidar com uma multidão e continua a ter uma enorme capacidade de responder a perguntas, apesar da idade avançada. Mas da última vez que o vi, em 2018, ele já parecia muito frágil.”

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Nazarbayev tem 81 anos e lidera o Cazaquistão desde os 49 — primeiro como secretário do Partido Comunista no país (1989-1991), depois como Presidente (1991-2019) e, até há poucos dias, mantinha-se como presidente vitalício do Conselho de Segurança do país. O seu domínio sobre a política cazaque é inquestionável: líder incontestado do país desde a sua independência em 1991, foi com Nazarbayev que o país passou de república soviética empobrecida da Ásia Central para portento económico da região. Milhares saíram da pobreza consigo; mas, nos últimos anos, foi também sob a sua liderança que viram a qualidade de vida piorar ao ritmo da queda dos preços do petróleo.

O seu domínio sobre a política cazaque é inquestionável: líder incontestado do país desde a sua independência em 1991, foi com Nazarbayev que o país passou de república soviética empobrecida da Ásia Central para portento económico da região. Milhares saíram da pobreza consigo; mas, nos últimos anos, foi também sob a sua liderança que viram a qualidade de vida piorar ao ritmo da queda dos preços do petróleo.

Com Nazarbayev, a democracia para o Cazaquistão foi sempre uma miragem — algo a que um dia o país “chegaria”. As eleições com resultados estonteantes repetiam-se, geralmente com resultados acima dos 90% para o líder. A sociedade civil atrofiava e, quando tentava colocar a cabeça de fora, era rapidamente esmagada.

“Velho, vai-te embora!” Como o Cazaquistão derrubou Nazarbayev em três dias e entra agora numa “nova era de instabilidade”

Até que o ano de 2022 abriu com uma revolução em curso no Cazaquistão: protestos contra a subida do preço dos combustíveis rapidamente se tornaram políticos e trouxeram violência para as ruas de Almaty. O atual Presidente, Kassym-Jomart Tokayev, pediu ajuda à aliança militar dos Estados Independentes (da qual a Rússia compõe a maior parte) e decretou o afastamento de Nazarbayev e de muitas figuras que lhe eram próximas. Mas como é que um homem que “sabe lidar com uma multidão” e que governou incontestado durante mais de 30 anos é arredado em apenas três dias? E em que ponto do seu percurso foram plantadas as sementes do descontentamento que culminariam neste afastamento?

Um homem do povo soviético tornado nacionalista cazaque

Nursultan Nazarbayev nasceu em 1940 em Chemolgan, uma aldeia no sopé das montanhas Alatau. Aos 18 anos, Nazarbayev deixou o Cazaquistão e foi estudar para uma escola técnica na Ucrânia. De regresso ao país, começou a trabalhar numa siderurgia, na zona industrial de Temirtau, no centro do Cazaquistão. O trabalho era duro, mas colocou-o no epicentro da política: afinal, muitos líderes soviéticos emergiam do operariado, onde entravam em contacto com as ideias do Partido Comunista e conheciam figuras relevantes da política dos seus países. “Eu era um jovem ambicioso e entrar no Partido era o caminho para conseguir avançar”, afirmaria o próprio anos mais tarde.

Sommet de la C.S.C.E. a Budapest

Nazarbayev trabalhou numa siderurgia, mas foi na política que se destacou

Sygma via Getty Images

Em 1968, entrou na política local de Temirtau e a partir daí foi sempre a subir dentro da hierarquia do Partido. Dez anos depois, era secretário do Partido Comunista da República do Cazaquistão. Em 1989, tornou-se primeiro-secretário do Partido no país e passou a controlar ainda mais os destinos do Cazaquistão. “Ele tem uma grande história de ascensão, como outros líderes soviéticos, como Kruschev”, nota Paul Stronski. “Mas, com o passar dos anos, perdeu esse contacto com o povo. Via-se a si próprio como um visionário e achava que estava a fazer o correto, mas perdeu a ligação com o homem comum.”

