Entardece e os mosquitos invadem o espaço da Quinta da Atalaia aos magotes, num ajuntamento que — infelizmente — não tem restrições associadas. Picam sem critério, quase tanto como os comunistas se revoltam com os jornalistas que este ano foram cobrir a Festa do Avante. O clima é crispado, há militantes incomodados em todos os cantos, tiradas à comunicação social, respostas irónicas, indiretas. A cobertura dos contornos deste evento na era Covid-19 deixou o PCP a ferver e, em muitos momentos mesmo nervoso, como quando Ricardo Araújo Pereira encheu para lá do limite e das regras um debate ou quando o Observador foi tentar saber como se estava a controlar o número de pessoas na Festa.
[Da relação com o PCP à piada do “hitlarilas”. Ouça aqui os 5 momentos mais marcantes de Ricardo Araújo Pereira no Avante]
As regras da DGS ditaram um limite máximo de 16.563 pessoas dentro da Festa do Avante. Quem controla e como? “Olhe, minha senhora, ontem à noite contei estes papelinhos que estão aqui no chão”. A resposta irónica é dada ao Observador por um dos funcionários da Festa que estava numa das duas portas (Quinta do Cabo) de entrada no recinto com um furador de bilhetes na mão, com que marcava os bilhetes de quem entrava. A pergunta foi imediatamente considerada “provocadora”, mesmo depois de referida a limitação colocada pela DGS. Ninguém naquela porta estava a contar, confirmou o Observador.
Seguimos para a porta do lado oposto, a entrada da Quinta da Princesa. Quem está a controlar o número de entradas? “Aqueles nossos camaradas ali”, apontou esta funcionária em direção ao bengaleiro/receção. Mas por lá ninguém acusou ter essa função. O Observador foi remetido para a organização da Festa. Feita a pergunta e explicado o contexto à assessoria de imprensa do PCP, foi dada a garantia, pouco depois, que o partido tem “um sistema de controlo ativo do número de pessoas dentro da Festa” e que este “cumpre os limites estabelecidos pela DGS”.
O PCP não explica, no entanto, qual o sistema, nem diz quantas pessoas já tinham entrado neste sábado, nem como era garantido que a lotação máxima não era excedida. Quando questionados, novamente, sobre qual o sistema e com o facto de o Observador ter verificado que nas entradas não existia esse controlo, a resposta foi: “Esta é a resposta que temos para dar”.
Em nenhuma das duas portas — há uma terceira para serviços — existem torniquetes ou qualquer contador de entradas que são apenas validadas através do tal furador. O PCP explicou esta semana ao jornal Público que a “Entrada Permanente [EP]– título de solidariedade está à venda e disponível para aquisição nas organizações” e que a “sua compra prossegue, num quadro em que uma parte não correspondendo a deslocações à Festa, mas sim a gestos de apoio, possibilita que sejam ainda alguns milhares as entradas que podem ser adquiridas, atendível a capacidade fixada”. Ou seja, estavam a ser vendidas EP acima do número limite, a título de apoio ao partido, que não corresponderiam a entradas reais. De qualquer forma, o PCP não diz nunca quantas entradas reais vendeu.
Na segunda porta chegou a ser explicado ao Observador, no bengaleiro, que a DGS teria estado na Festa na sexta-feira, a fiscalizar o cumprimento das diretivas sanitárias. Contactada pelo Observador, a DGS disse que a função de fiscalizar não cabe a esta autoridade que depende do Ministério da Saúde. “Não esteve ninguém da DGS na Festa do Avante, nem irá”, disse fonte oficial em resposta ao Observador, acrescentando que não é um “organismo fiscalizador, não tem capacidade nem competências para fiscalizar as pessoas que entram ou vão entrar no recinto”. Também é garantido que “o PCP se comprometeu escrupulosamente a cumprir todas as regras e, por isso, a DGS acredita que estejam a controlar de alguma forma a entrada das pessoas”.
