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No último ano e meio, entre abril de 2023 e novembro deste ano, a Universidade Nova de Lisboa (UNL), uma das maiores instituições de ensino universitário do país, recebeu 29 denúncias de assédio. Desse conjunto, cinco denúncias ainda “estão a ser analisadas e investigadas“, avança a universidade ao Observador, garantindo que, apesar de os casos de assédio no mundo da música estarem agora a vir a público, nenhuma das queixas registadas envolve professores ou alunos de área de Ciências Musicais. O mesmo acontece nas restantes universidades públicas com ensino de Música: todas têm canais de denúncia, mas nenhuma recebeu queixas sobre cursos desta área.
Depois de a DJ Liliana Cunha ter acusado publicamente João Pedro Coelho — então professor no Hot Clube Portugal, uma das principais escolas de jazz do país — de violação, o Observador contactou todas as universidades públicas com formação na área de Música sobre eventuais denúncias que tivessem sido apresentadas internamente. Dessa lista faz parte a Universidade Nova de Lisboa, que oferece o curso de Ciências Musicais. Em resposta ao Observador, a UNL esclarece que “não foi recebida qualquer denúncia relativa ao curso de Ciências Musicais, da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas”.
Mas o cenário é diferente no que diz respeito a outros cursos da instituição. “Até à presente data”, refere a Nova na resposta por escrito que enviou ao Observador, no início de dezembro, “foram recebidas 29 denúncias, com as seguintes características: 17 de assédio moral, 5 de assédio sexual, 1 simultaneamente de assédio moral e sexual e 6 de discriminação“. Segundo a UNL, todas as 29 denúncias recebidas “foram analisadas, sendo que 21 foram arquivadas, 3 justificaram a abertura de processo/inquérito disciplinar e as restantes [5] continuam a ser analisadas e investigadas”.
O Observador questionou a instituição sobre o teor das denúncias que deram lugar à abertura de processo/inquérito disciplinar e, também, sobre as denúncias que ainda estão a ser analisadas — nomeadamente para perceber se estariam em causa situações de assédio sexual e/ou assédio moral. Mas a Nova recusou-se a revelar essa informação, justificando-se com o argumento de que isso poria em causa a “confidencialidade” dos processos.
Do total de 29 denúncias que a UNL recebeu, 72,4% foram arquivadas. Também por “questões de confidencialidade”, a instituição de ensino não adianta “os fundamentos” para que essa decisão tivesse sido tomada, “assim como o conteúdo e o tipo das mesmas”. Mas no geral, diz a UNL, o arquivamento terá resultado de alguns possíveis fatores: estavam em causa “denúncias consideradas infundadas após investigação“; foi considerado que havia “insuficiência de dados para prosseguir, mesmo após interpelações aos/às denunciantes para obtenção de informações adicionais”; ou, nalguns casos, o processo acabou arquivado por “desistência expressa dos/das denunciantes”.
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Quando a universidade comunica ao autor da queixa que decidiu arquivar o caso, o autor da denúncia “tem o direito de se pronunciar sobre” a decisão. Caso o arquivamento se mantenha, “é possível recorrer da decisão”, mas apenas “junto dos tribunais judiciais”.
UNL tem três meses para responder às queixas
A Nova de Lisboa começou a receber e analisar queixas no dia 21 de abril de 2023, quando ficou “em pleno funcionamento o Portal de Denúncias, transversal a toda a instituição e disponível a toda a comunidade: estudantes, docentes, investigadores e pessoal não-docente”, explica este estabelecimento de ensino universitário. Apesar de as queixas se terem registado no último ano e meio, podem reportar a acontecimentos registados em anos anteriores. Questionada sobre as datas concretas a que remonta cada denúncia, a UNL não quis dar mais detalhes.
O Portal de Denúncias é gerido pela Reitoria da universidade, mas “a receção e o seguimento das participações ou denúncias” são da “exclusiva responsabilidade de elementos designados” pelo órgão de gestão desta entidade, refere a UNL, sem mencionar quem foram os responsáveis escolhidos.
No prazo de sete dias, a pessoa que apresentou a denúncia é notificada da receção da queixa, assim como de alguma informação adicional (nomeadamente, que poderão vir a ser “solicitados elementos adicionais para uma análise adequada” e qual “o enquadramento legal da sua denúncia”).
“Caso sejam confirmados fundamentos suficientes, a denúncia é processada de acordo com o Regime Geral de Proteção de Denunciantes de Infrações e encaminhada para a respetiva unidade orgânica (Faculdades) para apoio na análise, investigação e acompanhamento pelos serviços competentes. No prazo máximo de três meses, o/a denunciante é informado/a sobre as medidas tomadas ou previstas e respetiva fundamentação”, remata a UNL. Após a denúncia ser analisada, a instituição de ensino tem duas hipóteses: ou instaura um processo disciplinar/inquérito ou arquiva o caso.