Nazarbayev não era, porém, um político comum. Só assim se explica que um homem tão próximo do sistema soviético — que chegou a ser equacionado como possível sucessor de Mikhail Gorbachev — tenha conseguido sobreviver ao colapso da URSS e manter-se como líder durante mais 30 anos. Em parte, tal aconteceu por taticismo político, já que Nazarbayev conseguiu manobrar Gorbachev e Boris Yeltsin nos últimos anos da União Soviética, ora aproximando-se de um, ora do outro, consoante o timing político o exigia. Mas não só: Nazarbayev era um fenómeno cazaque e, com o fim do império, não havia outra pessoa no país que lhe pudesse fazer sombra. “Era o político cazaque mais conhecido, com mais experiência, e o único que tinha carisma suficiente”, nota Larry Napper.

Boris Yeltsin visit to Kazakhstan, 1991

Nazarbayev com Boris Yeltsin, com quem negociou para garantir a independência do país

TASS via Getty Images

Isso mesmo reforça ao Observador Bruce Pannier, jornalista da Radio Free Europe especializado na Ásia Central. No final da década de 80, quando estudava a região na Universidade de Columbia, Pannier e os colegas já sabiam bem quem era este homem: “Eu via a televisão soviética todos os dias e naturalmente sabia quem era Nazarbayev, ele era importante, era enviado para missões como a de negociar a paz em Nagorno-Karabakh”, conta a partir de Praga, onde está atualmente a trabalhar. “E quando o Cazaquistão se tornou independente, toda a gente no país sabia quem ele era. Os outros líderes da Ásia Central que surgiram eram quase desconhecidos, mas Nazarbayev… Toda a gente na União Soviética o conhecia. E ao decidir apoiar claramente um processo de independência, ele marcou a diferença em relação aos outros líderes da região.”

Numa Ásia Central que fervilhava de sentimentos nacionalistas anti-soviéticos, Nazarbayev soube ler o momento e apontar na direção que lhe traria popularidade. “Ele é muito astuto”, acrescenta Stronski. “Foi nomeado pelo partido em 1986, na sequência de uns protestos violentos de caráter nacionalista. Era um homem de Moscovo e era bom nisso. E eis que a independência chega e ele se torna um nacionalista.” A 1 de dezembro de 1991, Nazarbayev é o único a concorrer às eleições presidenciais e vence-as com uns esmagadores 95% dos votos. Apenas 15 dias depois, declara a independência do Cazaquistão. Menos de dez dias depois, a União Soviética deixaria formalmente de existir com a demissão de Gorbachev.

A riqueza do petróleo que permitiu a Nazarbayev “jogar” com Ocidente, Rússia e China

Os anos que se seguiram seriam difíceis. Bruce Pannier lembra-se bem, porque recebeu uma bolsa da Universidade de Manchester e se mudou de malas e bagagens para a Ásia Central, vivendo em aldeias do Cazaquistão, Quirguistão, Turquemenistão e Tajiquistão. “As infraestruturas, o sistema de distribuição, tudo estava a desfazer-se. Eles costumavam depender de Moscovo, por isso não sabiam como fazer nada daquilo. Havia greves e protestos a toda a hora”, recorda. “Mas os cazaques tinham petróleo, que era algo que os outros na região, a maioria países agrícolas, não tinham.”

Kazakhstan - Economy - Business - Oil Extraction

A indústria petrolífera sustentou grande parte do crescimento económico do Cazaquistão

Corbis via Getty Images

O petróleo mudou tudo. No final da década de 90, o Cazaquistão já não era o mesmo país. Nazarbayev seguiu a estratégia de privatizar ao máximo. Ao mesmo tempo, criou um fundo para aplicar lucros das indústrias do petróleo e gás natural e começou a vender grandes projetos ao estrangeiro: logo em 1993, a norte-americana Chevron estabeleceu-se no país. “De repente, o dinheiro já não era problema. Sim, havia muita corrupção, mas o dinheiro era tanto que acabava por escoar algum para a maioria da população e era o suficiente para fazer a diferença na vida delas. De repente, o Cazaquistão tornou-se no país mais rico da Ásia Central. E surgiu uma classe média, algo que mais ninguém na região conseguiu”, afirma Pannier.

