José Mourato destaca-se de todos os outros que, com vista para o mar, miram o vazio. Tem genica, mexe os braços, tira um euro do bolso para dar a quem lhe pede e domina as conversas onde se mete mesmo sem a isso ser chamado. Se, naquelas bandas, são todos indiferentes à política, é por isso mesmo que ele ali está. É mecânico, tem 68 anos, 32 de Estados Unidos, e voltou à sua terra, Rabo de Peixe, para fazer campanha pelo Chega durante as regionais. Há-de voltar aos States em breve para ajudar outro candidato que idolatra: o republicano Donald Trump.
Começou em 1975 a fazer campanhas pelo PSD (“Mota Amaral era um presidente como deve ser”), mas desiludiu-se com o partido das setas. Mais ainda com o “Jaime da junta“, que “é PSD”. Sobre os políticos, generaliza: “O que vale mais votos aqui é quem dá mais blocos, cimento e areias”. Junto a ele tem uma carrinha de nove lugares, com uma engenhoca no teto: altifalantes pregados a uma ripa larga. Artilhou a carrinha para andar pela vila a passar a mensagem, mas antes de mostrar a geringonça, questiona: “Aqui cheira mal, não cheira?”. É um ataque velado ao Jaime.
José Mourato mostra então ao Observador o som que sai das colunas: é uma música feita de propósito — pelo seu amigo e músico Gabriel Costa — para passar pelas ruas de Rabo de Peixe durante a campanha eleitoral das regionais. Tem frases como: “Em Rabo de Peixe, nos últimos anos, nada foi feito a não ser obras mal desenvolvidas”. E, pelo meio, o apelo: “Vota Chega”. Está só “mais ou menos” autorizado pelo partido a usar o nome e também isso pode ter os dias contados.
“Fiquei desiludido por saber que o Chega vai fazer acordo com o Bolieiro. Andei a dizer às pessoas para votarem no Chega e agora o voto vai parar ao PSD?” Zangado, José já não está disposto a fazer mais campanha e, por isso, decidiu retirar do som o apelo ao voto no partido de André Ventura. Mantendo, claro, as críticas aos políticos locais. Enquanto conversa com o Observador, o cantautor da música, Gabriel Costa (que tem vários êxitos no Youtube), passa de carro e pergunta: “Tens aí?” O mecânico vai então à carrinha e entrega a pen de novo ao amigo Gabriel: “Tira lá a parte do voto do Chega”. Gabriel arranca com a promessa: “Vou tratar disso”.
Apesar de ter mandado apagar essa referência (também porque não sabe bem “se é proibido”), José Mourato continua a concordar com André Ventura e José Pacheco em muita coisa — em particular no ataque à subsidiodependência. O PS e o PSD não são para ele uma opção, definindo-os da seguinte forma: “De um lado chove, do outro faz vento”.
Para José Mourato, “o RSI é uma doença“. O mecânico emigrante admite que na sua terra “existem pobres”, mas a maioria “são criados” para sacar fundos à Europa e à República. “Ninguém dá esmola a um tipo que está de gravata. Dão a um tipo que está a pedir a tocar guitarra e isso é quando tem dinheiro para a guitarra”, atira. Mourato denuncia que “há dificuldades aqui em arranjar pessoas para trabalhar porque eles não querem. E quando querem é ir umas horas para o mar, recebem por baixo da mesa, e continuam a receber o RSI”.
José não confia nos políticos e, por isso, prefere votar naqueles que se parecem menos com políticos. “Quem tem de mandar não são os políticos. Porque os políticos tratam primeiro eles, depois os outros. Os empresários é que fazem. Trump fez. Trump não tem necessidade da política. É rico com o que construiu com o trabalho dele. Votei nele e vou voltar a votar.”
Posa para a fotografia, mas pede para não ser enquadrado com o outdoor de José Manuel Bolieiro. “Com este não”, avisa. E vai atirando, ao de leve, ao Jaime da junta e aos políticos em geral. “Cheira mal, aqui não cheira? Eu ainda ajudei a trazer aí umas massas dos noruegueses, mas isto cheira mal como tudo”. Era uma referência ao fundo EFTA, que financiou o saneamento na ilha, mas que se suspeita que muito dinheiro tenha sido desviado por empreiteiros — o que prejudicou o sucesso da obra.
É por ali que vai passar o resto da manhã a dizer mal do que está mal na terra, enquanto critica os “que não fazem nada pelo café”. E aponta o caminho ao Observador: “Vão por ali ver se não tenho razão, vão aos cafés, estão cheios de gente que não quer trabalhar”.
O ataque ao rendimento mínimo e as “mentiras” da Netflix
Uns metros abaixo onde José Mourato faz a sua self-made-campanha, António Cabral, a “trabalhar desde as três da manhã”, partilha parte das teses do mecânico. António, 49 anos, é dono do café São Miguel que, àquela hora (passa pouco do meio-dia), tem menos gente do que símbolos do Benfica nas paredes. Ainda que, pouco depois, quando a máquina fotográfica e o bloco de notas se afastaram, o balcão voltou a estar composto.
