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A História tende sempre a repetir-se. Se agora os ucranianos fabricam cocktails Molotov de forma quase industrial em caves e cervejarias das grandes cidades, também durante a Segunda Grande Guerra, o Reino Unido produziu milhares destas bombas caseiras, com a sombra de uma invasão alemã a aproximar-se da ilha britânica, em 1940.
Putin Huylo: os cocktails molotov feitos por uma cervejaria ucraniana a pensar em Putin
Estas armas relativamente fáceis de utilizar e de fabricar, contudo, não surgiram apenas na Segunda Grande Guerra, embora apenas tenham sido apelidadas durante este período.
Os cocktails Molotov devem o seu nome a Vyacheslav Molotov, político e diplomata russo que serviu como braço direito de Estaline — não por ter sido uma arma inventada por Molotov, mas, pelo contrário, por ter sido usada pelo exército finlandês contra as bombas russas durante a Guerra de Inverno.
Antes de ser cocktail, já era bomba
A fabricação de cocktails Molotov, ainda que sem esta designação, pode ser encontrada em documentos referentes à Primeira Revolução Russa, ou Revolução de 1905, como explicou ao Observador Arturo Zoffmann Rodriguez, investigador de História Contemporânea e especialista em História Russa no Instituto de História Contemporânea da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.
Num texto redigido por Lenine no final de outubro de 1905, o mesmo referia que, na luta contra as tropas czaristas, a população deveria armar-se com “o melhor que conseguisse”, quer fossem estas armas “espingardas, revólveres, bombas, facas, soqueiras, paus ou trapos ensopados com querosene para começar incêndios“.
Também na Guerra Civil Espanhola — que durou entre 1936 e 1939 — as bombas caseiras incendiárias foram usadas pelas forças nacionalistas lideradas por Francisco Franco. A necessidade desta arma na guerra de Espanha surgiu pelo desenvolvimento de novas táticas de guerra urbana.
Quando a União Soviética ajudou as forças republicanas a adquirir tanques T-26, que, na época, apresentavam uma maior eficiência em combate urbano, Franco, de acordo com o History of Yesterday, ordenou que fossem utilizadas bombas incendiárias caseiras que fossem capazes de queimar as lagartas dos tanques, tornando-os imóveis e assim alvos fáceis de abater.
Esta tática foi aplicada na Batalha de Sesena, quando as forças republicanas atacaram as tropas nacionalistas sediadas na localidade espanhola. As forças de Franco conseguiram, segundo a National Geographic, destruir nove tanques T-26 num confronto entre os dois lados, evento testemunhado por um oficial britânico.
A eficácia dos ‘então por designar’ cocktails Molotov estava patente não só no facto de imobilizarem os T-26, mas também por obrigarem as tropas que se encontravam nos veículos a renderem-se ao sair dos tanques, ou a sofrer uma morte resultante, primeiro, pelo fumo, e depois pelo incêndio gerado pelas bombas.
Mais tarde, estas bombas viriam a ser utilizadas tanto pelas forças nacionalistas como pelas forças republicanas. A mesma tática foi adotada pelo exército nipónico na Batalha de Khalkhin Gol, onde os tanques soviéticos terão sido travados com “bombas de petróleo”.
Apenas com o início da Segunda Grande Guerra, contudo, é que esta arma ganharia o seu nome, conhecido em todo o mundo.
Rússia oferece cestos de pão, Finlândia oferece cocktails
Durante a Guerra de Inverno, onde, entre novembro de 1939 e março de 1940, as tropas soviéticas invadiram a Finlândia, os finlandeses, em menor número que os russos, tiveram de recorrer a táticas de guerrilha.
Para contrariar as emboscadas finlandesas, os aviões soviéticos bombardeavam as posições finlandesas antes do avanço das tropas russas em terra. Questionado sobre estes bombardeamentos, o então ministro dos Negócios Estrangeiros, Vyacheslav Molotov, afirmou que os aviões soviéticos estariam apenas a entregar comida e ajuda humanitária ao país.
Garrafas de vinho setubalense utilizadas para cocktails molotov contra as tropas russas
As bombas soviéticas passaram assim a ser designadas pelos finlandeses como “cestos de pão do Molotov” ou “cestos de piquenique do Molotov“. Ironicamente, as tropas finlandesas passaram então a designar as bombas de petróleo incendiárias de “cocktail para o Molotov”.
Esta arma era já produzida de modo quase industrial pelas antigas destilarias do país, e foi usada de forma eficaz pelos finlandeses contra os tanques soviéticos, com mais de meio milhão de cocktails incendiários lançados durante a Guerra de Inverno.
Os cocktails Molotov, associados hoje em dia a protestos, rebeliões e atos de terrorismo, eram de facto uma arma normalizada entre as tropas regulares durante a Segunda Grande Guerra.
“Na guerra da Finlândia, que foi uma guerra convencional , o cocktail Molotov foi uma arma utilizada, por exemplo, pelas tropas regulares finlandesas. Durante a Segunda Guerra Mundial, os exércitos dos vários países dão-lhe essa utilização [regular]”, explicou ao Observador Arturo Rodriguez.
Um drink para receber os nazis
Com a ameaça de uma invasão alemã a pairar sobre o Reino Unido, a população britânica começou a produzir cocktails incendiários e a guardá-los para o caso de ter de receber um nazi no seu lar.