Ao mesmo tempo, Nazarbayev avançava com uma política externa visionária. Primeiro, tomou uma decisão histórica que lhe traria muitos amigos no Ocidente: livrar-se das armas nucleares ali deixadas pela URSS. “Na sequência de negociações com os EUA, ele enviou as ogivas nucleares soviéticas para a Rússia e juntou-se ao Tratado de Não-Proliferação do Armamento Nuclear. Foi uma decisão muito importante”, aponta Larry Napper, que sublinha como tal ação foi bem vista pelos norte-americanos. “Isto deu-lhe muitos pontos no Ocidente. Cada vez que um responsável ocidental fala do Cazaquistão, agradece sempre pela sua postura anti-nuclear”, acrescenta Bruce Pannier. “Isso ajudou à sua imagem no plano internacional e ajudou a que mais países investissem no Cazaquistão.”

“A Rússia é o vizinho mais próximo e, como muitos países já perceberam, não se pode escolher a geografia. Por isso, Nazarbayev reforçou essa aliança, mas não quis que fosse a sua única opção.”
Paul Stronski, analista do Carnegie Endowment

A estratégia para o Ocidente tornou-se clara: provar que o Cazaquistão era um aliado de confiança no plano multilateral. Desde então, o país juntou-se à Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) e a muitas outras organizações mais pequenas. O Cazaquistão é até hoje o único país da Ásia Central a ter tido lugar no Conselho de Segurança das Nações Unidas e contribuiu com contingentes militares para missões da ONU. O país também se oferece regularmente para mediar conflitos internacionais: já recebeu negociações sobre o programa nuclear do Irão e a guerra na Síria e também se ofereceu para ajudar com a situação na Ucrânia. A mensagem foi sempre a mesma: o Ocidente sabe que tem no Cazaquistão um parceiro de confiança, que segue as regras do jogo internacional. E essa postura ia sendo reconhecida, como quando Durão Barroso, à altura presidente da Comissão Europeia, visitou Astana e decretou o Cazaquistão “um país estável com um registo de harmonia e tolerância”.

Ao mesmo tempo, porém, o Cazaquistão de Nazarbayev manteve bons laços com a vizinha Rússia e até ousou criar pontes com a China. “Nazarbayev foi muito inteligente na política externa, seguiu aquilo a que se chama uma diplomacia multivetorial”, explica Stronski. “A Rússia é o vizinho mais próximo e, como muitos países já perceberam, não se pode escolher a geografia. Por isso, Nazarbayev reforçou essa aliança, mas não quis que fosse a sua única opção.” O exercício de equilibrismo fazia-se apostando na relação com a União Europeia, ao mesmo tempo que fazia parte da União Económica da Eurásia, onde estão presentes a Rússia, a Bielorrússia ou a Arménia. Em termos práticos, veja-se um exemplo: o Cazaquistão não reconhece a Crimeia como sendo parte do território russo, mas nunca usa o termo “anexação”, como apontou um analista do Carnegie. A Rússia continua a ser o maior parceiro comercial do país.

Russian President Vladimir Putin visits Kazakhstan

Nazarbayev com o Presidente russo, Vladimir Putin

Getty Images

Com a China, a relação faz-se sobretudo em termos económicos. O Cazaquistão é um eixo fulcral da iniciativa Nova Rota da Seda, de Pequim, permitindo a aposta na região. E a China é já o segundo maior parceiro comercial dos cazaques, com trocas no valor de quase 10 mil milhões de euros (2018). Nazarbayev parece ter cultivado uma relação de proximidade com Xi Jinping: na visita a Pequim de 2013, os dois terão passado 14 horas juntos e “bebido vodka e conversado muito”,

Mas nem por isso os EUA foram esquecidos por Nazarbayev. Durante a presidência de George W. Bush, os dois países reforçaram a cooperação no combate ao terrorismo, por exemplo. O Cazaquistão é território onde se realizam exercícios da NATO. E, até recentemente, o líder cazaque garantiu um encontro com o Presidente Donald Trump. Ao mesmo tempo, as empresas norte-americanas foram reforçando a sua presença no país, extraindo 30% do petróleo cazaque.