Quando as denúncias apresentadas dão lugar à abertura de um processo/inquérito disciplinar, as consequências associadas podem “variar entre advertências ou recomendações de melhoria, e, nos casos mais graves, culminar em despedimento (docentes e não docentes) ou expulsão (estudantes)”, esclarece a UNL.
Universidade de Évora recebeu três denúncias
O mesmo aconteceu com a Universidade de Évora. Na Escola de Artes desta instituição de Ensino Superior, além de Música, são lecionados outros cursos de artes, como Teatro, Design, Artes Plásticas e Multimédia e, por último, Arquitetura (com Mestrado Integrado). Questionada pelo Observador, fonte oficiial da universidade escreve apenas que “a Comissão de Prevenção e Combate ao Assédio, através do Canal de Denúncia, recebeu três denúncias”.
A instituição não quis divulgar quando é que estas queixas foram recebidas (ou a que datas remontam), nem a que Escolas dizem respeito. E também não quis especificar o motivo das denúncias, esclarecendo apenas que “nenhuma delas está relacionada com assédio sexual [por parte] de docentes”.
Há cerca de duas semanas, a reitoria da Universidade de Évora afirmou ao jornal Público que estava a auscultar os alunos, com o objetivo de perceber se nos últimos meses algum estudante viveu algum episódio de assédio. Segundo escreveu o Público (e confirmou o Observador), a Escola de Artes reuniu-se pelo menos duas vezes com estudantes.
Na base destas reuniões esteve o facto de um dos atuais professores, César Cardoso, ter sido afastado em 2021/2022 do Hot Clube, já depois de ser acusado de práticas de assédio sobre estudantes da instituição, à semelhança de João Pedro Coelho. Contudo, após sondar os estudantes, a Escola de Artes desta universidade considerou “que não existe qualquer tipo de matéria de preocupação para a comunidade”, lê-se num email enviado a 27 de novembro, escrito pelo diretor da escola, Tiago Navarro, e citado pelo Público.
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Lisboa, Aveiro e Castelo Branco sem queixas
Em maio de 2022, a então ministra da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, Elvira Fortunato, enviou uma carta às instituições de Ensino Superior do país, com a recomendação de algumas medidas contra situações de assédio, nomeadamente: a adoção de códigos de conduta e boas práticas; a criação de canais para denunciar casos; o desenvolvimento de “procedimento disciplinares” adequados para responder às denúncias; e a promoção de iniciativas de sensibilização junto da comunidade escolar.
Os cursos de música oferecidos pelas universidades públicas portuguesas espalham-se de norte a sul do país, tendo maior expressão na região de Lisboa e Porto. No total, foram questionadas 8 instituições além da Nova de Lisboa e todas elas — exceto o Politécnico de Bragança, que não respondeu — dizem ter seguido as recomendações dadas há cerca de dois anos. Questionadas sobre possíveis denúncias, quatro universidades asseguram nunca ter recebido queixas.
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Lisboa
Em Lisboa, além da Universidade Nova, o ensino da Música é feito também no Instituto Politécnico (nomeadamente na Escola Superior de Música de Lisboa, onde se leciona Música, Música na Comunidade e Tecnologias da Música). Esta entidade esclarece que “até à presente data não houve qualquer denúncia de assédio sexual em qualquer Escola”. O politécnico “dispõe de um código de conduta para a prevenção e combate ao assédio e de um canal de denúncia”, implementado em setembro de 2023.
Já a Academia Nacional Superior de Orquestra (gerida pela Metropolitana de Lisboa), que tem um código de conduta e canais de denúncia em vigor deste março de 2023, também garante que estes “não foram usados desde a implementação destes procedimentos”.
Porto e Minho
Mais a norte, no Instituto Politécnico do Porto, foi criada uma comissão de Prevenção e Combate ao Assédio em maio de 2023, um órgão constituído por professores, estudantes e pessoal não docente, e também criado um código de conduta e um canal de denúncia de situações de assédio, lê-se no site da instituição.
Apesar de o Politécnico do Porto não ter respondido às questões do Observador sobre quantas queixas se registaram desde 2023, a Escola Superior de Música e Artes do Espetáculo (ESMAE) — onde se leciona Música (na variante de Composição; Instrumento e Canto; Jazz; Música Antiga; e Produção e Tecnologias da Música) e Teatro (na variante de Cenografia; Direção de Cena e Produção; Figurino; Interpretação; Luz; e Som) — esclareceu que foi recentemente aberto um inquérito interno preventivo ao professor Daniel Bernardes, conforme noticiou o Observador há cerca de duas semanas.