“Espera pelo teu tanque. Quando estiver próximo o suficiente, o teu colega acende o trapo ensopado em petróleo. Atira a garrafa e o trapo assim que o canto comece a arder“, explicava no Picture Post em 1940 Wintringham, um veterano da Legião Internacional da Guerra Civil Espanhola.
“Garante que aterra à frente do tanque. O trapo deve atingir as lagartas, as correias ou um eixo [do tanque]. A garrafa vai-se partir, mas o petróleo deve ensopar o trapo o suficiente para criar um incêndio significativo.”
As instruções para o fabrico deste tipo de armas generalizou-se em todo o país. O governo britânico treinou milícias compostas por homens demasiado velhos para irem para o outro lado do Canal da Mancha na arte de fabricar e utilizar o cocktail Molotov.
Estas instruções eram, inclusive, difundidas com recurso ao cinema, através de filmes curtos onde se explicava a estratégia por trás da bomba incendiária. Num destes vídeos, é mostrado um tanque nazi a ser travado por uma barricada antes de ser incendiado com cocktails Molotov.
O fabrico e recurso em massa de bombas incendiárias caseiras traça um paralelismo, segundo Arturo Rodriguez, entre o Reino Unido durante a Segunda Grande Guerra e a Ucrânia atualmente — embora, num dos casos, estas bombas estejam de facto a ser utilizadas em larga escala.
“É uma arma fácil de fabricar que pode ser escondida e improvisada facilmente, além de poder ser utilizada por tropas irregulares. Não são precisos grandes conhecimentos para utilizá-la, além de ser muito útil num contexto de combate urbano numa guerra contra uma ocupação estrangeira, onde a maior parte da população está contra as tropas invasoras”, explicou o investigador de História Contemporânea.
“Pode ser lançada dos prédios, por exemplo, e torna-se numa complicação no combate urbano, sobretudo num contexto em que a maior parte da população se opõe à invasão estrangeira, e nesse sentido a comparação com a Inglaterra na Segunda Grande Guerra faz, de facto, sentido.”
Também no seu diário, nas páginas correspondentes às datas de 17 a 24 de setembro de 1940, o jornalista e escritor George Orwell retratou a paisagem deixada pelos bombardeamentos alemães à cidade de Londres.
Escondidos no metro. Depois de Londres, um novo “Blitz” mais de 80 anos depois na Ucrânia
“A prática de comprar um bilhete de dois dias e de passar a noite numa das estação subterrâneas do metro, por exemplo, [a estação de ] Piccadilly, está a crescer”, explicou o escritor, descrevendo um cenário semelhante ao vivenciado pelos habitantes de grandes cidades ucranianas como Kiev ou Kharkiv. “As características comuns destes tempos: montes de vidro cuidadosamente varridos, escombros de pedra e lascas de sílex, o cheiro das fugas de gás e grupos de turistas à espera em filas.”
O simbolismo do Cocktail Molotov na segunda metade do século XX
Durante o pós-Segunda Grande Guerra, o cocktail Molotov passou a ser utilizado, não só como arma prática militar de guerra, mas como uma arma simbólica.
Frequentemente associada a movimentos de protesto, a bomba incendiária foi utilizada na revolta do povo húngaro contra o controlo soviético, em 1956, assim como durante a Primavera de Praga, durante a qual a (então) Checoslováquia tentou, em 1968, implementar uma série de reformas que lhe garantissem maior liberdade económica e democrática face à União Soviética.
Na Irlanda do Norte, durante os conflitos que opuseram, entre as décadas de 1960 e 1980, protestantes e católicos, o cocktail Molotov foi a arma de escolha dos dois lados do confronto, conta a National Geographic.
Mais recentemente, em 2020, os protestos do movimento “Black Lives Matter“, segundo relatou a ABC News, foram igualmente marcados por movimentos que opuseram manifestantes e forças de autoridade, e que culminou no uso de coktails Molotov contra a polícia norte-americana.
Invasão da Ucrânia: o simbolismo também tem uma eficácia militar
Com a invasão da Ucrânia, o uso de cocktails Molotov deu ao seu simbolismo um significado novo, numa guerra de terror instalada pela resistência ucraniana contra as tropas russas.
“Enquanto que os propagandistas do Kremlin se vangloriaram em como os ucranianos os receberiam [aos soldados] com flores e como salvadores, eles foram corridos com cocktails Molotov”, afirmou no dia 8 de março Olena Zelenska, a primeira-dama da Ucrânia.
De facto, estes soldados russos, como explicou Arturo Rodriguez, têm de entrar em “ruas que não conhecem de cidades que não conhecem e com pouca preparação — porque de facto a Rússia está agora a envolver tropas que não têm muita preparação, ao contrário do início da invasão”. Entrar numa cidade neste contexto, tendo a população contra as tropas e a ‘recebê-los’ com cocktails Molotov tem, para o investigador, um impacto importante sobre a moral das tropas russas.
“Mesmo sem ser num quadro de combates urbanos, se analisarmos as linhas de comunicação muito longas e que não estão bem protegidas, há muitos ataques e emboscadas espontâneos, por vezes por grupos irregulares, contra as colunas militares, e nesse contexto o cocktail Molotov tem um papel muito eficaz a nível militar, especialmente na derrota da moral inimiga.”
Esta segunda-feira, segundo o Kyiv Independent, terão morrido, desde o início da invasão da Ucrânia, cerca de 15 mil tropas russas, e terão sido neutralizados 97 aviões, 121 helicópteros e 498 tanques. Esta estimativa, realizada pelas Forças Armadas da Ucrânia, não foi ainda, contudo, confirmada por fontes independentes.