“Nazarbayev jogou muito bem neste aspeto”, aponta Larry Napper. “Encorajou o investimento americano no setor energético e trabalhou com os EUA no pós-11 de setembro. Criou-se uma relação muito construtiva entre os dois países.” O único entrave era a situação da democratização e dos direitos humanos, onde os norte-americanos faziam críticas pontuais — “isso criou alguma tensão na relação, houve desentendimentos”, concede o antigo embaixador. Mas nada que beliscasse permanentemente as relações diplomáticas.

“Os outros países da Ásia Central eram tão repressivos que, por comparação, o Cazaquistão não parecia assim tão mau. Podia não ser democrático, mas era o mais democrático de todos da região.”
Bruce Pannier, jornalista da Radio Free Europe

Para os especialistas ouvidos pelo Observador, a condução da política externa por Nazarbayev foi um dos seus principais sucessos. “O Cazaquistão tem uma fronteira com a Rússia e outra com a China, e isso é difícil, especialmente quando se tem um grande território mas pouca população. Ele jogou muito bem entre Ocidente, Rússia e China”, aponta Bruce Pannier. “Temos de lhe dar algum crédito, não creio que fosse possível ele estar a seguir indicações de outros e sair-se tão bem ao longo de tantos anos. É um legado dele e é positivo.” O incómodo do Ocidente com o facto de o Cazaquistão estar muito longe de ser uma democracia acabava por ter pouco peso, por uma razão: “Os outros países da Ásia Central eram tão repressivos que, por comparação, o Cazaquistão não parecia assim tão mau. Podia não ser democrático, mas era o mais democrático de todos da região.”

O autoritarismo soft e a escalada de repressão

O tempo, porém, viria a mostrar que tal poderia ser um problema. É que, como aponta Bruce Pannier, “o petróleo foi uma bênção e uma maldição”. Com uma economia altamente dependente deste produto, qualquer flutuação no preço tem efeitos diretos na vida das pessoas. Se nas primeiras décadas de Nazarbayev tudo parecia correr às mil maravilhas, a economia começou a ter problemas nos anos 2000, sobretudo a partir da crise financeira de 2008. Por volta de 2016, a classe média via-se em dificuldade para pagar os seus empréstimos, fruto de desvalorizações da moeda sucessivas para lidar com a crise. Ao mesmo tempo, os preços subiam com a inflação.

A par da crise económica, a corrupção cada vez mais visível começava a não ser tão bem tolerada pelos cazaques. E as maiores fortunas pareciam pertencer à família e aliados do Presidente. Veja-se o retrato feito por Joanna Lillis, correspondente da Economist no país: “Em 2016, soube-se que o seu neto Nurali Aliyev estava ligado a bens no valor de milhões de dólares registados nas Ilhas Virgens Britânicas e em 2018 surgiram revelações de que a filha do Presidente, Dariga, também tinha bens em offshore”, pode ler-se no seu livro Dark Shadows: Inside the Secret World of Kazakhstan (sem edição em português). “Nazarbayev está rodeado de familiares endinheirados: Dinara e Timur Kulibayev, a sua filha do meio e o genro, têm um valor conjunto de 6,4 mil milhões de dólares, segundo a Forbes; Dariga Nazarbayeva, a sua filha mais velha, foi apontada pela Forbes como valendo 600 milhões; e o irmão Bolat é um empresário que processou a ex-mulher em Manhattan por tê-lo enganado com o valor do condomínio, de 20 milhões de dólares.”

Perante este cenário, o descontentamento crescia. “Sobretudo nas novas gerações, nas pessoas na casa dos 20 anos. Eles não se lembram dos tempos da União Soviética, ou do caos dos anos 90… Querem ter uma palavra agora”, resume Stronski. O ex-embaixador Napper reforça a mesma ideia: “Havia um descontentamento crescente na sociedade, sobretudo com a questão económica. As pessoas sentiam que o desemprego estava alto, os salários eram baixos, e eles não beneficiavam da mesma riqueza que os que estavam ligados ao poder tinham. É uma grande desigualdade.”

