Lucros extra? Mas quais lucros extra? Foi esta a reação do setor da distribuição ao anúncio que o primeiro-ministro fez no primeiro dia de debate do Orçamento do Estado. Além de uma taxa sobre os lucros inesperados das empresas de energia, vai avançar também uma windfall tax sobre os lucros das empresas de distribuição. Se na energia a medida vai apanhar a Galp, na distribuição as visadas principais serão a Sonae, dona do Continente, e a Jerónimo Martins, que controla o Pingo Doce. A medida apanhou o setor de surpresa. Até porque não há muitos países a fazê-lo. Na verdade, quase nenhuns.
“É uma ideia interessante. Nunca vi uma taxa sobre lucros extraordinários ser aplicada ao setor da distribuição. O que vimos foi a recomendação da Comissão Europeia para ser aplicada uma taxa sobre os lucros excessivos no setor da energia, nomeadamente às empresas de gás e combustíveis fósseis, que terá de ser implementada até ao final do ano. Há algumas medidas já em curso neste sentido, mas no setor da energia. Na distribuição, não temos conhecimento. Portugal será o primeiro”. A surpresa é manifestada ao Observador por Katharina Kubik, partner da Freshfields Bruckhaus Deringer, uma sociedade de advogados com sede em Londres, que tem estudado com atenção o tema dos lucros caídos do céu.
A questão é tão complexa que nem os especialistas ouvidos pelo Observador são unânimes no que toca à aplicação desta taxa noutras geografias. “Nunca ouvi falar sobre esta taxa para o setor da distribuição”, corrobora Cristina Enache, economista e secretária-geral da World Taxpayers Association. Também ela se tem dedicado ao tema nos últimos meses, desde que a taxa passou a estar nas bocas do mundo, devido aos lucros inesperados que as empresas, sobretudo de energia, começaram a registar na sequência do aumento do preço do gás.
Governo vai avançar com taxa sobre lucros excessivos para setor da distribuição
“Outros países já implementaram a windfall tax, mas em muitos casos não falamos exatamente de windfall taxes. Esta é uma taxa aplicável de uma só vez e tem de incidir sobre os lucros extraordinários. Em Espanha, por exemplo, aplicaram a taxa às receitas das empresas de energia, nem sequer foi aos lucros. Não se pode considerar uma windfall tax“, defende a especialista.
Por cá, a perceção dos especialistas ouvidos pelo Observador é diferente. A taxa é rara, sim. Mas não inédita. “No que respeita, em específico ao setor de retalho e distribuição, surge o caso da Hungria que, em junho deste ano, publicou um decreto que determinou a aplicação de taxas sobre lucros extraordinários sobre os setores da banca, seguros, energia, telecomunicações, companhias aéreas, setor farmacêutico, e comércio retalhista”, destacam Nuno de Oliveira Garcia, sócio coordenador da área fiscal da Gómez-Acebo & Pombo em Portugal, e Maria Mourão Lima Ferreira, advogada da área fiscal da mesma sociedade.
“Assim, Portugal, não sendo o primeiro país onde surge a questão de tributação dos ‘lucros excessivos’ dos setor do retalho e distribuição, é certamente um dos pioneiros neste âmbito“, asseguram os especialistas.
Também Joana Ribeiro Pacheco, da RSN Advogados, destaca que há países que “têm ido mais longe e têm abrangido outros setores, além do setor energético”, dando também o exemplo da Hungria para a distribuição. Outros, como a República Checa ou Espanha, alargaram a sua aplicação ao setor bancário.
Apesar de não ser caso único, “não deixa de ser uma surpresa“, considera a especialista, “que numa altura em que se discute a subida explosiva da inflação no espaço europeu e se antecipa uma grave crise económica, seja intenção do Governo português alargar a tributação dos lucros extraordinários para este setor”.
A recomendação da Comissão Europeia visava apenas o setor energético, sublinham os especialistas. “Mais: o setor da distribuição é já fortemente tributado, tendo vindo a tentar fazer face ao aumento dos custos de produção, e tendo assumidamente margens baixas”. Assim, conclui Joana Ribeiro Pacheco, “resta esperar que tal medida não venha a ter consequências negativas para as famílias, nomeadamente pelo reflexo nos aumentos generalizados dos preços”. Ainda não se sabem detalhes sobre o desenho da medida, nomeadamente se terá, e quais serão, os mecanismos de controlo em relação ao possível reflexo da taxa nos preços para os consumidores.
Afinal, o que são lucros extraordinários?
A discussão começa, precisamente, na definição do que é um lucro extraordinário. Para o setor da energia, a Comissão Europeia propôs uma “contribuição temporária de solidariedade sobre os lucros excedentários gerados pelas atividades nos setores do petróleo, gás, carvão e refinaria” de 33%, a aplicar aos ganhos que em 2022 ficaram 20% acima da média dos três anos anteriores.
O que são impostos sobre lucros caídos do céu? Quem os está a cobrar? E funcionam?
Mas há outros entendimentos. A recente proposta da República Checa prevê cobrar 60% dos ganhos que no período de 2023 a 2025 ficarem 20% acima dos registados nos quatro anos anteriores. E quer fazê-lo na energia e na banca. Em Itália, é cobrado 25% do valor acrescentado aos ganhos entre 1 de outubro de 2021 e 30 de abril de 2022 face aos valores registados entre 1 de outubro de 2020 e 30 de abril de 2021.
