Terri e Michael tinham casado havia pouco mais de seis anos e estavam em casa, na cidade de St. Petersburg, no estado norte-americano da Flórida, quando a tragédia aconteceu. A dieta auto-imposta pela jovem de 26 anos, que estaria a tentar perder peso, seria mais tarde apontada como uma das possíveis causas do que se passou na manhã de 25 de fevereiro de 1990, quando subitamente caiu inanimada no chão de casa. O marido, Michael Schiavo, ligou de imediato para o 911 (o equivalente norte-americano ao 112) e Terri foi levada para o hospital.
A jovem sofrera uma paragem cardíaca e estava inconsciente. Foi entubada e ventilada — e ficaria vários meses em coma. Após meses naquele estado, sem que se registassem quaisquer melhorias, os médicos declararam que Terri estava num estado vegetativo permanente. Durante vários anos, foram tentados múltiplos tratamentos e terapias, todos sem qualquer sucesso visível. Ao fim de oito anos, Michael pediu que o hospital suspendesse a alimentação que Terri recebia através de um tubo, argumentando que a mulher não quereria que a sua vida fosse prolongada de forma artificial durante tanto tempo.
O pedido de Michael abriu uma disputa que conduziria a um dos casos mais violentamente fraturantes da política norte-americana das últimas décadas. Os pais de Terri opuseram-se à suspensão da alimentação porque a filha era católica — e a disputa familiar tornou-se num tópico quente a nível nacional. Durante vários anos, o caso Terri Schiavo esteve no centro do debate político (sobretudo nas eleições presidenciais de 2004), fez escalar a retórica para níveis bastante violentos e deu origem a protestos organizados por grupos católicos que se opunham à suspensão da alimentação.
Como recorda o jornal Crux, dois fatores terão contribuído para que o caso ganhasse uma dimensão nacional: por um lado, ocorreu no estado da Flórida, cujo governador era Jeb Bush, irmão do então Presidente George W. Bush, que se recandidatava a um segundo mandato; por outro, o desfecho ocorreu na mesma altura em que o Papa João Paulo II, já profundamente debilitado, se aproximava igualmente do final da vida, tendo sido também alimentado artificialmente durante algum tempo.
O tema tornou-se especialmente controverso para a muito politizada comunidade católica norte-americana. No centro da polémica, uma dúvida ética fundamental: remover a alimentação e a hidratação de Terri (o que inevitavelmente causaria a sua morte) seria equivalente à eutanásia? Terri morreria da doença ou seria morta à fome? Terri Schiavo acabaria mesmo por morrer em 31 de março de 2005, com 41 anos, depois de as máquinas terem sido finalmente desligadas — quinze anos depois de ter sofrido o acidente em casa e após uma longa batalha do seu marido pelo que considerou o direito de Terri a morrer com dignidade, evitando o prolongamento artificial e indefinido da vida da mulher.
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Depois da morte, os bispos católicos norte-americanos, que tinham estado envolvidos no debate em torno do caso, enviaram para o Vaticano um conjunto de questões doutrinais, pedindo um esclarecimento a Roma: afinal, fornecer artificialmente alimentação e água a um doente em estado vegetativo permanente representava ou não um “cuidado normal e proporcional”, mesmo quando os médicos dissessem que a recuperação seria impossível? Ou era, na verdade, um tratamento inútil e obstinado que devia ser evitado? A resposta do Vaticano, emitida em 2007, parece ter fechado a questão: na perspetiva moral da Igreja, manter a alimentação e hidratação é obrigatório enquanto “cumprir a sua finalidade, que é a hidratação e a alimentação do paciente”.
Na prática, só se o corpo do doente já não fosse capaz sequer de absorver a água e os alimentos é que seria moralmente lícito, para a doutrina da Igreja, suspender a alimentação artificial. Isto significava que, para a esmagadora maioria dos casos, a indicação moral da Igreja era a de que seria necessário continuar indefinidamente a manter o corpo vivo. Durante o tempo que fosse preciso, mesmo que o paciente estivesse num estado totalmente vegetativo — desde que continuasse a manter-se vivo devido à alimentação e à água.