Protesters detained at 2019 Kazakh presidential election in Nur-Sultan

A HRW denuncia que a repressão contra manifestantes aumentou nos últimos anos

Valery Sharifulin/TASS

Com o descontentamento, surgiram mais protestos. E, com eles, veio a maior repressão. “Desde 2018, as autoridades por todo o Cazaquistão têm vindo a assediar, interrogar, deter e acusar quaisquer pessoas membros de grupos considerados ‘extremistas’, incluindo aquelas que apenas participaram em manifestações pacíficas”, denunciava a Human Rights Watch no verão de 2021. Sob o chapéu do “extremismo”, Nazarbayev e o seu governo têm atacado diferentes ativistas, como denunciou o relatório de uma enviada das Nações Unidas ao país, em 2019: “Estas leis estão a ser usadas contra membros de minorias religiosas, da sociedade civil, defensores de direitos humanos e estão a ser apontadas à oposição política e a partidos políticos específicos”.

“A repressão sempre existiu, mas agudizou-se nos últimos anos”, reconhece Paul Stronski, apontando para o aumento do descontentamento e do número de protestos, o que deixou as autoridades “nervosas”. “O Cazaquistão costuma ser apontado como um país com autoritarismo soft. É soft no sentido em que não se vê a repressão nas ruas, no sentido em que tem uma sociedade civil vibrante, no sentido em que não é como o Turquemnistão. E isso é positivo. Mas para quem é um muçulmano ou alguém que investiga a corrupção na família de Nazarbayev, e é tratado como um ‘extremista’, o sistema pode ser bastante repressivo.”

Era uma questão de tempo até o lado mais brutal do regime de Nazarbayev se mostrar. Como disse em tempos Yevgeny Zhovtsi, líder do Gabinete pelos Direitos Humanos do Cazaquistão: “Há quatro inimigos dos direitos humanos: petróleo, gás, a guerra contra o terror e considerações geopolíticas. No Cazaquistão temos os quatro.”

O “pai da Nação” traído pelo filho político

A degradação da situação no país fez Nazarbayev tomar medidas. Em 2019, anunciou o que parecia impensável até então: ia deixar a presidência. É claro que não desapareceria totalmente de cena. Tornar-se-ia presidente do Conselho de Segurança, um cargo vitalício. E passava a ter oficialmente o título de Elbasy, “Líder da Nação”.

Kazhakstan - Aktau - Propaganda - Daily Life

Um cartaz de Nazarbayev na cidade de Aktau

Corbis via Getty Images

A medida foi elogiada pelos deputados do seu partido, o Nur Otan, do qual permaneceria líder: “Nursultan Nazarbayev está a par de grandes personalidades como George Washington, Mustafa Ataturk e Mahatma Gandhi, que fizeram feitos históricos no interesse dos seus Estados”, comentou a deputada Svetlana Ferkho. O tom panegírico era apenas a continuação de uma tendência de retratar Nazarbayev como “o pai da Nação”. Pelo país estão espalhadas estátuas do líder; o seu rosto está nas notas bancárias; todos os anos há rapazes a nascer a quem é dado o nome de Nursultan.

Mas a Nazarbayevmania atingia agora novos patamares, com o anúncio de que a capital Astana passaria agora a chamar-se Nur-sultan, em homenagem ao líder. “Este culto da personalidade sempre existiu, mas a certo ponto tornou-se uma coisa um pouco louca, com proporções incríveis. Quando o nomearam Elbasy ergueram-se mais estátuas, anunciou-se que se ia dar o nome dele ao centro espacial no Cazaquistão…”, enumera Stronski.

O momento seria de viragem. Por instantes, os cazaques acharam que Nazarbayev sairia mesmo de cena e poderia encetar-se uma nova fase da vida do país. Mas, rapidamente, perceberam que não. “Recordo-me de quando ele anunciou que iam mudar o nome da capital. Primeiro, Nazarbayev disse que ia haver um referendo. Meia hora depois já estava a dizer que a decisão estava tomada. As pessoas não gostaram, achavam que iam ter um sistema novo e rapidamente perceberam que isso não ia acontecer”, resume Bruce Pannier.

