O debate de atualidade com o primeiro-ministro já vinha no meio do furacão com origem em João Galamba e adensou-se depois das revelações sobre a operação Tutti-Frutti. António Costa tem escolhido diminutivos para tirar peso a todos os pesos que lhe surgem pelo caminhos — eram “casos e casinhos” e agora são “horas e horinhas”, os detalhes dos telefonemas de Galamba para meio Governo a 26 de abril –, mas eles continuam lá e a oposição a aproveitá-los para fragilizar António Costa. Esta quarta-feira, IL e Chega agarraram numa das balas perdidas desta trama e tentaram direcioná-la para Costa, com o primeiro-ministro a desviar-se, deixando por confirmar o contacto que Galamba terá feito com o seu gabinete naquela noite.

E enquanto esse esclarecimento não chega — a IL pediu a audição obrigatória de Mendonça Mendes na 1.ª comissão –, Costa vai garantindo que o “Governo não está parado, está a governar”. Mesmo que seja “pouco audível perante o ruído mediático para cada caso e casinho”, admitiria, num debate onde foram mesmo esses temas quentes que voltaram a manter o volume elevado.

SIS. Costa afasta Governo de qualquer decisão

O tema abriu o debate, sem surpresa, com Catarina Martins a questionar logo o primeiro-ministro sobre a legalidade da atuação das secretas num caso que envolve um Ministério. Não se deixou comover pela saudação de Costa — que se despediu da líder do BE, que deixa de o ser no fim de semana, louvando os tempos da geringonça — e voltou a insistir no assunto. O primeiro-ministro respondeu-lhe — como faria até ao final do debate, com a convicção da legalidade da intervenção do SIS: “Não vejo nenhuma ilegalidade na atuação dos serviços”. Acrescentou mesmo que considera que o SIS fez bem, já que estava em causa o roubo — e já não tem dúvida no uso da palavra, porque “apropriar com violência é roubo” — de um computador com informação classificada.

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No entanto, nunca apontou qualquer legislação concreta onde baseie esta sua certeza. O foco do Governo tem sido em distanciar-se da origem da atuação do SIS, o que ficou claro desde que a chefe de gabinete de João Galamba assumiu ter sido ela a reportar e a decidir sobre esse contacto isoladamente. Com esta versão em marcha, Costa voltou a garantir que “nenhum membro do Governo, direta ou indiretamente, deu qualquer ordem ao SIS para proceder a essa ação” e elogia a independência de Graça Mira Gomes, a secretária-geral do Sistema de Informações da República (SIRP) que é tutelado pelo primeiro-ministro e de onde depende o SIS. E não tem dúvidas de que se tudo acontecesse de novo amanhã, a resposta deveria ser a mesma. “No quadro de ameaça que estava estabelecido, o SIS agiu corretamente a 26 de abril, agiria hoje e amanhã.”

Telefonema Galamba/Mendonça Mendes. A insistência de Chega e IL que Costa deixou sem resposta

Já não parece haver tantas certezas sobre um ponto concreto dessa trama: o contacto que o ministro João Galamba diz ter feito para o secretário de Estado Adjunto do primeiro-ministro no dia de todos os acontecimentos no Ministério das Infraestruturas. Todos os governantes que Galamba diz ter contactado já confirmaram os respetivos telefonemas (primeiro-ministro, ministros da Administração Interna, da Justiça e até a da Presidência — que nunca tinha sido referida), exceto António Mendonça Mendes. Sobre este contacto tem existido resistência do Governo em falar, pelo que a Chega e a Iniciativa Liberal não largaram o assunto durante o debate.

Aliás, André Ventura usou todas as suas intervenções para fazer a mesma pergunta sobre este telefonema entre Galamba e Mendonça Mendes e para sublinhar que Costa fugira a todas elas. E não houve nunca uma resposta de sim ou não, qualquer que fosse a forma da pergunta. A dada altura, Costa até elencou os vários contactos que fez nessa noite, confirmando que falou com Galamba, e acrescentou o Presidente da República, tendo depois de fazer o reparo, garantindo que esse contacto afinal não aconteceu.

O líder do Chega chegou mesmo a provocar, sobre o assunto, dizendo que começa “a pensar se é esquecimento ou padrão e vontade de faltar à verdade. É de Memofante que precisam para distribuir pelo Governo todo?” A resposta de Costa foi, mais uma vez ao lado da pergunta sobre Mendonça Mendes: “Algum membro do Governo deu ordens para as autoridades ou orientações para as autoridades agirem? Não. O resto é folclore.” André Ventura passou então ao secretário de Estado que estava sentado à direita de Costa, na bancada do Governo e desafiou-o a responder. Mas isso não aconteceu.