Esta perspetiva manteve-se durante anos — alinhada com a política absolutamente anti-eutanásia da Igreja Católica. Quase vinte anos depois da morte de Terri Schiavo, contudo, a Igreja parece estar a moderar a sua perspetiva sobre o assunto. Em julho, o Vaticano publicou um documento que abre as portas da moral católica à possibilidade de os pacientes recusarem que lhes seja dada alimentação e hidratação artificialmente em caso de ficarem em estado vegetativo permanente.
Apesar de reafirmar a posição da Igreja contra a eutanásia e o suicídio assistido, o novo documento está a ser lido por alguns como um primeiro passo no sentido de abandonar uma abordagem a preto e branco das questões do fim da vida — mas a hierarquia da Igreja garante que não há qualquer rutura na continuidade da doutrina católica sobre temas como a eutanásia ou o suicídio assistido.
“Respeitar a vontade do paciente”
Em causa está o “Pequeno Léxico do Fim da Vida”, um documento publicado no início de julho pela Pontifícia Academia para a Vida — organismo do Vaticano que se dedica ao estudo teológico das questões da vida humana. O documento de 88 páginas contém “uma série de artigos explicativos e de aprofundamento, conceptualmente rigorosos e cientificamente atualizados, dos ‘cuidados paliativos’ à ‘eutanásia’, da ‘sedação profunda’ às ‘disposições antecipadas de tratamento’”, explica a Academia, sublinhando que o principal objetivo da publicação é contribuir para “esclarecer e utilizar corretamente termos muitas vezes de difícil interpretação”.
O documento tem uma introdução assinada pelo arcebispo italiano Vincenzo Paglia, presidente da Pontifícia Academia para a Vida, que diz querer contribuir para o debate sobre o final da vida reduzindo a “componente da discórdia” que depende “de um uso impreciso das noções implicadas no discurso” — nomeadamente as afirmações “por vezes atribuídas aos crentes, que, não raras vezes, são resultado de clichés que não foram adequadamente escrutinados”.
Como explica o Crux, o “Pequeno Léxico” dedica um segmento à questão concreta do prolongamento da alimentação e hidratação das pessoas em estado vegetativo permanente e recorda dois documentos eclesiásticos publicados nos últimos anos, já durante o pontificado do Papa Francisco, que se debruçam sobre este assunto. Um deles é a declaração Dignitas infinita, publicada pelo Dicastério para a Doutrina da Fé em abril de 2024, que diz que se deve evitar “qualquer obstinação terapêutica ou intervenção desproporcional” no cuidado dos doentes terminais. O outro é a carta Samaritanus Bonus, de julho de 2020, que dedica todo um capítulo à “obrigação moral de excluir a obstinação terapêutica”, mas que defende que a alimentação e hidratação do doente em estado vegetativo só devem ser suspensas quando “o fornecer substâncias nutrientes e líquidos fisiológicos não produz nenhum benefício ao paciente, porque o seu organismo não está mais em condições de absorvê-los ou metabolizá-los”.
“Deste modo não se antecipa ilicitamente a morte por privação de suportes hidratantes e nutricionais essenciais às funções vitais, mas respeita-se o decurso natural da doença crítica ou terminal”, dizia o documento de 2020. “Em caso contrário, a privação destes suportes se torna uma ação injusta e pode ser fonte de grandes sofrimentos para quem a padece. Alimentação e hidratação não constituem uma terapia médica em sentido próprio, enquanto não combatem as causas de um processo patológico em ato no corpo do paciente, mas representam um cuidado devido à pessoa do paciente, uma atenção clínica e humana primária e ineludível.”
