Durante três dias, a kizomba vai estar em destaque em São Paulo, no Brasil. Entre esta quarta-feira, 6 de setembro, e sexta-feira, dia 8, a Bienal Internacional de Arte de São Paulo recebe o programa cultural Kizomba Design Museum, idealizado pelos artistas curadores angolanos Kalaf Epalanga e Nástio Mosquito, que levam ao Brasil não só o popular género musical, mas toda a cultura que lhe está associada.
A programação vai dividir-se entre a Casa de Francisca, o Edifício Copan e a Galeria Pivô. Haverá concertos e workshops de dança com DJ sets, mas também palestras, um mercado e momentos gastronómicos que ficam a cargo da chef Bel Coelho. Paulo Flores, Manecas Costa, Dino D’Santiago, Branko, Djodje, Ondjaki, Indi Mateta, Kady, Batida, João Reis e Joss Dee são alguns dos artistas que vão participar, além de contarem com a presença especial dos convidados brasileiros Russo Passapusso e Roberto Barreto, do coletivo BaianaSystem.
Em declarações ao Observador, o músico, produtor e escritor Kalaf Epalanga recorda que há algum tempo que tem vindo a escrever sobre o “potencial da kizomba enquanto manifestação cultural que une os PALOP todos”, além de Portugal. “Não só pela diáspora africana em Portugal, mas pelo crescimento que a kizomba teve em Portugal. Os últimos 10 anos são a prova disso, de que foi abraçada pelo público português.”
Kalaf aponta que os ritmos da kizomba são hoje facilmente identificáveis na música pop e rap contemporânea, desde Ana Moura a Plutonio, passando por Dino D’Santiago. A enorme popularidade de diversos artistas mais próximos das raízes da kizomba também é inegável — desde Anselmo Ralph a C4 Pedro, passando por Nelson Freitas, Matias Damásio ou Djodje — e muitos deles têm em Portugal uma grande parte das suas carreiras e vidas pessoais.
“Quando foi anunciada a curadoria da Bienal de São Paulo e o título ‘Coreografias do Impossível’, além de termos a Grada Kilomba como uma das curadoras, senti que era importante estar presente, porque é um momento histórico — o país está a voltar a abrir-se, a cultura está a voltar a ser prioridade”, explica Kalaf Epalanga. Aos poucos, a ideia de estarem presentes com este mote foi crescendo até se tornar num autêntico festival de três dias.
“Fomos muito aos nossos amigos e aos amigos dos nossos amigos para conseguirmos sustentar este gesto numa cidade como São Paulo”, acrescenta Nástio Mosquito. “Precisávamos de pessoas que acreditassem nisto, que o sentissem. Fizemos o programa com os melhores agentes a que tínhamos acesso”, afirma, sublinhando a “perspetiva tridimensional” que pretendiam dar à kizomba.
A kizomba como cultura lusófona internacional (que não tem o devido reconhecimento intelectual)
Com origem nos ritmos angolanos e nas festas de semba e outros géneros tradicionais do país africano, a kizomba nasce no início dos anos 80 como uma versão mais lenta do semba, ideal para balançar e dançar agarrado. Rapidamente se fundiria com a música cabo-verdiana e com o zouk das Antilhas francesas, para dar origem à kizomba moderna que hoje conhecemos, e que tem muitas vidas, mais ou menos pop, mais ou menos dançáveis.
Não demorou muito a ser abraçada em Cabo Verde e a disseminar-se por Lisboa, dando origem a um circuito de discotecas e festas africanas. Kalaf reconhece na kizomba um movimento cultural verdadeiramente lusófono, muito mais abrangente do que o território angolano. “Seria um desperdício separarmos os contributos dos cabo-verdianos, dos guineenses, dos são-tomenses… É melhor olharmos para a kizomba no seu todo”, explica Kalaf. “Era muito importante que a presença cabo-verdiana fosse sentida”, acrescenta Nástio Mosquito. “Aliás, até estamos numa altura em que a kizomba cabo-verdiana está a dar surra na angolana.”
Kalaf diz ainda que grande parte dos discos dos grandes artistas são agora produzidos em Portugal e que, olhando para o passado, foi uma editora como a Vidisco que permitiu que Bonga e Paulo Flores hoje tenham um estatuto de artistas conceituados. “Esse diálogo musical e união não se daria de forma tão frutífera se Lisboa não tivesse sido o palco deste encontro.” E esta não é uma cultura que se fique pelos limites da lusofonia. Como Nástio Mosquito sublinha, existem hoje escolas de kizomba em todas as capitais europeias e em muitas cidades asiáticas e americanas. “Já ouvi rumores de que a maior do mundo fica em Pequim.”
Todo o ecossistema criativo e económico em torno da kizomba estará refletido em São Paulo. A cultura dos DJ, as escolas de dança, as discotecas, os cabeleireiros onde se fazem os penteados e se cortam os cabelos antes de se ir para a festa — tudo isso estará em evidência no Kizomba Design Museum. “Há todo um aparato, um ritual antes de uma festa, e, em termos intelectuais, é extremamente importante explorá-lo. Porque diz muito sobre nós, sobre a vida nos bairros sociais e nas grandes cidades de Portugal ou da Europa”, acrescenta o músico e escritor.