Isto porque, a propósito do caso de João Pedro Coelho, o Hot Clube disse ter afastado dois docentes no ano letivo de 2021/2022: César Cardoso (atualmente a lecionar em Évora) e Daniel Bernardes (a lecionar na ESMAE). Até ao momento, apurou o Observador, não se registaram novas queixas contra o professor.
Na Universidade do Minho (onde também se leciona o curso de Música), ainda é muito cedo para dizer se há denúncias de assédio a registar ou não. Isto porque “foi lançado — no dia 31 de outubro de 2024 – o Portal da Transparência”, onde está disponível o Canal de Denúncias, detalha a instituição. “Uma vez que o Canal de Denúncias é muito recente, não temos ainda condições para fazer uma avaliação de ponto de situação.” Além disto, nesta instituição de ensino já foi também instituído o Código de Conduta Ética e o Plano de Igualdade de Género.
Aveiro e Castelo Branco
As universidades de Aveiro e de Castelo Branco mantêm o padrão: “Na Universidade de Aveiro não há registo de denúncias/queixas de assédio sexual ou moral”, garante a reitoria. Nesta instituição (que oferece o curso de Música), qualquer denúncia de assédio pode ser apresentada “diretamente através do envio de um email ao Reitor, do canal de comunicação ‘Pergunta ao Reitor’, criado em 2021, ou do canal de denúncias internas, criado em 2022”.
Também no Instituto Politécnico de Castelo Branco (onde se pode estudar Música na variante de Canto; Instrumento; Formação Musical, Direção coral e Instrumental; e Musica Eletrónica e Produção Musical), “até à data nenhuma queixa foi reportada à instituição”. Existe ainda “um ‘Portal da Denúncia’ de livre acesso”, mas a instituição não detalha em que ano foi criado.
Escolas de Jazz sem denúncias. Maioria dos conservatórios em silêncio
Após a apresentação de uma denúncia por parte de Liliana Cunha, vieram a público outros casos (nomeadamente o dos dois professores afastados no ano letivo 2021/2022). E foram criados canais de denúncia no Jazz (área onde surgiu a primeira queixa) e também Teatro, conforme noticiou o Observador. De acordo com o ponto de situação feito pelo Público, à data de 12 de novembro, havia já 79 queixas, que visavam 18 pessoas (em especial do mundo da música).
O mundo das artes está cada vez mais atento a casos de assédio e há escolas e conservatórios a admitir vir a criar canais de denúncia até ao momento inexistentes.
Uma vez que tudo teve início com uma queixa sobre um docente de uma escola de música, o Observador contactou sete outras escolas do país e apenas uma, a escola de jazz Musicland, em Mafra, não respondeu.
Três escolas garantem ter canais oficiais de denúncia de casos de assédio, nomeadamente: a Musicália (em Torres Vedras), a Cooperativa Operária Barreirense Cultural e Solidariedade Social (no Barreiro) e a Associação de Jazz de Leiria. Todas elas dizem ainda não ter recebido qualquer queixa de assédio. No que toca à associação de Leiria (ligada à Escola e à Orquestra de Jazz de Leiria), um professor e músico apresentou demissão por não querer continuar a lecionar numa instituição que tem como presidente César Cardoso (um dos afastados do Hot Clube em 2021/2022).
Já as escolas de jazz do Porto e da Madeira não têm canais de denúncia, mas a direção deste último admite que pode vir a ser criado este organismo. Por último, a Escola de Jazz de Braga não especifica se tem ou não um canal de denúncia, mas afirma não ter “conhecimento de quaisquer casos de assédio sexual que envolvam professores e alunos”.
O Observador quis ainda saber qual é a realidade vivida nos principais conservatórios de música do país, onde habitualmente estudam alunos menores de idade. Foram contactados, no total, 18 conservatórios — um por distrito — mas apenas cinco responderam, nomeadamente: o Conservatório de Música da Metropolitana; o Orfeão de Leiria; o Conservatório de Música Calouste Gulbenkian de Braga; o Conservatório de Portalegre; e o Conservatório de Música de Santarém.
Das estruturas contactadas, apenas a Metropolitana tem um canal de denúncias (não tendo recebido qualquer queixa até ao momento). Contudo, o conservatório de Leiria admite que, “dado os acontecimentos recentes e as informações da sua obrigatoriedade legal”, está “em fase de implementação deste instrumento de trabalho”, que a instituição prevê “ter em breve disponível”.