O texto agora publicado parece entrar em contradição com o anterior documento neste ponto em concreto. De acordo com o Crux, o “Pequeno Léxico” considera que, por serem preparadas em laboratório e administradas por via tecnológica, a alimentação e a hidratação dadas aos doentes em estado vegetativo são mais do que “simples procedimentos de cuidado”. Por isso, os médicos devem “respeitar a vontade do paciente que as recuse, numa decisão consciente e informada, mesmo que expressa antecipadamente, com vista a uma possível perda de capacidade para se expressar e escolher”.
O documento da Pontifícia Academia para a Vida também critica o argumento usado por aqueles que se opõem radicalmente à possibilidade de suspender a alimentação de um doente em estado vegetativo permanente: o de que, nesse caso, a morte não é provocada pela evolução natural da doença, mas é causada diretamente por quem suspende a alimentação e a hidratação, o que levaria à classificação dessa morte, na prática, como um homicídio.
Para a Academia, esse argumento resulta de uma “conceção redutora da doença, que é entendida como uma alteração de função particular do organismo, perdendo de vista a totalidade da pessoa”. O documento da Academia diz mesmo que “esta forma redutora de interpretar a doença conduz, depois, a um igualmente redutor conceito de cuidado, que acaba por focar-se nas funções individuais do organismo, em vez de no bem geral da pessoa”.
Apesar de este texto de 2024 se afastar ligeiramente do posicionamento de 2007 relativamente ao tópico concreto da alimentação das pessoas em estado vegetativo, o texto é, no essencial, uma reafirmação da doutrina católica sobre questões como a eutanásia e os cuidados paliativos. Além disso, o documento esforça-se ainda múltiplas vezes por afirmar que não há qualquer contradição com o texto de 2007, apontando que já nesse texto era dito que a alimentação podia ser suspensa se não fosse eficaz do ponto de vista clínico.
A principal inovação do “Pequeno Léxico” é o facto de este documento defender que deve ser tida em conta a vontade de uma pessoa que, antecipando a possibilidade de vir a ficar incapaz de se expressar, diga que não pretende continuar a ser alimentada e hidratada caso fique em estado vegetativo permanente, sem qualquer possibilidade de melhorar. Isto significa que, no entender moral da Igreja Católica, a ineficácia dessa alimentação já não é o único critério que pode levar à sua suspensão.
Vaticano defende continuidade da doutrina
Apesar das múltiplas referências do documento à continuidade da doutrina da Igreja Católica sobre o fim da vida, o “Pequeno Léxico” recebeu grande destaque, primeiro na imprensa italiana e depois na imprensa internacional, que o retratou como uma alteração (ainda que subtil) no ensinamento da Igreja — no sentido da abertura a uma perspetiva menos rígida sobre as questões do fim da vida.
Em resposta a essas notícias, o presidente da Pontifícia Academia para a Vida, Vincenzo Paglia, deu uma entrevista ao portal de notícias do Vaticano para garantir que o que está escrito neste documento segue na mesma linha do trabalho desenvolvido pelos vários papas desde Pio XII em 1956 até aos dias de hoje. “A vida tem de ser defendida em toda a sua integralidade e não apenas em momentos particulares”, disse o responsável, que rejeitou as críticas de que foi alvo, por parte de alguns nos setores mais conservadores da Igreja, que o acusaram de defender a eutanásia.
Paglia recusou que este documento seja lido como uma alteração nos ensinamentos da Igreja sobre os cuidados a dar às pessoas em estado vegetativo: “Recordo que Pio XII, em 1956, afirmou a permissibilidade de suspender a ventilação sob algumas condições graves. E já em 2007 a Congregação para a Doutrina da Fé disse que tais tratamentos poderiam ser legitimamente descontinuados, ou não iniciados, se implicarem um fardo excessivo ou um desconforto físico significativo.” No entender do arcebispo italiano, o processo de compreender o que são os tratamentos desproporcionais que devem ser suspensos “é uma avaliação que requer sempre o envolvimento da pessoa doente, tanto quanto possível”.