Embora exista um notório “reconhecimento do público”, que enche salas de espetáculos e ouve massivamente os artistas, Kalaf defende que existe uma “resistência nociva” por parte dos “intelectuais que pensam a cultura” em relação à kizomba. O artista faz um paralelismo com o Brasil dos anos 40 e 50, quando o samba — hoje património imaterial do Brasil — era desvalorizado. Kalaf lembra que só quando se fez o filme “Orfeu Negro”, a partir de uma peça de Vinícius de Moraes, é que a perceção começou a mudar; muito graças também a figuras como João Gilberto, no princípio da bossa nova, que continuava a usar o termo samba embora já fizesse uma música mais “estilizada” e “conceptual”.
“Eles não deixaram de reconhecer os contributos do samba nas suas manifestações artísticas. E sinto que ainda resistimos a isso com a kizomba. Entendemos e estudamos pouco este género musical.” Daí considerar “importante” colocar a kizomba nos lugares onde se “produz conhecimento” e se “pensa a arte”.
Kalaf Epalanga aponta que, nos dias que correm, “celebramos” trabalhos como os discos de Ana Moura ou Dino D’Santiago, mas “descuramos” os artistas mais próximos das origens da kizomba e que são igualmente populares. “Uma das coisas que me irritou profundamente foi o facto de o Djodje ter lançado um álbum no mesmo mês que o Dino D’Santiago e o Dino ter toda a imprensa a celebrar aquilo que ele estava a fazer musicalmente, mas com o Djodje foi muito pontual, ou seja, há uma total invisibilidade. Não teve sequer direito a uma crítica negativa. E convém frisar isso: não estou a pedir que a kizomba receba uma palmadinha nas costas, mas o direito à crítica negativa também é um direito do artista.”
Isso reflete-se no mediatismo do presente, mas também quando se fala do passado e se pensa na história. Kalaf argumenta que “não conhecemos a história”, porque não se entrevistou o engenheiro de som que gravou o primeiro disco de Paulo Flores em Lisboa nem quem produziu “Rosa Baila”, de Eduardo Paím, entre tantos outros exemplos. “Não conhecemos a ficha técnica desses trabalhos. Mas, estranhamente, conhecemos a ficha técnica dos discos de jazz. Conhecemos a editora, celebramos as capas, a estética… Não estou a discutir gostos, estou a discutir impacto cultural. E nesse sentido é que achei importante fazermos este trabalho de olharmos para a história da kizomba, não só dos artistas e de quem está em cima do palco, mas de quem está realmente a construir e a edificar este género.”
A kizomba como música de celebração e superação social
O termo “kizomba” literalmente significa “celebração”, “confraternização” ou “encontro” em kimbundu, uma das línguas angolanas. E esta “festa” pode ter um significado político e social de “grande importância”, não se cingindo aos movimentos dos corpos e a um ritmo lento e quente.
“A kizomba nasce de um lugar onde era importante dançar-se e celebrar. É uma parte gigante da vida das pessoas”, explica Nástio Mosquito. “Aquelas pessoas que estavam a ser humilhadas na obra, sem contratos de trabalho nem benefícios nenhuns, é na kizomba que iam buscar o seu sentido enquanto indivíduos. A senhora da limpeza, a quem quase ninguém olha na cara e está há anos a varrer escritórios, casas ou a cuidar dos filhos, lembra-se que tem vida, que é uma pessoa, e que é o centro das suas emoções, quando põe aquela música na sua cozinha e dá umas passadas…”
Kalaf lembra os “bairros de barracas” que existiam em Portugal até aos anos 80 ou 90. “Há muita coisa que aconteceu que precisava de um género musical que de certa forma harmonizasse as muitas crispações… As pessoas precisam de muito mais do que um teto e de um prato de comida. Precisam de afeto, de estímulos intelectuais, de se sentirem vivas. E nesses lugares — onde a cultura ou não chegava ou chegava muito mais lentamente — a kizomba estava lá para suprir essas lacunas.”
Para o artista, é a “manifestação cultural que melhor traduz os anseios, os sonhos e a aspiração da comunidade” que fala português. E que mais tem contribuído para quebrar barreiras sociais e raciais. “A kizomba tem o condão de unir as pessoas, fazê-las esquecer um pouco as amarguras do seu quotidiano.”
“É saber que no fim de semana vais poder curtir, é saber que vais ter a dignidade de pedir a alguém para dançar contigo e lembrares-te de que és uma pessoa. É isto que a kizomba representa”, acrescenta Nástio Mosquito, que realça como a kizomba, enquanto género musical e de dança, tem sido essencial para que exista mobilização social e uma série de empreendedores em diversos países. “Podemos falar disto de um ponto de vista emocional, mas também de um ponto de vista económico. Quantas pessoas é que hoje em Portugal estarão a viver da kizomba? Esta dimensão também é importante.”
Este encontro da kizomba com o Brasil leva a que Kalaf Epalanga se recorde do trabalho que Martinho da Vila, que considera ser “quase um cidadão honorário de Angola”, fez no século passado para aproximar a lusofonia. “Com o Projeto Kalunga, levou 60 artistas do Brasil — como Chico Buarque, Djavan ou Alcione — até Angola. E depois levou o Waldemar Bastos e outros até ao Brasil.” Os “pontos de contacto” não são novos, recorda. Em 1988, Martinho da Vila foi diretor artístico da escola de samba Vila Isabel e ganhou a competição do Carnaval desse ano com um espetáculo intitulado “Kizomba, a Festa da Raça”.
“Como o Brasil é culturalmente muito virado para si mesmo, há uma certa ignorância sobre as manifestações culturais e musicais dos PALOP. Mas acho que o Brasil beneficiaria muito se tivesse uma relação mais estreita com o que se está a produzir hoje no corredor Luanda-Praia-Lisboa. E está melhor, está a acontecer, tenho visto muita coisa a mudar.”