Valter Hugo Mãe não acredita em Deus. De um ponto de vista lógico, a ideia parece-lhe “impossível e disparatada”. É apenas ao abandonar a lógica em detrimento do irracional que o autor de 52 anos deteta uma inquietude, a possível presença de algo superior. Foi neste lado instintivo e primário que mergulhou no processo de escrita de Deus na Escuridão (Porto Editora).
O novo romance, sucessor temático de As Doenças do Brasil e última parte da tetralogia “Irmãos, Ilhas e Ausências“, é o mais espiritual e religioso que Hugo Mãe já escreveu. Debruçando-se sobre uma família e uma comunidade na remota freguesia do Campanário, na Madeira, é um livro feito de impossibilidades, desassossegos e buscas por resposta. Acima de tudo, é uma “oração à humanidade”, como o próprio descreve em conversa com o Observador.
No ano em que se assinalam duas décadas desde a publicação do seu primeiro romance, Valter Hugo Mãe diz continuar a sentir a “urgência” de escrever. “O que não entendo, mas que de algum modo me parece fundamental entender, é exatamente o que me interessa”, explica, ele que sempre achou que ia morrer novo e que, pese embora busque a sua “paz possível”, não tem pudores em revelar que lida mal com o passar da idade: “Tenho a trágica impressão de que não tenho muito mais tempo”.
A entrevista sobre o novo livro desagua noutros temas, literários e não só. Das diferenças entre o romance e a poesia (o primeiro “tem uma vantagem, mascara melhor”) à fluidez das famílias e das relações interpessoais, o premiado autor reflete ainda sobre a amizade com Isabel Lhano, artista plástica vila-condense que morreu no final de 2023, que o próprio descreve como “a grande amizade” da sua vida e cuja presença (e ausência) o continua a marcar. “Se calhar isso até se pode ver no livro, essa ansiedade pela boa fé”, diz.
Título: “Deus na Escuridão”
Autor: Valter Hugo Mãe”
Editora: Porto Editora
Páginas: 272
“A maior parte das pessoas que dizem ter fé, na verdade não têm muita”
O seu novo livro é muito espiritual, abordando temas marcadamente religiosos. No entanto, em entrevistas antigas que deu, chegou a dizer que não é religioso, não acredita em Deus. Como é que chega a este tema e a uma abordagem destas?
Podia começar por dizer que, embora tenha dificuldade em acreditar em Deus, acredito em São Bento, o que significa que alguma coisa por aqui existe. A verdade é que racionalmente, se pensar acerca do assunto, não acredito em Deus; se não pensar acerca do assunto, acredito. Há qualquer coisa do foro do irracional, e sobretudo do espontâneo, que é quase da existência animal e me impele a achar que há uma inteligência dominadora que, de alguma forma, nos acolhe. Mas depois se ponderar sobre isso, acho absolutamente impossível e disparatado.
Valter Hugo Mãe: “Não gostei da minha adolescência, não aconselho a ninguém”
É por isso que, como também já tem dito, considera este o seu livro mais profundo?
A questão da profundidade neste livro, que me impressiona um pedaço, tem que ver com o aceitar abordar determinadas questões sem assumir imediatamente algum tipo de antagonismo. Existe uma certa prece no livro, que não deixa de ser uma oração à humanidade. É sobretudo um livro humanista, em que as pessoas se salvam e se condenam umas às outras, e tentei escrever o livro como se se tratasse de uma espécie de oração, sem a mascarar demasiado. Isso também tem que ver com o facto de o livro ser dedicado à senhora Luísa Reis Abreu, uma senhora crente que conheço há uns anos, e que encontro como alguém que é crente com genuinidade. Tenho a sensação que a maior parte das pessoas que acreditam não sabem muito bem acreditar. A maior parte das pessoas que dizem ter fé, na verdade não têm muita. O que a senhora Luísa Reis Abreu me mostra é a adequação da sua conduta a uma fé como eu não tenho visto em mais ninguém. O ato de escrever este livro impressionado com ela, para tentar ir ao encontro do esplendor desta mulher, solicitou de mim a aceitação do tema sem máscara.
É através dela que a freguesia do Campanário entra na sua vida?
