Chega antes da hora, olha com atenção para todos os pormenores dos novos estúdios da Rádio Observador que lhe vão sendo explicados, não demora a perceber como as coisas funcionam – e já se entende bem com o botão que liga e desliga o microfone que tem à frente na mesa. Depois de uma passagem pelos EAU, onde teve um primeiro contacto com a nova equipa da UAE Team Emirates, João Almeida regressou a Portugal e está numa espécie de pré-temporada com treinos e alimentação monitorizados ao detalhe já a olhar para um ano de 2022 onde promete ser uma das principais figuras do pelotão internacional onde passará a ter a Deceuninck Quick-Step como adversária. E os objetivos não são pequenos no novo ciclo que vai agora iniciar.
[Ouça aqui a entrevista de João Almeida no “Nem tudo o que vai à rede é bola” da Rádio Observador]
Depois do surpreendente quarto lugar no Giro de 2020, o corredor português de 23 anos confirmou todas as melhores expetativas no presente ano, que começou logo com aquele que ficou como o primeiro pódio numa prova do World Tour. Seguiram-se os sextos lugares na Tirreno-Adriático e no Giro, o título nacional no contrarrelógio ou os triunfos na Volta à Polónia e na Volta ao Luxemburgo, entre outros resultados relevantes como o segundo lugar no Giro dell’Emilia ou a terceira posição na Milão-Turim além do top 10 na prova de contrarrelógio dos Europeus e da 13.ª posição na prova de estrada dos Jogos de Tóquio. Agora, em entrevista no programa “Nem tudo o que vai à rede é bola” da Rádio Observador, João Almeida coloca o foco num pódio numa grande Volta “mesmo que não seja agora” e na vitória num dos Monumentos, com destaque para a Liège-Bastogne-Liège à frente da Flandres, da Milão-São Remo, da Paris-Roubaix e da Lombardia.
Fizeste uma época em que acabaste pela primeira vez em pódios de provas do World Tour nos Emirados, ganhaste a Volta à Polónia e a Volta ao Luxemburgo, fizeste sexto no Giro e na Tirreno-Adriático. Era o que pensavas ou ainda querias mais?
Foi um excelente ano, fiquei muito satisfeito. Finalmente tive a minha primeira vitória como profissional e até tive mais do que uma, tive duas. Discuti todas as corridas em que estive presente, desde o início da época até ao final, e estou muito orgulhoso e satisfeito com a época que tive. Acho que não podia pedir mais.
Esta época também fica marcada por ser a última na Deceuninck-Quick-Step, que voltou em 2021 a ter o Remco Evenepoel. Como foi gerir aqueles meses em que tinhas tantas equipas interessadas e o que pesou mais na escolha pela Team Emirates, que tem como líder o Tadej Pogacar?
Felizmente, tive ofertas de quase todas as equipas, o que é bom sinal. Não foi fácil fazer uma escolha porque as equipas são todas muito boas e eram ofertas bastante boas mas tentei focar-me no que eles me davam, que era ser líder numa grande volta e oportunidades. Encontrei isso na Team Emirates e acho que fiz a melhor escolha que podia ter feito.
E eram muitos os números a estar em causa? O interesse desportivo percebia-se, principalmente da Bora-Hansgrohe e da Team Emirates, mas não te assustaste quando começaste a ver tantos números?
Sim, um pouco. Também depende sempre do valor de mercado da altura e na altura havia um grande hype comigo. Os números eram de facto extraordinários mas nem escolhi a oferta maior, porque os números já são tão grandes que nem faz assim tanta diferença. Tentei focar-me na parte desportiva. Foi isso que fiz e acho que foi a melhor opção.
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Quando naquela etapa do Giro deste ano, logo a abrir depois do contrarrelógio, vês a equipa a trabalhar para ser o Remco Evenepoel a bonificar sentiste que as coisas poderiam não ser como estavas à espera? A parte final, sobretudo na montanha, foi a uma resposta a esse trabalho para a bonificação?
Não estão relacionados. A parte da bonificação claro que foi algo impulsivo, na altura, porque não era suposto haver bonificações ali. E também era um segundo ou dois segundos, não ia fazer diferença. E depois na última semana, basicamente, era eu o líder porque o Remco [Evenepoel] já não estava presente em corrida. Trabalhei muito para aquilo e esforcei-me muito para aquilo e não ia ficar de braços cruzados. Dei tudo, todos os dias, para conseguir fazer o que queria fazer.
E qual foi a importância da última semana, onde acabas nos seis primeiros em cinco das últimas seis etapas, para mostrar a evolução que tiveste de 2020 para 2021 sobretudo na forma com que vais gerindo ataques e contra-ataques a subir?