Sobre os políticos, não poupa Jaime, embora as eleições que se avizinham sejam regionais e não autárquicas: “Éramos amigos, jogámos à bola juntos, mas o que é certo é que nos últimos oito anos não fez nada”. Admite que tem muitos clientes que “trabalham”, mas também “muitos que não querem trabalhar“. E questiona: “Se lhes dão 600 euros sem fazerem nada, quem é que quer ir trabalhar?”
António Cabral diz que “falta fiscalização” porque “os que não querem trabalhar” dizem que “não há trabalho, mas depois há aí muita falta de pedreiros e serventes“. Também contesta a ideia de que vive na vila mais pobre da Europa. E desenvolve o seu conceito de pobreza muito peculiar: “As crianças têm tudo. Eu nunca fui pobre. Éramos 12 irmãos, 9 rapazes e três raparigas, e nunca faltou pão“.
Para o proprietário do café não há dúvida: é um mito que Rabo de Peixe seja tão pobre como dizem. E contesta, como muitos habitantes, a série da Netflix ali rodada:”Aquilo tem lá muitas mentiras“. “O que é isso de fritar choco com branca [cocaína]? Isso é mentira”. Além disso, alerta, “a maior quantidade apareceu em Capelas, nem sequer foi aqui”. E revela, sem grande preocupação de ser rigoroso no que a afirma: “Ainda há muita dessa aí escondida.”
Durante a manhã e tarde, o Observador cruzou-se com várias pessoas que se limitavam a esperar o tempo passar: numa esquina, num banco, sentados no chão. Uns toxicodependentes, outros desempregados, outros apenas a existir. Mas a vila é de contrastes. Mesmo que não esteja no mapa todos dividem a localidade em duas: os de cima e os de baixo. Os de cima são a classe média, os de baixo os mais pobres.
Os ‘zombies’ e os bancos arrancados contra a droga
Em Rabo de Peixe de cima, as casas são maiores e mais cuidadas. Em Rabo de Peixe de baixo, as casas são mais precárias. Não é uma separação toponímica, mas é ratificada de boca a boca. A divisão faz-se mais ou menos pela Igreja, que é uma espécie de muro invisível. “Nós chamamos à parte de cima o Mónaco dos Açores“, diz um jovem rabo-peixense ao Observador. E completa: “Até há lá uma casa igual à da Barbie, mas em baixo são todas pequeninas”. Perto do Largo da vila, Sónia Travassos, co-proprietária do café com o marido Edmundo, confirma: “É muito diferente a parte de cima e a parte de baixo. Não se misturam. Antigamente, nem passavam de um lado para o outro. Passavam a vida inteira sem ir ao outro lado”.
O café “Edmundo Travassos”, que tem o nome do patriarca da família, fica no Largo da Vila, na zona de cima, apesar de também ali haver sequelas do tráfico de droga. Na praça em frente, além de uma escultura de estética pouco cuidada que ninguém sabe o que representa, não há bancos. “A junta mandou arrancar todos para que não houvesse droga, que eles vinham para aí traficar, mas agora ninguém tem onde se sentar”, lamenta Sónia Travassos.
De cima para baixo, as críticas não fogem muito às apontadas pelo Chega. Sónia revela a preferência partidária: “Eu sou PS, votei sempre PS e vou votar PS, mas há coisas que o André Ventura diz que tem toda a razão.” A proprietária do café queixa-se que “a zona de cima não existe para os governantes, que só dão apoios aos de baixo. Nada para nós, tudo para eles”. E alinha na frase-chavão: “Muitos não querem trabalhar, só receber o rendimento mínimo”.
Crítica da gestão do presidente Jaime Vieira, diz que não há uma única atração em Rabo de Peixe sem ser a “pobreza inventada”. Sónia Travassos diz que, com a série da Netflix sobre a vila, “houve algum impacto”, mas cedo os turistas perceberam que “não há nada para ver”. E conta: “Passavam por aqui a perguntar o que há para ver. E não há nada. Não há um jardim. Não há um museu. Só casas coloridas”. “Vão lá para baixo, vão ver a miséria que é”, aponta.
À medida que se desce para o mar, aumentam ainda mais as pessoas alheadas. Ora encostadas a postes, ora a olhar o vazio, ora a pedir esmola, ora deitados no chão. “São os zombies, como lhes chamamos”, sintetizou um político açoriano ao Observador. Noutras ruas há jovens à porta a ouvir reggaeton no telemóvel só à espera que o dia passe.