No discurso em que anunciou o seu afastamento, Nazarbayev já tinha deixado a pista de que não tencionava reformar-se: “Estarei convosco até ao fim, continuarei a servir”, afirmou. Mas foi preciso algum tempo até os cazaques perceberem que pouco tinha mudado, como ilustra Paul Stronski: “A transição era inspirada no modelo de Singapura. Mas não só ele escolheu o sucessor, também mantinha uma posição no Conselho de Segurança, um gabinete, uma biblioteca em nome próprio…. Tudo contribuía para ele manter o poder. E muitos dos que lhe eram leais continuam no sistema: a sua filha, Dariga Nazarbayeva, continuava presidente do Senado, e ele tinha aliados na área da segurança. Para além disso, não abdicaram dos seus poderes financeiros, continuavam a ter riqueza e poder de decisão. Portanto, ele continuava a ser um líder atrás do pano.”

Statue of Kazakhstan's first president Nazarbayev unveiled in Nursultan, Kazakhstan

Uma das estátuas de Nazarbayev na capital Astana, agora chamada Nur-Sultan em sua homenagem

Dmitry Karaman/TASS

Nazarbayev esperava dissipar assim a tensão social, mas continuar a deter o controlo até ao fim da vida. Nos bastidores, começavam as disputas pela sucessão, mas Nazarbayev ali continuava para as supervisionar. Aquilo com que o cazaque não contava era com a combinação de um descontentamento social tal que rebentaria na violência dos primeiros dias de janeiro — e, talvez mais relevante ainda, que o seu sucessor aproveitaria o momento para o afastar de vez e afirmar-se politicamente.

Kassym-Jomart Tokayev foi escolhido pelo próprio Nazarbayev para lhe suceder. Mas, perante a instabilidade das últimas semanas, não teve pejo em matar o seu pai político — não só afastou Nazarbayev, como também demitiu muitos dos que lhe são próximos, numa espécie de purga política. “Nazarbayev pode ter escolhido o fantoche errado”, aponta Stronski. Ideia reforçada pelo jornalista Pannier: “Houve um choque dentro da elite e Tokayev percebeu que as pessoas já não estavam com Nazarbayev, que estavam fartas. Eles gritavam ‘Shal Ket’ [“Velho, vai-te embora”], é um grito contra Nazarbayev e todo o seu sistema. Claro que agora é fácil para nós reconhecermos isto, mas é óbvio que Tokayev percebeu-o muito cedo.”

“Teve muitas ações admiráveis como o apoio à não-proliferação de armas nucleares, a sua capacidade de incentivar o investimento estrangeiro, a sua participação em iniciativas diplomáticas. Mas, sinceramente, o progresso que o Cazaquistão podia ter feito para se tornar numa sociedade mais democrática, mais transparente e menos desigual emperrou. E estes últimos acontecimentos são reveladores da frustração do povo cazaque com isso.”
Larry C. Napper, antigo embaixador dos EUA no Cazaquistão

Parece ter sido assim que um líder que construiu um país à sua imagem se viu afastado do poder numa questão de dias. Para trás deixa aquilo que Larry Napper resume como sendo um legado “misto”: “Teve muitas ações admiráveis, como o apoio à não-proliferação de armas nucleares, a sua capacidade de incentivar o investimento estrangeiro, a sua participação em iniciativas diplomáticas. Mas, sinceramente, o progresso que o Cazaquistão podia ter feito para se tornar numa sociedade mais democrática, mais transparente e menos desigual emperrou. E estes últimos acontecimentos são reveladores da frustração do povo cazaque com isso.” Frustração evidente no facto de uma das principais estátuas do líder em Almaty terem sido derrubadas pelos manifestantes.

Nazarbayev sai em desgraça, apesar de ter governado com um histórico melhor do que o dos homólogos da sua região e do seu tempo. “Parte do problema é que ele arrastou-se no poder durante demasiado tempo”, avalia Bruce Pannier. “E aqueles que casaram o seu destino com o de Nazarbayev certamente começavam a questionar-se até quando é que ele viveria.” O que acontecerá daqui para a frente no Cazaquistão, onde permanecem neste momento as forças russas, é uma incógnita. Até em relação a Nazarbayev, aponta o jornalista, há mais dúvidas do que certezas: “Não fazemos ideia de como é que ele está neste momento. Até pode estar morto.”

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