“A Igreja reitera a sua absoluta oposição a qualquer forma de eutanásia ou de suicídio assistido. Essa é também a minha convicção, mesmo que alguns queiram que eu diga outra coisa”, assinalou Paglia. “Contudo, a Igreja também convida à reflexão sobre como uma obstinação terapêutica irrazoável não é uma expressão de uma medicina verdadeiramente centrada no paciente e no cuidado. A morte é, infelizmente, uma dimensão da vida. É inevitável.”
“Certamente, nunca devemos encurtar a duração da vida, mas também não devemos, obstinadamente, obstruir o seu curso de todas as formas possíveis. Somos frágeis. E é por isso que devemos cuidar uns dos outros”, destacou ainda o arcebispo italiano, que disse ainda que é necessário “acompanhar as pessoas nas fases finais da sua existência” e sublinhou que a missão da Igreja é “formar consciências”, não “escrever leis”.
Uma perspetiva “humanizante” contra ideias “fundamentalistas”
Em Portugal, o bispo Nuno Almeida, presidente da Comissão Episcopal do Laicado e Família, diz ver com bons olhos o novo documento publicado pelo Vaticano — mas garante que esta “abertura” a uma “humanização” do final da vida não significa uma rutura com a doutrina. “Julgo que não há nenhuma alteração em termos da proposta do magistério da Igreja”, diz ao Observador o bispo, que lidera a diocese de Bragança-Miranda e tem sido um dos bispos mais envolvidos no debate sobre as questões da eutanásia e do fim da vida.
Nuno Almeida diz que estão em causa “temas muito delicados e dilemas muito difíceis” e reconhece as diferenças entre uma reflexão abstrata e os casos concretos. “Uma coisa é uma reflexão que se faz a partir de fora, outra coisa é quando se tem de enfrentar uma situação concreta”, destaca o bispo, sublinhando que a tentativa de dar dignidade no final da vida, sobretudo aos doentes em estado vegetativo, se traduz frequentemente em “situações muito difíceis de decidir”.
O bispo sublinha ainda a sua “alegria” com a publicação do novo documento, que dá um “contributo” para o debate, permitindo “dialogar a partir de uma base segura e informada” sobre o assunto devido ao “diálogo com a ciência e com a ética”.
Nuno Almeida reforça aquela que considera ser a chave ética para o final da vida através de três verbos: curar, aliviar e consolar. No entender do bispo português, quando já não é possível curar uma doença, há a missão de aliviar o sofrimento dos doentes e, por fim, o dever de os consolar. Por isso, sublinha, para a doutrina católica a eutanásia ou o suicídio assistido nunca podem ser uma solução para o sofrimento — devendo as sociedades investir no acompanhamento dos idosos, no combate à solidão no final da vida e nos cuidados paliativos.
Contudo, o prolongamento artificial e excessivo da vida também não é resposta, adverte o bispo, que reconhece que este novo documento do Vaticano vem “valorizar a autonomia” de cada doente na decisão do seu acompanhamento clínico no final da vida. Perante a inevitabilidade, é preciso “deixar partir” quando chega o momento da morte, destaca, sublinhando a necessidade de “evitar tratamentos inúteis ou desproporcionais” — onde se pode incluir também a alimentação e a hidratação artificiais para os pacientes em estado vegetativo sem qualquer previsão de melhorias.
“Julgo que este aspeto da distanásia está muito claro desde sempre. No magistério da Igreja há aspetos muito humanizantes”, sublinha o bispo. A importância de documentos como o agora publicado pela Pontifícia Academia para a Vida, diz Nuno Almeida, é colocar em evidência precisamente esta dimensão humana do problema do fim da vida, situado em zonas cinzentas que não se prestam a uma perspetiva estritamente a preto e branco — uma perspetiva que tem os seus riscos. “Facilmente, também entramos numa atitude muito rigorista, fundamentalista, que não ajuda a encontrar soluções e caminhos para que se possa dar dignidade e sentido à vida humana.”