O coletivo de juízes que condenou o antigo banqueiro Ricardo Salgado a uma pena efetiva de seis anos de cadeia por três crimes de abuso de confiança, no processo que nasceu da Operação Marquês, deu como provado que o arguido sofre de doença de Alzheimer, mas não apreciou um dos pedidos feitos pela defesa quando juntou ao processo a declaração médica que o sustentava: suspender a pena em caso de condenação.
A decisão foi conhecida de forma genérica esta segunda-feira — numa audiência realizada no Campus de Justiça, que correu ao mesmo tempo de uma manifestação dos lesados do BES na rua –, mas o acórdão foi disponibilizado pelo tribunal quase 24 horas depois. E se, por um lado, foi dado como provado que Salgado sofre de Alzheimer e que a gestão do Grupo Espírito Santo não estava apenas centralizada nele, valorizando prova documental e testemunhos, por outro, deu-se como não provado, por falta de provas, que Ricardo Salgado tivesse usado os milhões depositados na Savoices, junto do Crédit Suisse, em Singapura, para comprar ações da EDP dias antes da última fase de reprivatização desta sociedade.
O Observador explica-lhe ponto por ponto o que consta nesta decisão, que põe, para já, um ponto final a este processo que nasceu da Operação Marquês e que foi o primeiro julgamento num tribunal criminal que teve (embora apenas numa sessão) Ricardo Salgado no banco dos réus. A defesa de Salgado já anunciou que vai recorrer para o Tribunal da Relação de Lisboa.
O que está em causa neste processo
Ricardo Salgado foi acusado e condenado por três crimes de abuso de confiança. O tribunal condenou-o a uma pena de quatro anos por cada um destes crimes, o que numa soma aritmética daria 12 anos. Mas, em cúmulo jurídico, as contas fixaram-se em seis anos de cadeia, com o Ministério Público a pedir depois um agravamento das medidas de coação por Salgado se deslocar com frequência ao estrangeiro. O juiz acabou por aceitar, obrigando o arguido a informar o tribunal cada vez que se ausentar do país.
O tribunal considerou os três crimes, que correspondem a três movimentos financeiros, pelos quais foi pronunciado completamente provados:
- A transferência, em outubro de 2011, de 4 milhões de euros da Espírito Santo (ES) Enterprises S.A., na Suíça, para uma conta da Credit Suisse da sociedade offshore “Savoices, Corp. (controlada por Ricardo Salgado). Segundo a pronúncia, a ES Entreprises era uma conta usada por Salgado para realizar pagamentos sem que a sua origem, destino e justificação fosse revelada.
- A transferência, em novembro de 2010, de 2,75 milhões de euros com origem na ES Enterprises, de conta titulada pela sociedade “Green Emerald Investments, controlada por Hélder Bataglia, para a conta da Crédit Suisse titulada pela Savoices de Salgado.
- A transferência, em novembro de 2011, de 3,967 milhões da conta Pictet & Cie. S.A., titulada por Henrique Granadeiro, com destino a uma conta da Lombard Odier titulada pela sociedade offshore Begolino SA, controlada por Ricardo Salgado.
Segundo o Ministério Público, ao fazer estas transferências, Ricardo Salgado sabia que “estes fundos pertenciam ao Grupo Espírito Santo” e que “os montantes pecuniários não lhe eram devidos e que não tinha direito a fazê-los seus”. Nas poucas considerações tecidas pelos juízes ao longo da decisão, lembra-se ainda que Salgado tinha também “plena consciência de que agia em oposição aos deveres profissionais conferidos pelos cargos que exercia no Grupo Espírito Santo”, pelo que tinha que “zelar” pelos interesses do grupo.
Qual a justificação de Ricardo Salgado para as transferências
Segundo a contestação à acusação que entregou ao tribunal, Ricardo Salgado começara por deixar claro que não centralizava em si a gestão do Grupo Espírito Santo.