Sim, através dela e da família dela. O Campanário é um lugar que frequentei, onde fui algumas vezes por ser amigo da família, dos filhos. E enfim, por ser amigo dos filhos é que acabo por conhecê-la. Nas viagens que fiz à Madeira já ia suspeitando de alguns vocábulos, de algumas estranhezas do português madeirense. Mas é sobretudo quando começo a ouvir a senhora Luísa a falar que alguma coisa literária se me impõe. Para mim, a normalidade da sua fala é já literatura, é uma poética cativante, atraente.
Depois de a ter conhecido, tive muito cedo a convicção de que poderia haver ali um livro, indo buscar aqueles vocábulos, aqueles trejeitos. Quanto mais vezes estava com a senhora Luísa, fui-me convencendo que tinha de começar a tomar notas. Fiz algumas gravações inclusive, e tomei muitas notas para não me esquecer de pequenos detalhes. São pequenas coisas que aparecem no livro, parecem coisas de nada, mas são o que espoleta o resto, permitem a imaginação do que é puramente ficcional.
Nas notas de autor, diz que o livro começou a ser pensado há 12 anos. Isto é normal para si ou houve algo de diferente neste livro, que fez com que tivesse de ser um bocadinho mais “mastigado”?
É normal. Tenho algumas fixações e sei mais ou menos sobre o que quero escrever. Até guardo personagens. O Pouquinho e o Felicíssimo tiveram mutações, mas são personagens que estão guardadas mesmo há muito tempo — o Pouquinho existe na minha cabeça há 10, 11 anos, apareceu pouco tempo depois de começar a tomar notas sobre a freguesia do Campanário. O que acontece é que faço uma aproximação muito lenta aos livros. Tenho a sensação de que só posso escrever quando o livro parecer um fruto, uma naturalidade, algo que venha da pura espontaneidade de um determinado momento. E por isso preciso de uma maturação. Preciso de estar convencido de que aquela história vai ser contada com uma linguagem que lhe pertence e sem atrito.
Claro que depois a escrita de um livro é uma loucura e uma obstinação e é cada vez mais demente. Mas parte dessa demência é a convicção de que de que não vai ter atrito. É quase um almejar a paciência e a paz com que uma macieira faz uma maçã. A questão do autor é que ele uma vez quer chegar à maçã, outra vez à pera, outra vez a uma coisa qualquer que nem sequer tem nome. Há algo de profundamente mutante na intenção de escrever livros, que não nos permite definir uma natureza por inteiro. Nunca vamos ser naturais, vamos ser sempre bastante falsos, compostos de imitações e próteses e coisas postiças, mas a intenção é fazer tudo como se nos fosse natural.
O tempo que levou a maturar esta ideia — e além dela, o lugar, uma freguesia nas montanhas madeirenses, muito longe de onde o Valter é originário — também vai ao encontro daquilo que dizia na altura d’As Doenças do Brasil, de que “só começa a escrever um livro que de início lhe parece impossível de escrever”?
Sim. É muito importante que o livro seja uma lonjura de mim mesmo, que seja uma forma de auscultação do que é o lugar do outro e que não me corresponda inteiramente. É claro que as minhas manias e obsessões estão subjacentes aos livros todos, mas eu não teria interesse, não suportaria escrever como quem escreve sempre o mesmo livro, como aqueles que repetem a mesma ideia para ver se a melhoram. Tenho de ter a convicção de que estou a fazer um livro novo, que lida com outras coisas. É como se me colocasse a proposta de não ser o autor que já fui.
Há qualquer coisa de espera e de transformação, uma metamorfose necessária para chegar a outro resultado. Quero sempre escrever um livro que não me parece plausível conseguir. Por isso é que quase nunca falo do que vou escrever a seguir, porque acho sempre que não vai dar certo. Lembro-me de ter aberto a boca acerca d’A Deshumanização. Comecei logo a dizer que que estava a escrever sobre a Islândia e não sei mais o quê, de tal modo que quando me deitei efetivamente à tarefa de escrever, tive vontade de abandonar aquilo. Achava que não ia ser capaz, todas as versões que escrevia me pareciam aquém do que tinha imaginado.
Mas sente que colocar a ideia cá para fora e levantar o véu aumenta a pressão?