Mais abaixo, junto ao porto, os pescadores preparam o almoço. O dia está mau para sair para o mar, mas talvez o dinheiro perdido seja compensado pelo Subsídio do Mau Tempo — que domina boa parte das conversas sobre política e políticos na zona. Em dia que não se saiu de barco, na roulote joga-se à lerpa e gritam todos uns com outros muito alto. Nas colunas ouve-se o som de catamarans a baterem no mar, numa sequência de vídeos do Youtube que mostram barcos a entrar em mares picados. O mar está sempre ali.
O Leonardo da Gilda, a família RSI e os fãs de César
Ali perto está Leonardo Rebelo, 32 anos, dono do barco “Leonardo da Gilda”. O nome da embarcação é uma homenagem ao pai, também Leonardo, e à avó, a própria Gilda. Leonardo sempre votou à direita. Sobre os políticos não tem uma visão muito diferente dos outros. Aponta para o bloco do jornalista do Observador e diz: “Os políticos vêm fazer muitas promessas, escrevem aí no papel e depois não fazem nada.” O seu maior problema está identificado: “Não me deixam colocar um motor acima de 60 Kw, dizem que é uma regra da Europa. E isso dificulta-me muito a pesca. Com velocidade, tudo é melhor”.
Sobre os jovens da sua idade não tem dúvidas sobre onde vão, maioritariamente, votar. “A juventude aí está toda pelo Chega”. E, apesar de votar PSD, Leonardo elogia Ventura: “Muito do que ele diz é verdade. A malta não quer trabalhar. Então os que não trabalham têm livros para o filhos de graça e eu tenho de os pagar?” Leonardo, que é dono da embarcação, pesca à linha de mão e especializou-se em apanhar lulas. Chega a tirar 400 euros por semana, o que pode chegar aos 1600 por mês. Diz que ali todos ganham o suficiente e que é “uma batata [treta] Rabo de Peixe ser uma das zonas mais pobres; há aí muito dinheiro”.
Não muito longe dali, no bairro do Barreiro, Susana Estrela, 46 anos, está a varrer a soleira da porta. Lá em casa são três e recebem todos o rendimento mínimo, o seu, o do marido e o de filho com 13 anos. O marido não pode trabalhar (“é doente”) e o filho é menor. Não sabe se vai votar, mas se votar é no PS: “O Vasco Cordeiro fez muito por nós”. A irmã retifica: “O Carlos César é que fez”. E ambas, ainda juntam mais um nome, que lhes sai como um piparote: “Gosto do Pedro Nuno Santos”.
A política, para Susana, mede-se por o que os “políticos dão“. Para ela o que “está agora, não deu nada”. Pelo menos a ela: “Ali em baixo à vizinha deu uma máquina de lavar“. Já os azulejos que tem em casa foram dados por políticos, mas “já há muito tempo”. E não lhe resolveram os problemas: “A casa tem muita, muita humidade”.
Na vila todos falam de uma alegadas “requisições”, confirmadas pelo Observador por cerca de uma dezena de habitantes. Tratam-se de pedidos — normalmente de areia, tintas ou azulejaria — que são alegadamente feitos antes das eleições e só cedidos pela junta de freguesia depois do escrutínio acontecer. O alvo de muitas destas críticas (“ele dá tintas”; “ele dá areias”) é o presidente da junta, Jaime Vieira — que o Observador tentou, sem êxito, contactar.
Continuando pelo bairro do Barreiro, que é um bairro social e “o mais pobre da zona pobre” de Rabo de Peixe, juntam-se à esquina vários homens na conversa. Não têm muito a dizer sobre política a não ser frases soltas, mas nem por isso menos assertivas. Carlos Cabral, 58 anos, reformado da pesca, diz que “o que melhor governou os Açores foi Carlos César”. José Vieira, 60 anos, também retirado do mar, concorda: “Como ele não há ninguém”. E arrisca na análise: “Ele ainda está na política, mas é para Presidente de Portugal”. José Cabral, irmão de Carlos, não fala muito, mas faz peito para mostrar a t-shirt: “Vasco Cordeiro a presidente”.
De blusão preto, muito interventivo, está um antigo trabalhador da Marques — uma grande construtora dos Açores — que queixa-se de receber apenas 316 euros (“e antes era só 298”, refere). Embora não se queira identificar, explica que teve “câncer” e alinha no discurso que parece comum a toda a vila sobre os políticos: “Eles prometem muita coisa e não fazem nada”.
Foi também em Rabo de Peixe que José Manuel Bolieiro começou a campanha a 21 de janeiro. Quem passasse pela arruada até podia pensar que, nas casas, havia muitos entusiastas sociais-democratas, mas o Observador confirmou com moradores que, no dia anterior, o presidente da junta, Jaime Vieira, andou a distribuir bandeiras porta-a-porta pela casas por onde Bolieiro ia passar. Os políticos vão passando por ali, mas a indiferença geral pela política é grande. José Mourato, vindo diretamente dos EUA, por lá continua a perguntar na zona de baixo: “Cheira mal, não cheira?” Aos moradores que ali vivem, cheira que nada vai mudar com as eleições.