Queria mostrar a minha maturidade e queria mostrar que me tinha esforçado imenso para aquilo e para todas as corridas. Que estava em forma, que tenho evoluído em todos os aspetos. Era isso que queria provar. Quando estou em corrida é quase como se fosse outra pessoa, outro João, e é em corrida que gosto de estar, é totalmente diferente.
O que é ser “outro João” em corrida?
Basicamente, é o meu mindset. Quando estou ali a chegar aos dias de corrida ou mesmo já em corrida ativo o meu race mode. Não sei como explicar… Sou totalmente diferente em corrida, o sofrimento, tudo, fico… Não diria uma besta mas é mesmo uma questão de ir até ao limite do corpo e desafiar esse limite.
Em termos de ranking, acabaste no nono lugar do ranking UCI em termos de pontos e em 4.º olhando apenas para as provas por etapas, atrás do Pogacar, do Roglic e do Bernal. O que é que isto significa em termos pessoais e de carreira e que impacto é que pode ter na abordagem a provas, como o Giro?
Acho que é um bom indicativo, quer dizer que fui muito regular no ano todo e que marquei pontos em todas as corridas. Estar em nono, ou nos dez primeiros do ranking mundial, acho que é muito positivo, acho que não há assim tantos portugueses que tenham conseguido fazer isso. Ter 23 anos e conseguir estar com os melhores, ter a regularidade que muitos veteranos já têm, dá-me muita motivação para o futuro. Quero trabalhar mais e esforçar-me cada vez mais porque acho que há bastante mais por onde evoluir.
E o que é que um ciclista pensa quando está lá em cima, quando está a subir a montanha, quando praticamente já não tem forças? O que é que dá força para ainda existir aquele bocadinho de explosão?
Das duas uma: ou é apanhar os que estão à frente ou é não deixar que os de trás nos apanhem. E depois é uma luta mental comigo próprio para não desistir, conseguir dar mais e tentar sempre continuar. Ir quilómetro a quilómetro. São subidas muito longas e grandes. E lindas, no fundo, são subidas de que gosto bastante…
Mas dá para ver a paisagem?
Não, não dá tempo. Só olho para o ciclocomputador e para a estrada.
O traçado do Giro de 2022 já é conhecido, com ainda mais montanha dura e menos quilómetros de contrarrelógio, onde podias cravar mais segundos de vantagem sobre alguns dos mais diretos rivais. Vais ser obrigado a mexer no calendário para aparecer mais fresco e melhor ainda nessa altura?
Eu estava à espera de três contrarrelógios e não só dois. E são dois não muito longos, um acho que tem nove quilómetros e o outro tem 18. Ou seja, a minha principal vantagem, que é o contrarrelógio, não vai estar 200% do meu lado. Mas mesmo assim, com a evolução que tenho feito em alta montanha, e também com o que me tenho esforçado, acho que no fundo a corrida é sempre decidida na montanha. O contrarrelógio afina ali um bocado as coisas, um lugar ou dois lugares, mas acho que no geral, se eu estiver em forma, não vai ser isso a tirar-me um lugar no pódio. Mas já estou a pôr a barreira muito alta! Mas claro que me vou esforçar e dar o meu melhor e ver como corre.
E chegar ao pódio?
O pódio é um objetivo, um dia. Não quer dizer que seja já no próximo ano, espero ter uma longa carreira pela frente. Mas fazer um pódio numa Grande Volta é um objetivo que tenho e espero alcançá-lo.
E não pensas que, em 2020 e quando até conseguiste ser quarto, com outra equipa e com mais ajuda no Stelvio já podias ter conseguido esse pódio no Giro?
Eu penso que não. A esse nível já não há colegas de equipa, já é quase cada um por si. É uma questão de tática da equipa. Há sempre uma equipa que está em vantagem, nunca dá para estarmos todos no mesmo nível, mas acho que não conseguíamos ter feito melhor. Toda a equipa se esforçou a 100% por mim, todos deram o que tinham por mim e estou muito grato por tudo o que fizeram por mim.
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E já conheceste os teus novos colegas na Team Emirates? Principalmente aqueles que te vão acompanhar de mais de perto no Giro.
Sim, nós tivemos um estágio agora nos Emirados Árabes Unidos, este mês, e foi bastante positivo. Fizemos atividades juntos, estivemos todos juntos, conhecemo-nos, passámos tempo juntos para desenvolvermos relações. Há muita gente que não conhecia, mesmo do staff, e é bom ter sempre uma boa relação. Em corrida é tudo diferente, as pessoas já têm de saber o que gosto e o que não gosto, os meus hábitos. Pouco a pouco, vamos estruturando essa relação e obviamente que, com a equipa que for ao Giro, vamos ter estágios e vamos estar mais tempo juntos. É óbvio que isso vai fazer a diferença em corrida.