Sim, talvez possa aumentar. Mas não é necessariamente pela pressão, é mais por de repente estar toda a gente à espera de uma coisa qualquer que eu acho que depois vou ter de explicar porque é que não soube fazer. É um bocado como o Numeiro dizer que vai partir as trombas ao moço búlgaro ou lá que raio é e depois não ter capacidade para isso…
Tenho de confessar que a última personalidade que imaginava que me falasse era o Numeiro…
Um amigo falou-me do assunto. Não conhecia, nunca tinha ouvido falar na criatura, mas depois fui ouvir um podcast engraçado e parti-me a rir. Mas acho que é um bocadinho esse temor de passar vergonha, de dizer “eu sei fazer isto ou aquilo”. Tenho sempre a sensação de que não sei fazer. É sempre esse o ponto de partida: “eu não sei fazer isto, mas quero fazer”. Por isso enquanto não tiver a certeza de que está feito é melhor não anunciar ao mundo.
Por exemplo, os meus livros têm-se organizado em tetralogias. Houve a primeira, A Idade Inteira, e esta agora chama-se Irmãos, Ilhas e Ausências. São quatro romances passados em ilhas distintas, mas eu não falei disso inicialmente. A primeira vez que falei que estava a completar um ciclo foi quando publiquei a terceira ilha, quando algumas pessoas se foram apercebendo que andava a escrever sobre o assunto.
“Não estou nada apaziguado com o facto de ter 52 anos”
O que é que o atraiu nesta ideia de escrever sobre ilhas?
Há qualquer coisa em determinadas ideias-chave que se prende ao meu espírito e me faz ter vontade de explorar essas ideias ao extremo. Poderia ter escrito apenas sobre uma ilha e refletido sobre os aspetos do espírito de um ilhéu, e se calhar estaria muito bem, mas não me era bastante. Os ilhéus são de diferentes maneiras. Sendo todos eles traduzidos por uma certa lonjura e uma certa solidão ou isolamento, há ilhéus que precisam de superar a ilha; depois há outros, como os japoneses (sobre os quais escrevi), que se querem confinar à ilha. Havendo pontos em comum, há sentidos verdadeiramente contrários no sentimento que se pode gerar num ilhéu. Eu queria explorar a elasticidade dessa cidadania muito específica. E ao mesmo tempo, depois de ter ido à Islândia, ao Japão e ao Brasil, era interessante voltar a Portugal e fechar o ciclo com uma ilha portuguesa — no caso, a Madeira e o Campanário.
No livro há uma ideia de condição natural a que as personagens estão votadas, e há várias realidades sociais e históricas, como por exemplo a emigração. O ato de sair da ilha está relacionado com uma espécie de superação?
Sim. Há no madeirense uma ideia de base que propende para uma necessidade de partida. A Madeira é sobretudo um lugar de sair. Enquanto que o português continental é um emigrante que quer sempre regressar, não sei se o madeirense necessariamente quer regressar. Sobretudo a emigração dos anos sessenta e setenta, são indivíduos que regressam nas férias mas que não têm intenção de regressar para a velhice. O madeirense que sai não tem intenção de voltar a confiar na ilha. E discretamente no livro há umas ausências: maridos ausentes, figuras que parece que ao emigrar evaporam, tornam-se muito imprecisas, quase não têm utilidade nenhuma na história porque deixam de ser úteis na vida das pessoas.
A figura do Capitão, por exemplo.
Por exemplo. Tenho muito a impressão de ser isso que acontece. Sobretudo naquela emigração, houve muitas mulheres deixadas na ilha, casadas com maridos que quase nunca viram na vida inteira. São famílias que se constroem com uma certa fantasmagoria, em que as pessoas estão vivas mas estão à distância. Isso era muito necessário que estivesse no meu livro, esse esvaziamento daquele território, especialmente as freguesias mais dificultadas.
Ao mesmo tempo, era-me interessante perceber os ecos dessa emigração, das pessoas que regressam. Nem precisam de ser os que foram para a Venezuela, basta os que vieram para Lisboa. A Délia Cristina, por exemplo, que foi estudar arquitetura e que também coloca essa hipótese de não voltar. A ilha é muito boa como um espaço de exercício da nostalgia, mas jamais como uma aposta de destino. É muito diferente do que acontece aos islandeses, por exemplo, que são mais parecidos com os portugueses continentais. Os islandeses querem muito sair da Islândia, mas necessariamente voltam todos. Há um ditado na Islândia que diz que “nenhum islandês emigra mais do que dez anos”. Nós emigramos pelo menos trinta ou quarenta, os islandeses, pelos vistos, emigram dez. Os japoneses, por exemplo, jamais querem emigrar. Não querem sair e não querem nem que ninguém entre, se possível.
Volta àquela diferença entre as ilhas que me explicava há pouco.