O Grupo Espírito Santo era um “conglomerado misto” composto por várias sociedades do ramo financeiro e não financeiro, sendo as duas funções no ramo financeiro, era CEO do BES e administrador não executivo da Espírito Santo Financial Group, a holding deste setor. O Grupo Espírito Santo tinha mais de 350 sociedades geograficamente dispersas pela Europa, África, América do Sul, do Norte e Ásia. Ricardo Espírito Santo não integrava o Conselho Superior do GES e havia “outros membros da família Espírito Santo e outras pessoas” que davam instruções.
Não havia assim uma gestão centralizada, até porque cada uma dessas sociedades tinha os seus atos próprios de gestão.
Assim, as transferências para a Green Emerald Investments, segundo argumentou, foram feitas ao abrigo de um acordo entre as duas sociedades e deveram-se ao pagamento dos serviços prestados no âmbito desse acordo. Já as transferências para a Savoices teriam sido feitas ao “abrigo de um empréstimo” e as transferências para Henrique Granadeiro na sequência de uma acordo de aquisição de 30% da sociedade Margar – Sociedade Agro-Pecuária, SA. Já a transferência feita para a Begolino destinou-se à compra de um imóvel no Brasil pertencente ao arguido e à mulher.
No entanto, para o tribunal, nenhuma destas justificações foram válidas. No caso da transferência para a Green Emerald, o coletivo diz que não foi demonstrada qualquer prestação de serviço por parte de Batáglia. “É absolutamente destituída de credibilidade pagamentos na ordem de 15 milhões por serviços que surgem espelhados em notícias de jornais e em informação obtidas pelo arguido”, lê–se no acórdão, referindo-se os juízes às justificações apresentadas por Salgado.
Também o empréstimo a que Salgado se refere para justificar a transferência de 4 milhões de euros da ES Entreprises não ficou provado. O tribunal considerou mesmo que o documento que o arguido juntou ao processo com data de 2011 para o justificar foi “forjado”. Havia já no processo um documento semelhante, embora com erros ortográficos, que fora apreendido numa caixa de e-mail da ES Enterprises. Essse documento foi enviado por e-mail a 8 de setembro de 2014 a Jean Luc Schneider responsável pela empresa que é tida como o Saco Azul do BES (e que enquanto testemunha também não soube justificar). Analisados os metadados do documento, o tribunal concluiu que este documento enviado por e-mail tinha sido criado a 1 de setembro de 2014 (quatro anos depois do alegado empréstimo).
“O tribunal coletivo formou a convicção que o documento justificativo da celebração do contrato de empréstimo foi forjado em data muito posterior à da realização da transferência, e que o arguido utilizou em proveito próprio o montante em causa”, lê-se.
O tribunal também não acreditou nas justificações dadas por Salgado em relação à transferências que passaram por Henrique Granadeiro. Primeiro porque o investimento que ele disse que ia ser feito com esse dinheiro para construir um campo de golfe e um hotel de charme nunca avançou.
“Esta explicação seria credível se tal tivesse realmente ocorrido. Mas, apenas ocorreu a transferência de verbas da Espírito Santo Enterprises SA para a conta de Granadeiro e a aplicação desse capital não foi realizada“, lê-se.
E quanto à compra do imóvel do Brasil, também não convenceu os juízes. É que a transferência dos 4 milhões para adquirir este imóvel foi feita antes de haver qualquer escritura ou contrato promessa e até de duas avaliações imobiliárias feitas no local, segundo mostram as datas dos documentos apresentados em tribunal.
O que não ficou provado, segundo o acórdão
O tribunal não deu como provado, por ser incompatível com as provas, que desde 1991 a julho de 2014 a gestão do GES tenha estado sempre centralizada no arguido Ricardo Salgado, como referia a pronúncia e que ele dispunha de total autonomia e exclusividade na gestão do Grupo Espírito Santo — dispondo de todos os poderes necessários para decidir e fazer implementar a sua vontade no Grupo Espírito Santo.
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Na lista do que não ficou provado por falta de provas, o tribunal refere ainda que os valores creditados na Savoices, junto do Credit Suisse em Singapura, não terão sido usados por Salgado na aquisição de ações da EDP, poucos dias antes da última fase de reprivatização desta sociedade. No entanto, a tese de que estas transferências tinham sido feitas ao abrigo de acordos ou empréstimos também não vingou.