Estavam membros da Proteção Civil dentro do recinto do Avante, a tal Quinta no Seixal que Ricardo Araújo Pereira compara a “30 campos de futebol”. São, de facto, 30 hectares de espaço para um número limite de pessoas em simultâneo que primeiro foi reduzido para 33 mil pessoas e depois, pela DGS, para pouco mais de 16 mil. O humorista voltou à Festa 20 anos depois da última em que tinha 26 anos (idade em que se desvinculou do partido, de que se tornou militante aos 24), para um debate que excedeu expectativas e também as regras sanitárias.
Ouça aqui os 5 momentos mais marcantes de Ricardo Araújo Pereira na Festa do Avante:
“Olha aí, camarada! Isso é o que os jornalistas querem ouvir”. A enchente RAP
Pelas 18h30, no palco junto à Feira do Livro da Festa do Avante, já pouco espaço livre (seguro) havia para ouvir o convidado especial da tarde, o ex-militante comunista Ricardo Araújo Pereira. O debate sobre “A política e o humor” demorou a arrancar, aliás teve mesmo um duplo arranque já que o moderador, Pedro Tadeu, teve de repetir a sua entrada depois de a organização ter pedido um tempo para tratar do som no fundo do espaço. Estavam mais de 300 pessoas espalhadas pelo espaço ao ar livre (durante o evento chegaram a ser perto de 500), mas bem mais juntas do que mandam as regras da DGS, e a densidade não melhorou mesmo depois desse pedido de tempo extra.
A notícia correu depressa e, no final do debate, Ricardo Araújo Pereira comentava no Observador que já alguns amigos lhe tinham enviado a notícia a dar conta do que tinha estado ali à sua volta. Mas também disse que do que lhe “foi dado ver, as regras estavam ser cumpridas“.
A organização demonstrava algum nervosismo com a afluência a um dos momentos de debate naturalmente mais aguardado deste sábado. Pediam mais som para as colunas lá atrás e também que as pessoas se distribuíssem melhor pelo espaço. Não surtiu grande efeito. Lá atrás um dos espetadores protestava com a organização que “no autocarro da Carris é aos 500!”. E logo era travado por outro ao seu lado: “Olha aí, camarada! Isso é o que os jornalistas querem ouvir” — uma referência comum nesta Festa.
“Camaradas, não pode estar aí, isso é um ajuntamento”, gritava uma senhora sentada numa das cadeiras dispostas no espaço dirigindo-se aos muitos que estavam em pé e sentados no chão à sua volta. Longe de cumprirem a regra de uma pessoa por cada oito metros quadrados ao ar livre que consta no parecer da DGS para a Festa comunista.
Aliás, para aquele espaço concreto da Festa (a área ao ar livre do Espaço Livro) o que consta no quadro de lotação definido pela DGS é que se tratam de 350 metros quadrados, com a lotação de 44 pessoas no “espaço aberto”. O espaço teve de estender-se muito além daqueles 350 metros quadrados — onde o PCP fez tudo para que estivessem apenas as pessoas que a DGS definira e com o distanciamento devido, sentadas em cadeiras, tanto que nem os jornalistas podiam estar dentro do espaço para recolher som ou imagens. Mas, fora daquele quadrado, não houve regra que segurasse a multidão, nem os avisos insistentes nas colunas de som: “Reforçamos o pedido para que usem máscaras”, “não se aproximem uns dos outros”.
Muito mais juntos do que mandam as regras, como é possível verificar através das imagens recolhidas pelo Observador. E a assistência estendia-se até Castelo Branco/Guarda. Não literalmente, claro, mas até aos espaços onde estas duas regiões do país estavam representadas, do lado de lá do caminho que vinha da porta da Quinta do Cabo. Essa zona de circulação de acesso à Festa estava, assim, totalmente entupida pela assistência que no final tentou invadir o palco para pedir autógrafos a Ricardo Araújo Pereira. A organização teve de pedir que isso não acontecesse e controlou a situação.