Sim. É um tópico que enfim, o livro não é exatamente sobre isso, mas no retrato da ilha era importante que houvesse essa alusão a um tipo específico de ilhéu que é feito dessa característica, em que se alguém for embora, dificilmente coloca como objetivo voltar.
Apesar de tudo, aborda estas ideias de fantasmagoria, ausência e solidão com um olhar bastante positivo. Porque é que quis explorar estes temas agora? Tem a ver com a fase da vida em que se encontra?
Talvez. Há um regresso a uma questão espiritual que até envolve uma certa disciplina religiosa. Acho que todos os meus livros têm uma espiritualidade subjacente, mas nem todos são religiosos. Este pressupõe uma religiosidade, é claramente um livro que se faz à luz da espiritualidade cristã. Sou muito afetado pela idade, arrelia-me e é uma coisa que me faz muito mal pensar. Não estou nada apaziguado com o facto de ter 52 anos e tenho a trágica impressão de que não tenho muito mais tempo. Se calhar é uma paranoia minha, sempre fui um bocadinho convencido de que ia morrer depressa…
Dizia há uns anos que achava que não ia sequer passar dos 40.
Sim, sempre achei que não ia viver muito tempo. Acho estranho as pessoas que vivem até muito velhas e acho que não tenho talento nenhum para chegar a velho. Até para chegar aos 50 anos já me pareceu assim muito. Não sei se é isso que me cria também uma alma urgente, mas tenho muito a necessidade, à medida que vou avançando, de lidar frontalmente com aquilo que mais me fratura, que mais depressa me pode destruir. Gostaria muito que no dia em que eu morresse as pessoas ficassem felizes. Não tenho nada a vontade que as pessoas se entristeçam, exatamente porque tive o privilégio de ter chegado ao essencial da vida. Acho que senti o essencial, por isso se não pudesse experimentar mais nada teria sido sempre um indivíduo privilegiado. Mas tenho muito essa urgência — aquilo que me periga, que me incomoda, que não entendo mas que de algum modo me parece fundamental entender, é exatamente o que me interessa. Tenho sempre em mãos um livro que, ao mesmo tempo, convoca aquilo que me é inimigo, que se pode comportar na minha vida como um antagonista.
“Lembro-me de ser um miúdo que não vendia praticamente livro nenhum e que ninguém conhecia”
Queria perguntar-lhe acerca de duas mulheres que me parecem essenciais na construção deste livro. Uma delas é a mãe do Pouquinho e do Felicíssimo, que é central para a ideia defendida no livro de que “Deus ama como as mães”. O Valter, é sabido, é muito próximo da sua mãe. De algum modo a Mariinha é um reflexo da sua própria mãe?
Sim, eventualmente. O que penso sobre as mães terá de começar no que penso sobre a minha mãe. Estou convencido de que este livro usa dois irmãos para definir o amor de mãe. Há uma relação familiar que parece querer confiscar um amor que compete a outra figura. De algum modo, a minha tese é de que o amor das mães, sendo o amor mais extremo, sendo o único comparável com o amor de Deus, talvez devesse ser o amor que todos nós devíamos cobiçar praticar. Independentemente de sermos homens, mulheres, pais, mães, filhos ou irmãos, talvez não estejamos nunca no extremo da humanidade se não pudermos, pelo menos, entender o que é amar alguém com essa inelutável generosidade. Por isso é que o livro também é sobre uma espécie de reorganização da família, em que um irmão existe dentro daquele tabuleiro de jogo, não exatamente no papel de irmão, mas ocupando o papel da própria mãe.
Sou muito contra a ideia de que as famílias são normais. Nenhuma família é normal, não existe normalidade. E, ao mesmo tempo, nada é aberrante numa família. O que tento fazer em muitos dos meus livros é mostrar que as famílias se compõem muito segundo as suas necessidades. É como se fosse um jogo em que cada um de nós ocupa o lugar que é levado a ocupar. Por exemplo, escrevi um livro para miúdos chamado A Minha Mãe é Minha Filha. De facto, em determinados momentos e por determinadas circunstâncias, não somos o que as convenções esperam que sejamos. Talvez a maior parte dos casais sejam irmãos a partir de determinada idade.
Acha que todas as relações têm tendência a tornar-se fraternais?
Acho que sim. O corpo, enquanto bicho, amansa. O que sobra e o que funde as pessoas tem muito mais que ver com um aspeto solidário, de genuína amizade, mais do que propriamente com o desígnio bíblico da multiplicação. Diria até que quem, a dada altura, não se torna irmão do seu companheiro é esquisito, é porque a dimensão animal ainda não se apaziguou.