Há um mundo de possibilidades, reconhecem os especialistas. Em última instância, a decisão é política. “É muito difícil de definir. É uma decisão política. Vai depender do que é considerado excessivo, qual é a base. É sempre preciso um exemplo comparável. É preciso definir o que são lucros normais e o que vai além disso”, explica Katharina Kubik.
“O que é um lucro extraordinário? Não é claro, em última análise é uma decisão política. Depende do setor e das particularidades da empresa. Uma empresa de energia pode ter lucros nas eólicas e não ter noutro tipo de produção. É muito complicado de definir, não há uma definição clara”, corrobora Cristina Enache.
Esta quarta-feira, a Jerónimo Martins apresentou os resultados dos primeiros nove meses de 2022, que revelaram uma subida dos lucros de quase 30% para 419 milhões de euros. Confrontada por analistas sobre esta subida, e quais as perspetivas em relação à aplicação da nova taxa, a administradora financeira da dona do Pingo Doce rejeitou que a empresa esteja a ter lucros excessivos.
“Em Portugal, temos as maiores taxas aplicáveis aos lucros das empresas, e não sabemos como é que a lei vai incidir sobre os ditos lucros não esperados. Infelizmente não vemos, em Portugal, um aumento dos lucros que nos permita dizer que estamos a ter lucros extraordinários ou excecionais. Mas temos de esperar para ver qual será o impacto da lei, dependerá do desenho da lei que for publicada”, afirmou Ana Luísa Virgínia. Grande parte dos lucros da Jerónimo Martins, que tem negócios na Polónia e Colômbia, não são registados em Portugal, argumenta-se.
A empresa justificou os resultados com o facto de ter absorvido “parte” dos aumentos nos preços de compra dos produtos aos fornecedores, que aconteceram por causa da inflação, tentando criar “oportunidades de poupança para os clientes” no âmbito de programas de fidelização. Esta estratégia “permitiu um sólido crescimento das vendas e, consequentemente, a proteção da rentabilidade”.
Também a associação do setor não quer ouvir falar de possíveis lucros em excesso. “Ficámos espantados com a declaração do primeiro-ministro, que resolve anunciar uma medida que não foi discutida com ninguém e que não tem racional lógico e factual em pleno debate do orçamento”, aponta Gonçalo Lobo Xavier, diretor-geral da Associação Portuguesa de Empresas de Distribuição, ao Observador.
“Foi surpreendente, tanto mais porque não sabemos a que o primeiro-ministro se refere quando fala em lucros extraordinários. Nós vimos a presidente da Comissão Europeia a fazer uma recomendação para o uso da windfall tax num setor da economia que teve factos extraordinários”, diz, referindo-se à energia. “Uma commodity que teve uma flutuação de preços e isso contaminou o setor energético na sua totalidade. Mas o nosso setor não teve nenhum facto extraordinário. Os nossos resultados servem para crescer, para investir”, ressalva. O Observador contactou a Jerónimo Martins, que não quis fazer comentários, além dos feitos aos analistas. Também a Sonae não se pronunciou. A dona do Continente apresenta os resultados até setembro no próximo dia 9 de novembro.
O porta-voz da APED volta a ressalvar que Portugal já tem “a maior carga fiscal sobre os resultados das empresas que há na Europa”, lembrando que estas grandes empresas já pagam a derrama estadual, que incide sobre os lucros. “Não sabemos que fórmula é que o Governo terá na cabeça para esta questão”. Tal como a Jerónimo Martins, a APED afirma que o aumento dos custos de produção sentido pelo setor não está a ser passado para os consumidores. “O setor tem margens muito pequenas, é um negócio de volume”.
Os especialistas também têm dúvidas sobre a eficácia da aplicação desta taxa. “Na Holanda, as empresas anunciaram que não vão fazer investimentos se essa taxa for aplicada. É difícil aplicar uma taxa destas sem distorcer a economia”, considera Cristina Enache.
“Os governos estão numa situação difícil porque nos últimos anos gastaram muito dinheiro em medidas relacionadas com a Covid-19, e havia a noção que teriam de compensar, e a forma mais fácil é criar novos impostos. Taxar os lucros extraordinários é sair da caixa. Atingir o objetivo vai depender do que será feito com o dinheiro gerado por estas taxas. Se é uma medida para mitigar a elevada inflação, a ideia deveria ser ajudar as famílias e arranjar uma forma de redistribuir este dinheiro. É desafiante mas é uma ideia interessante. Vamos ver se resulta”, diz Katharina Kubik.
Nem só os especialistas questionam a windfall tax. Em agosto, o ministro francês da Economia e Finanças, Bruno Le Maire, foi claro: “Eu não sei o que é um lucro excessivo. Taxar mais em França significa produzir menos em França”. E França ainda não avançou para a medida.
Porque resiste tanto o Governo a criar uma taxa sobre os lucros inesperados
Mas os Governos mudam de ideias. Foi o caso do português, que após o ministro da Economia ter colocado a ideia em cima da mesa, em abril, foi sempre rejeitando a sua aplicação. Até ontem. É “o conjunto das empresas que não são só do setor energético, mas são também do setor da distribuição, que devem pagar aqueles lucros que estão a ter injustificadamente por via desta crise da inflação”, disse o primeiro-ministro, António Costa. Em 2023, os “lucros caídos do céu” vão ter quem os apanhe.
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