Além do Giro, tens mais algum objetivo pessoal que queiras alcançar em 2022 ou vês neste primeiro ano na Team Emirates uma espécie de ano de adaptação?
O Giro é o principal objetivo, é aí que quero estar no meu pico de forma. Mas as corridas a que eu for são corridas em que quero estar na discussão e na frente, não vou simplesmente para ganhar ritmo. Vou trabalhar duro para estar bem em todas as corridas mas de modo a que o meu pico de forma seja no Giro de Itália.
Na primeira corrida do ano, o UAE Tour, o pódio já é pequenino porque no ano passado já lá chegaste. Mas é uma corrida já para ti ou é para o Pogacar fazer a diferença outra vez?
Estamos a correr em casa, a nossa equipa é de lá. Vamos levar uma equipa muito forte para discutir a corrida. Neste caso, o nosso objetivo é vencer e que ganhe o melhor. Tenho a certeza de que ele é mais forte do que eu. Terei todo o gosto em trabalhar para ele e ajudá-lo a alcançar o seu objetivo. Nós somos uma equipa e o objetivo da equipa está sempre em primeiro lugar, nunca vou colocar os meus objetivos pessoais à frente do nosso grande objetivo.
É diferente ter um líder de equipa tão novo, quase da tua idade? Havia muito aquele figura do líder mais velho e consagrado e aqui é alguém que já ganhou também dois Tours mas que é da tua idade…
Até facilita porque somos do mesmo ano, temos a mesma idade e com isso temos mais ou menos as mesmas ideias, o mesmo mindset, estamos na mesma fase da vida apesar de já ter ganho duas grandes Voltas… Mas facilita sempre, bastante, e mostra que o ciclismo moderno está muito evoluído e com os jovens cada vez mais fortes e a darem mais cartas.
Alguma vez sentiste esse “complexo” de seres ainda muito novo e de estares ao lado de pessoas muito mais velhas do que tu?
Gosto bastante de sentir isso porque no passado, nas equipas onde eu estive como a Deceuninck Quick-Step, as pessoas assim gostam de nos ajudar, de transmitir a mensagem deles, a experiência deles… Às vezes não precisamos de aprender com os nossos erros mas sim com os erros dos outros e tentam passagem essa mensagem de modo a que possamos ser melhores ciclistas.
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Na semana passada deste uma entrevista a um meio internacional onde falavas que um dos grandes segredos para o sucesso era o equilíbrio entre as grandes corridas e a vida normal. Como é que manténs esse equilíbrio e o que gostas de fazer nessa vida?
Passa tudo muito pela parte mental, nós como atletas de alto rendimento sabemos que é duro mentalmente e manter o foco a época toda às vezes não é possível. Quando não temos corridas e podemos relaxar um pouco, é importante estar com os amigos, jantar com os amigos, fazer as coisas normais que as pessoas fazem mas sem prejudicar nada…
Mas ainda é a mesma coisa do que era antes de 2020 e daquele quarto lugar no Giro?
Sim, se calhar agora já vou a um restaurante e já me pedem uma fotografia…
E lidas bem com isso?
Sim, sim… As pessoas respeitam também bastante o meu espaço e não sou o Ronaldo, não são 100 pessoas a correr por uma foto… É gratificante ver as pessoas a apreciarem o meu trabalho e os meus resultados e a conhecerem-me na rua…
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Mas ali sobretudo durante o Giro de 2020 o teu nome acabou por saltar para as capas e para destaque em todos os meios nacionais. Naquela altura tiveste noção do impacto?
Os meus pais iam dizendo, os meus amigos também iam mandando fotos e falando das coisas mas não tinha a mínima noção de como era a realidade. Só quando cheguei a Portugal e vi a loucura, que já apanhei numa fase final, é que percebi. As pessoas apoiaram-me mesmo muito, foi impressionante. Ali na minha zona, na minha aldeia toda a gente me conhece e receberam-me quase como se fosse o Ronaldo… É muito gratificante ter pessoas assim na minha vida.
E tudo conseguido numa fase marcada pela pandemia, em que as provas e os calendários estavam muito condicionados pela Covid-19. Como era gerir tudo isso, todas as regras “anormais” que existiam?