Recorde-se que João Galamba já tinha referido esta telefonema na conferência de imprensa de 29 de abril, após os acontecimentos no seu Ministério, para justificar que se tinha certificado da necessidade de reportar o caso ao SIS junto de colegas do Governo. Até tentou primeiro António Costa, que não o atendeu, e depois o seu secretário de Estado Adjunto e a ministra da Justiça, articulando uma decisão. Depois veio afinal dizer que já não se lembrava de ter falado do SIS com a ministra da Justiça e que tinha sido Mendonça Mendes a dizer-lhe para reportar às secretas. Costa não fala sobre este ponto.

Tutti-Frutti. Ministros ficam e o mantra do costume

Por todo o debate foram surgindo pedidos de cabeças de ministros. O Bloco de Esquerda, logo no arranque, já tinha avisado que João Galamba já nem devia ser ministro. Mas os pedidos não ficaram por aqui, até porque no dia anterior tinham sido conhecidos desenvolvimentos da investigação do DIAP de Lisboa e da Polícia Judiciária. Na operação Tutti-Fruti há suspeitas a recaírem sobre o ministro das Finanças, Fernando Medina, no seu tempo de autarca em Lisboa. Medina é suspeito da prática de diversos crimes de corrupção em regime de co-autoria, prevaricação de titular de cargo político e abuso de poder, e o tema veio até ao hemiciclo pela voz de Joaquim Miranda Sarmento.

Operação Tutti-Fruti. 10 perguntas e respostas sobre as suspeitas que envolvem Fernando Medina

O líder parlamentar do PSD acusou Costa de usar ministros como “cordeiros pascais” — e até lembrou o caso de Eduardo Cabrita — e o Chega perguntou diretamente se o primeiro-ministro mantinha a confiança política nos ministros referidos no processo, Fernando Medina e Duarte Cordeiro. António Costa respondeu que mantém “toda a confiança política” em ambos. E sobre o caso, aconselhou: “Se quisermos ser fiéis às boas regras do Estado de direito e não desperdiçar o enorme ganho civilizacional que o renascentismo trouxe à Justiça, evitando que se faça na praça pública, é não andarmos a fazer julgamento com base em peças televisivas e deixarmos as autoridades desempenharem as suas funções.”

Foi a forma de fintar o problema que Ventura tentou que chegasse ao próprio primeiro-ministro, ao lembrar que nas buscas à Câmara de Lisboa, no caso Joaquim Morão, foram encontrados documentos com a assinatura de Costa, como presidente.

O líder do Governo disparou que o que acha “estranho é que nas buscas não encontrem um documento assinado” por ele, já que foi autarca oito anos. “Durante oito anos assinei milhares de documentos. Mas se sabe alguma coisa que deva comunicar a justiça a meu respeito, diga”, desafiou mesmo antes de garantir: “Todos os dias me deito e levanto com a minha consciência muito tranquila. Muito tranquila”, garantiu o primeiro-ministro em matéria de justiça.

Sobre a investigação em si, já se sabe, o mantra já vem de 2014 e do caso Sócrates: “À justiça o que é da justiça, à política o que é da política.” E foi assim mesmo que começou por responder ao caso, dizendo estar a aguardar que “a justiça que exerça as suas funções”.

Populismo, o selo atribuído por Costa a meio mundo

“Tretas” para cá, vacinas e imunidade contra o populismo para lá. “O sexto sentido do PS é ver populistas em todo o lado, até nos seus partidos satélites.” A boca de Rodrigo Saraiva, líder parlamentar da IL, a António Costa resume um debate em que o primeiro-ministro não poupou nos ataques e onde todos levaram o selo de populistas: começou no PSD, passou pelo Livre e não escapou a IL.

O debate ainda estava nos primeiros minutos quando António Costa saca da cartola um dos trunfos que tem valido acusações ao PS por uma alegada polarização que beneficia o Chega. Foi uma referência de Miranda Sarmento à operação Tutti-Frutti que levou Costa a atirar: “A primeira forma de combater o populismo é não imitar o populismo.” Serviu a farpa para que o líder parlamentar do PSD respondesse à letra ao primeiro-ministro e alertasse que “populismo é fugir às responsabilidades políticas”.