Sobretudo o que me interessa é a ideia de que os papéis que se convencionam para as figuras da família são fluídos. Amamos mais alguém se a pessoa precisar mais de ser amada. É como se o afeto tivesse especificidades que não não lhe permite ser verdadeiramente universal, porque não nos afeiçoamos a todas as pessoas da mesma forma. É absolutamente impraticável termos de repente um amor universal pela humanidade, ninguém tem. Podemos querer o bem, a paz para a humanidade, mas amar verdadeiramente cada pessoa, isso é absolutamente impraticável. E a maneira como amamos cada pessoa é muito, muito distinta. Umas pessoas podemos amar como homens, outras amamos como mães, outras como irmãos, e ainda outras rigorosamente nada.
A segunda mulher sobre a qual lhe queria perguntar não está diretamente relacionada com a escrita da obra em si. O Valter dedica o livro à Isabel Lhano, que morreu há cerca de um mês e que descreve como “a grande amizade” da sua vida. Sendo natural que alguém tão importante informe a sua escrita, qual foi o impacto da Isabel na sua vida?
A Isabelita… é curioso, somos muito distintos. Eu sou aquele tipo de indivíduo paciente, introspetivo, mais ou menos tímido, não bebo, não fumo. E ela é a tipa do cabelo vermelho que abre as pistas de dança, bebe, fuma e é a primeira a dar opinião. Era de uma frontalidade tal que, da primeira vez que encontrou o Mário Soares, estávamos juntos e ele estava numa exposição dela, ela vira-se para ele e diz-lhe “Mário, tu é que és um homem do c******”. Era a Isabel, esta mulher que o que tinha para dizer, dizia e era amada por toda a gente. Não conheço ninguém que pudesse ter alguma coisa para se queixar da Isabel. Por mais que ela pudesse dizer as coisas mais extremadas, toda a gente entendia que ela as dizia com profunda boa fé. Se calhar isso até se pode ver no livro, essa ansiedade pela boa fé. Eu não consigo aproximar-me de alguém que sinta que tem planos esconsos, intenções esconsas. Prefiro mil vezes que as pessoas se aproximem e digam “Valter, tu tens uma coisa que eu quero”. Antes isso do que sentir que as pessoas andam como espertas à minha volta, a tentar chegar a um determinado objetivo.
A Isabel era o elogio à honestidade. Era das pessoas mais presentes da minha vida, mais quotidianas. Era profundamente família, mas da família que a gente usa, não é como uma tia ou uma prima que a gente vê no Natal, é de todos os dias. Este é o primeiro livro que ela não lerá. Ia pela primeira vez ser apresentadora, nunca me passou pela cabeça que ela quisesse apresentar um livro meu, e ia fazê-lo com este. Disse-me de repente “baby, nunca apresentei um livro teu, até fica mal, sou a tua grande gaja”. Eu disse “queres? é uma seca, vais ter que ler o livro e falar sobre ele…”, mas ela ficou felicíssima com o facto de ter esse papel.
Quando ela morre subitamente, um aneurisma que rebenta sem anúncio prévio… é desolador, de início parecia que a cidade tinha ficado vazia. E agora não sei, parece que não me consigo encostar a uma parede, não tenho onde me agarrar, aquela pessoa… Ainda há bocado quando estacionámos, vi ali um graffiti e já o ia fotografar para mandar à Isabel. Que ela não esteja aí é um pouco como eu não estar. A relação que temos é tão complementar, a gente conhecia-se tão, mas tão bem. É como se metade do meu corpo não estivesse a falar com a outra metade. Como de repente não haver caminho entre o olho esquerdo e o olho direito, não sei.
Valter Hugo Mãe: “Fui mais esperto na vida quando optei por um verso, mais do que por uma pessoa”
Costuma dizer que a poesia, que também publica, é um género literário muito mais pessoal, que reflete muito mais o seu ator. Por oposição, acha que o romance continua a ser o formato que lhe melhor permite o exercício de distanciamento de que me falava há pouco?