Jorge Cordeiro, membro histórico da direção comunista, não largou a sala de imprensa durante todo o dia, nomeadamente as duas televisões que vão passando notícias. Foi sempre anotando tudo o que diziam sobre a Festa num bloco e ao telefone ia informando sobre cada noticiário das televisões generalistas ou dos canais de notícias. A agitação por ali foi maior no pós-RAP, o momento em que a organização comunista se desorganizou.
Em cada esquina um… fiscal
No espaço Castelo Branco/Guarda, mesmo antes do debate de RAP começar, a tarde ia animada. Cantava-se e declamava-se num desafio entre as mesas onde, no fim de um dia escaldante, se despachavam sobretudo imperiais. “Grândola vila moreeeenaaa”, entoava uma rapariga levando atrás de si as restantes mesas do espaço. Dois amigos brindavam: “À nossa, camarada”. Mas o primeiro trago tinha uma barreira. “Ahahahaha” Tira a máscara!”.
Não houve Festa como esta no passado comunista. Ainda que se recorde, aqui e ali, uma outra. Numa das tentativas do Observador em perceber como se estavam a controlar entradas e a garantir que não estariam mais do que o número permitido pela DGS, a resposta agreste misturou-se com a memória de um passado distante, o da primeira festa do Avante, em setembro de 1976. O objetivo do militante era fazer o paralelismo com as dificuldades que os comunistas tinham enfrentado nessa altura, com as que dizem ter sido colocadas no caminho desta Festa.
“Até foram lá pôr uma bomba”. A história é a da explosão numa cabine elétrica da primeira Festa, que o Observador recordou aqui. A mesma história foi recordada, pouco depois, pelo líder comunista, Jerónimo de Sousa, quando falou aos jornalistas antes de começar um curto passeio pelo recinto da Festa. Perguntaram-lhe qual a que o marcara mais, de todas aquelas em que particicou. Jerónimo disse que esteve em todas e que foi esse o momento mais marcante de todas as Festas do Avante que já aconteceram desde essa primeira na antiga FIL em Lisboa.
Agora, a bomba é outra. Invisível. Em plena pandemia, os comunistas quiseram manter a sua tradicional iniciativa de rentrée e realizaram-na entre regras apertadas, mas conhecem os riscos associados. Jerónimo de Sousa insiste na necessidade de se retomar normalidade e o discurso vai tomando forma pelo recinto, nos miúdos que, debaixo dos muito mais de 30 graus, tomam banho nas fontes e nas sestas dormidas à sombra.
Ao início da tarde era este o cenário, com a Festa bem abaixo da agitação dos últimos anos, mas bastante composta nos relvados de gente estendida a aproveitar o fresco das árvores. Tanto que no palco principal (25 de abril) os Model Mother Tongue tinham apenas 12 pessoas em pé, lá à frente, no gigante espaço que mais parecia um cemitério de cadeiras. Todas dispostas com a distância devida, mas vazias. Estava tanto sol, que a esmagadora maioria preferia abanar a cabeça bem lá atrás, à sombra. Só mais tarde se viu uma agitação por essa zona do recinto que só começou a ter mais gente ao final da tarde.
Pelos palcos espalhados no recinto, respeita-se a organização dentro do espaço oficial em frente ao palco, aquele onde estão as cadeiras. Fora dessas baias, quem assiste aos concertos está em pé a dançar, como ontem se via ao fim da noite no concerto de Lena d’Água.
Pelo espaço circulam sempre funcionários do partido que estão entregues — como sempre acontece nos eventos do partido — às funções que são necessárias do momento. Uma das que mais se repete é mesmo a de desinfetador. Aqui e ali passa alguém com um spray de álcool-gel a borrifar cadeiras, mesas, bancos corridos, e até dispensadores de gel desinfetante. E em cada esquina e espaço, alguém lembra que é para usar sempre máscara e que o caminho para seguir para lá é o da direita e para cá é o da esquerda. Uma orientação da DGS que, dita assim, não desagradará ao PCP. Ao menos esta.