Não ficaria por aqui. Perante uma intervenção em que Rui Tavares alertava para a necessidade de que não se transforme o país e a política num “lamaçal”, António Costa não esqueceu que estava a falar para o deputado do Livre (até porque conhece a forma como olha para o funcionamento das instituições), mas não deixou de levantar a preocupação ao sugerir “cautela” nos momentos de comentários sobre o comportamento institucional.

“Sem dar por ela, até o senhor deputado começa a ficar contaminado com o vírus perigoso que entrou no Parlamento”, referia o chefe do Governo enquanto apontava a mão em direção ao Chega. O deputado do Livre não gostou, voltou ao tema mais tarde e em jeito de contra-ataque. Para Tavares, o facto de Costa usar a palavra “tretas”, dita pelo “líder do partido da extrema-direita”, está longe de ser menos grave.

A agulha viria a virar-se para a Iniciativa Liberal após uma intervenção mais calorosa de Rui Rocha que levou António Costa a desferir mais um golpe (que deixou a bancada visivelmente incomodada): “É com muita satisfação que vejo que estava certo na minha análise sobre a razão pela qual o deputado João Cotrim Figueiredo se decidiu libertar deste papel de liderar a bancada da IL. Bem-haja, senhor deputado Cotrim Figueiredo, que se mantenha vacinado e imune ao contágio do vírus.”

A resposta acabou por vir pela voz do líder parlamentar da IL, ao notar que o “sexto sentido do PS é ver populistas em todo o lado” e sublinhando que até o fez com o Livre, a quem chamou “partido satélite”. Segundos antes, Rui Rocha tinha deixado a sugestão de que Costa não tinha legitimidade para falar de antecessores, numa alusão a José Sócrates.

O “frenesim” político e a prova de credibilidade a pensar no futuro

Os “casos e casinhos” que Costa desvaloriza continuam a contribuir para um contexto político atribulado (um “frenesim” na voz de Costa), onde um cenário de eleições antecipadas não está afastado — o próprio Presidente da República alimentou a ideia — e nas entrelinhas deste debate começou-se a marcar território para o futuro.

Aos olhos do primeiro-ministro “o país está a funcionar com normalidade” e a crise política “era um sonho que o senhor deputado [Miranda Sarmento] queria”. Portanto, foram muitos os minutos em que se dedicou a falar do estado do país, das medidas aplicadas pelo Governo, da importância da almofada financeira para um cenário de crise e não travou uma tentativa de ser oposição a um PSD que tenta afirmar-se como uma alternativa para o país e para o Presidente da República.

“Desde 2015 que o PSD anuncia que para o ano é que é”, sublinhou o primeiro-ministro enquanto se defendia dos ataques dizendo que o PS cumpriu o que prometeu e que “nunca deu passos maiores do que a perna”. Pediu “contrição” aos sociais-democratas pelo o corte de pensões pelo qual o PS sempre acusou o governo de Passos Coelho e deixou por diversas vezes claro que a “perceção” das pessoas relativamente à situação económica “pode não ser boa, mas tem vindo a melhorar”.

Sempre que teve oportunidade surfou a onda das contas certas, sublinhou que a dívida pública teve uma trajetória de redução a “muito bom ritmo até 2020”, que cresceu com a pandemia da Covid-19, mas que “desde aí Portugal foi o país que mais reduziu”.

E a rota que se desenhou entre as provas de credibilidade do PS e a descredibilização de uma “fúria da oposição” serviu para acusar a “direita que se junta ao Chega” de ser um “risco para a credibilidade internacional do país” e para alertar que o “frenesim” político nacional já se ouve lá fora: “Recentemente uma agência de rating, quando começou a ouvir falar no frenesim da crise política que a direita quer organizar, veio mostrar a sua preocupação por registar que desde que o PS é Governo continuar a determinação de reduzir a dívida. Somos uma garantia de estabilidade e de credibilidade.”

Foi num clima quente, quase pré-eleitoral (quando a maioria absoluta leva pouco mais de um ano), que Governo e oposição trocaram acusações e provocações. António Costa saiu a tentar dar provas de que o país “não está parado”, de que Governo “está a governar” e de que tudo se torna “pouco audível perante o ruído mediático para cada caso e casinho”. É, nas palavras do primeiro-ministro, um “ecrã” usado pela oposição para “tornar invisível o trabalho” do Executivo.