O romance tem uma vantagem: mascara melhor. A poesia, mesmo quando é mentirosa, parece que diz a verdade. As pessoas levam a sério tudo o que seja dito num poema em verso, pedem explicações e acham que de facto sentimos aquilo. O romance, por mais que possamos dizer a verdade, convence as pessoas de que tudo é mentira com meia dúzia de personagens ficcionadas. É uma excelente máscara, é um espaço de exposição despudorada onde podemos exibir o que quer que seja sem sermos penalizados. Admito que tenho estado mais entregue ao romance do que à poesia nestes últimos anos. Tornou-se sedutora a ideia de poder passar incólume por dentro do texto, de poder apostar numa determinada expressão sem ser responsabilizado de coisa nenhuma enquanto autor. Os poemas são muito cansativos nesse aspeto. Quando publicava mais assiduamente poesia, nas próprias entrevistas ou nas apresentações, quando alguém pergunta com um livro de poemas na mão é sempre muito desconfortável, quer entender, quer perceber.
E às vezes não há uma resposta?
Não há, muitas das vezes aquilo corresponde a qualquer coisa que vimos, uma reação a um filme, a um quadro, pode ser uma história que contamos sobre a vida de uma pessoa, uma angústia de há 30 anos que nem sempre é o retrato de quem somos… Na poesia estamos de corpo aberto, parece que estamos de tripas à mostra com as pessoas a remexer, a pedir explicações para cada porcaria que encontram lá dentro. Talvez por isso é que a maior parte dos poetas detestam falar dos seus poemas, não querem dar entrevistas ou, quando as dão, colocam vários entraves e nunca querem explicar um poema. Os romancistas normalmente nunca dizem que não querem explicar um romance, porque de facto tem essa dimensão de máscara, que permite que, se eu quiser, não diga nada sobre quem sou.
Curiosamente, em 2024 assinalam-se precisamente 20 anos desde a publicação do seu primeiro romance, O Nosso Reino. Que balanço faz destas duas décadas, o que é que mudou na sua relação com a literatura, na sua carreira, na sua vida?
De algum modo as coisas parecem-me um pouco irreais. Quando penso que passei por determinadas realizações, tão depressa me sinto quem sou hoje, como me lembro de ser um miúdo que não vendia praticamente livro nenhum e que ninguém conhecia. As pessoas achavam que eu não ia a lado nenhum, que vivia muito longe, que só daria certo se viesse para Lisboa… lembro-me dessas coisas todas com alguma ternura, e ao mesmo tempo com a satisfação de perceber que nunca precisei de sair da Vila do Conde, das Caxinas, não precisei de estar à distância da minha família. As coisas foram acontecendo com naturalidade, não imponho nada.
Acho que hoje, mesmo com uma urgência enorme na escrita e tendo muita vontade de escrever, há um sentido tremendo de gratidão. É uma coisa bizarra mas acho que é a melhor maneira de envelhecer. Tenho a perceção de que as pessoas ou envelhecem gratas ou envelhecem amargas. Não gosto nada de envelhecer, por isso não sabia muito bem se ia ser simpático. Achava que ia ser um estafermo, ia ficar muito arreliado com tudo quanto me dói e com o que já não consigo fazer. Mas acho que é exatamente o contrário. É como se paulatinamente fossemos aceitando com mais facilidade que chega a vez dos outros. Há gente nova a aparecer, há escritores brilhantes, mais novos. Gosto de ver o que vem a seguir, de perceber o que é que pode fazer sentido num tempo futuro. E gosto da ideia de ter tido um tempo no qual pude participar.
Talvez quando fosse mais novo, há vinte anos quando publiquei o primeiro livro, tivesse um fascínio, um entusiasmo — que nunca foi arrogante, acho que fui sempre uma pessoa relativamente humilde — mas havia uma expectativa que era talvez mais pretensiosa. Agora a grande diferença é achar que um dia em que não me doam as pernas ou a cabeça é um dia magnífico.
Roubando-lhe uma citação que usou para descrever este livro: conquistou a sua “paz possível”?
Sim. Este livro é decisivamente um dos que mais me faz sentir que, se não puder fazer mais nada, fiz o que me competia. Em arte não há satisfação, por isso nem que morra com 99 anos e a escrever um livro por ano vou estar satisfeito. Mas há qualquer coisa a que este livro responde que me era muito importante responder, que tem que ver com esse aspeto da espiritualidade. Talvez nunca tenha sentido com nenhum livro antes esta tão grande sensação de um livro me ajudar. É esquisito, digo “ajudar” e parece que o livro me vai arrumar a casa, e eu tenho a casa muito desarrumada. Mas é no sentido de prestar, de vir ao encontro de algo que me era incompleto e que fica bastante mais completo.