Se tivéssemos um teste positivo tínhamos logo de ficar em quarentena, logo eram quase duas semanas sem treinar e a forma perde-se logo. Em corrida, se houver um teste positivo também vamos logo para casa, não acabamos a corrida, e todas as pessoas que estiveram em contacto connosco não poderão fazer o seu trabalho, seja corrida ou staff… Não estávamos em causa só nós, era toda a equipa, e tínhamos de ter cuidado com isso porque até mesmo se não tivéssemos sintomas bastava um teste…
Mas era algo que condicionava, uma pressão adicional?
Ficava um pouco esquecido no sentido em que a nossa rotina é treinar e descansar, se tivermos a nossa bolha fechada e sem contactos à partida não haveria grande stress. Mas às vezes pensávamos nisso, no Giro que são três semanas havia testes diários, semanais, e uma equipa com dois positivos tinha de abandonar a Volta, por isso é que havia sempre aquele nervosismo na altura do resultados dos testes…
Este foi também um ano marcado pela estreia nos Jogos Olímpicos, com um 13.º lugar na prova de estrada e um 16.º no contrarrelógio. Foi um reflexo da competitividade que havia ou as próprias condições de Tóquio como a humidade também pesaram?
A nossa corrida foi feita num dos poucos sítios onde havia menos humidade, no centro de Tóquio tinha condições mais extremas. Preparei-me para situações mais extremas, fiz uma aclimatação numa cama de calor e humidade em Coimbra e se existissem condições mais extremas até me podia ter favorecido um pouco… A competitividade foi o fator mais decisivo, todos os que tinham feito o Tour estavam na frente e isso notou-se. Mas fiquei satisfeito com a minha corrida, foi depois do Giro numa época que já ia longa para mim, tentei-me manter na melhor forma possível e gostei do resultado na prova de estrada. No contrarrelógio não foi como idealizava mas todos temos dias menos bons, desde que não tenha quedas e lesões isso é o mais importante…
O facto de os próximos Jogos serem em Paris, com muitos portugueses também, ajuda a reforçar a ambição de chegar a uma medalha olímpica como o Sérgio Paulinho?
É o sonho de qualquer atleta, é uma corrida que tem sempre um outro sabor, também estamos a correr pela nossa Seleção e um resultado ali fica para a história do país e para a história do desporto. Gostaria muito mas no fundo são 200 atletas que vão com o foco na medalha e a competitividade é muito alta.
Tens sido protagonista de um período particularmente conseguido no ciclismo, não só na estrada mas também na pista com o Rúben Guerreiro, os irmãos Oliveira, o Iuri Leitão, a Maria Martins… Como é que se justifica esta progressão da modalidade? É um pouco a evolução na continuidade de um desporto que sempre teve tradição em Portugal?
Sim, é isso. Felizmente conheço-os a todos, somos quase todos da mesma fornada, são todos amigos e é um reflexo da evolução e da aposta da Federação de ciclismo com as condições que tem. Com pouco não se pode fazer muito mas acho que temos feito mesmo muito e podemos evoluir ainda mais se a aposta for maior, com mais resultados e com mais jovens a aparecer.
O ciclismo de pista nunca te puxou para continuares?
Fazia pista no passado por diversão, gostava e gosto de fazer, mas a época de estrada já é longa o suficiente, já é muito dura, e fazer as duas seria demasiado duro e acabava por me prejudicar depois na estrada.
Como é que alguém quando é mais novo ganha este gosto pelo ciclismo?
Sempre fiz muitos desportos quando era mais novo. Experimentei natação, futebol, mesmo na escola atletismo… Gostava de fazer tudo, sempre fui muito competitivo, sempre andei de bicicleta também e um dia experimentei uma corrida de BTT. Comecei a gostar, depois experimentei estrada e ainda gostei mais e aquele bichinho da competição desenvolveu-se ali, treinava mais para ganhar mas sempre com o mindset de me divertir, era isso que gostava de fazer.
E tiveste a preocupação do plano B ou estás a fazer all in na carreira?
Sempre tive um plano B que era a escola e os estudos. Sempre tive boas notas, no secundário segui Ciências porque gostava e era mais abrangente, se houvesse algum azar tinha sempre o plano B. Ainda experimentei a faculdade, estive lá um semestre mas decidi fazer o all in no ciclismo porque tive a oportunidade quase única de ir para o estrangeiro e para voltar para faculdade um dia basta fazer uns testes, no ciclismo é quase uma oportunidade numa vida que decidi aproveitar e estou aqui hoje.
O que é que ainda te falta conseguir, além desse triunfo numa grande Volta?
Claro que ainda sou muito novo, que ambiciono a muito, mas um Monumento no ciclismo seria também para a história, uma Liège ou uma Lombardia, uma corrida dessas de um dia que seria também muito importante…