Entre os factos não provados está também um episódio que Salgado conta na sua contestação sobre a moção de censura que o Conselho Superior do GES terá votado para afastar o ex-banqueiro, em outubro de 2013, por iniciativa do seu primo José Maria Ricciardi — uma das principais testemunhas do caso. Uma moção que terá sido depois recusada. José Maria Ricciardi no seu testemunho em julgamento não lhe chamou moção de censura, mas voto de confiança e diz que este foi pedido pelo próprio Ricardo Salgado.
O que é que os juízes valorizaram
O tribunal valorizou os depoimentos das testemunhas, sobretudo do inspetor tributário Paulo Silva, prova documental, escutas extraídas de outro processo. Paulo Silva explicou que a Espirito Santo Enterprises, conhecida por Saco Azul do BES, e que mais tarde passou a ser Enterprises Management Services, não aparecia nas contas consolidadas do Grupo Espírito Santo que era apresentadas ao Banco de Portugal porque tinha sempre resultados neutros. Nesta sociedade o registo contabilístico não distinguia o passivo e o ativo e as suas relações eram apenas com o Grupo Espírito Santo. Também José Maria Ricciardi, primo direito do arguido, e que integrava o Conselho Superior do Grupo Espírito (presidido pelo seu pai, o comandante Ricciardi) disse ao tribunal não conhecer a ES Enterprises. Não se falava dela sequer, disse.
O tribunal também teve em conta o relatório social do arguido e o facto de não ter antecedentes criminais, uma vez que apesar de ser alvo de vários outros processos, este foi o primeiro em que foi efetivamente condenado num tribunal criminal.
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Alzheimer: o pedido da defesa a que o tribunal não acedeu
Os advogados Francisco Proença de Carvalho e Adriano Squilacce entregaram em outubro de 2021 ao tribunal uma declaração do médico Joaquim Ferreira a atestar que Salgado sofria de doença de Alzheimer e pediram aos juízes que tomassem uma de três decisões: ou suspendiam imediatamente o processo, ou o declaravam nulo, ou, no limite, a considerarem que o arguido devia ser condenado, que aplicassem uma pena suspensa.
O coletivo, presidido pelo juiz Francisco Henriques, considerou à data a declaração médica um “meio de prova válido”, mas lembrou que do seu conteúdo não se concluía que o arguido estivesse “mental ou fisicamente ausente”. Os juízes sublinharam mesmo que prestar testemunho “não é o mesmo que prestar uma prova académica”. E que, em suma, do que o médico atestava, decorria, sim, que Salgado estava limitado na sua capacidade de prestar declarações, mas não que estaria impedido de o fazer. Logo, a decisão de não prestar declarações não fazia com que o julgamento se tornasse injusto e violador dos seus direitos fundamentais para que o caso pudesse ser suspenso.
Os juízes também não encontraram motivos para declarar aquilo que a lei chama de inutilidade superveniente da lide, que tem como consequência o arquivamento do caso. Isto, porque, justificaram os juízes, o caso só poderia ser suspenso se Salgado estivesse em “estado vegetativo ou similar” e também não podia ser extinto porque tal só é possível em caso de morte ou de amnistia.
Já quanto à suspensão da pena, prevista na lei em caso de anomalia psíquica, o coletivo disse à data ser prematuro tomar essa decisão, porque qualquer apreciação seria “antecipar uma apreciação jurídica”. Mais de quatro meses depois, porém, no acórdão final que condena o arguido e a que o Observador teve acesso esta terça-feira, o coletivo não voltou a tocar neste pedido nem fez qualquer apreciação. Limitou-se a referir a doença apenas uma vez, ao longo das 93 páginas de decisão, para dar como provada a declaração médica entregue pelos seus advogados. Já no cálculo da medida da pena, o coletivo acabou por referir que teve em conta o estado de saúde do arguido, a sua idade e a sua vida familiar.
(Artigo atualizado às 13h04 do dia 9 de março de 2022)