Com as recomendações das autoridades de saúde para que se minimizem os contactos e ajuntamentos sociais, bem como a suspensão das missas, a forma como os velórios e os funerais estão a ser feitos em Portugal já está a sofrer alterações.
A prioridade da DGS foi precisamente estabelecer procedimentos que as funerárias devem seguir no caso de cadáveres de pessoas infetadas com Covid-19. Segundo as normas da autoridade de saúde, o cadáver não deve estar vestido e deve ser colocado num saco impermeável — “preferencialmente dupla embalagem”. O corpo é depois colocado num caixão fechado que não deverá voltar a ser aberto. “De preferência”, lê-se na diretiva emitida pela DGS, “deve optar-se pela cremação, “embora não seja obrigatório fazê-lo”. Outras instruções, podem ser lidas aqui.
Ainda que não haja, pelo menos para já, um único procedimento geral aplicado por todas as agências funerárias, há regras que já são comuns — embora muitos familiares a elas tentem resistir. Ainda antes de o Governo estabelecer “regras genéricas” para cerimónias fúnebres, já várias funerárias tinham passado a adotar por modo próprio regras mais restritivas nas cerimónias fúnebres.
https://observador.pt/2020/03/19/nao-receber-amigos-em-casa-para-jantar-as-recomendacoes-da-dgs-ao-governo/
Funerárias à frente do Governo
A Associação Nacional de Empresas Lutuosas (ANEL) já deu indicações às funerárias associadas sobre como devem proceder em todos os funerais, em tempos de pandemia. E nestas indicações para a generalidade dos funerais (quer seja por Covid-19 ou não) já constam muitos dos procedimentos recomendados pela DGS para os casos de infeção, afirmou Carlos Almeida, presidente da ANEL, ao Observador.
Nas recomendações enviadas às associadas da ANEL — e que, garante, Carlos Almeida já aplica na sua própria funerária para todas as cerimónias fúnebres — está a não realização de velórios. Por consequência, e tal como na recomendação da DGS, o cadáver é colocado nu, num saco impermeável, e colocado num caixão que não deve ser aberto. Ou seja, os familiares ficam impedidos de ver o ente querido uma última vez, bem como de escolher a roupa com a qual querem que seja enterrado ou cremado.
“Eu sei que é difícil para as pessoas porque muda os constrangimentos, que já são demasiados, muda as homenagens que idealizaram para os ente queridos. Claro que nem sempre as coisas são fáceis de acolher. Mas temos de conseguir explicar que também se trata da nossa saúde.”
Aconselhamos que nenhum cadáver seja preparado (não se devem realizar atuações de limpeza nem intervenções de tanatopraxia) nem com simples vestimenta. O cadáver deve ser introduzido num sudário impermeável e após pulverização com uma solução desinfetante, acondicionado dentro da urna”, lê-se nas recomendações da ANEL.
Já os funerais devem ser realizados “diretamente do local do óbito para o cemitério pretendido, o qual deverá ser o mais próximo possível do local do óbito”. Estas cerimónias podem contar com a presença de um celebrante (o padre, por exemplo) “junto da sepultura ou do crematório” e ter, no máximo, dez pessoas — desde que sejam “familiares mais próximos”.
Além disso, na funerária de Carlos Almeida, o planeamento do serviço fúnebre está a ser realizado “com data e hora pré-definida”, no máximo com dois familiares. Com as ordens de isolamento em casa, o presidente da ANEL diz mesmo que, em alguns casos, apenas a entrega e assinatura dos documentos necessários são feitas presencialmente — o restante, faz-se remotamente.
Estudo. Por cada 100 casos em Itália, Portugal já está a ter sete
Já os trabalhadores de cada funerária devem seguir procedimentos exigentes de higiene, com equipamentos de proteção individual. E nas viaturas fúnebres não devem ser transportados familiares nem amigos do defunto.
Depois “há recomendações que são transmitidas à própria família”, como o distanciamento social. “Nestes casos, as pessoas têm compreendido e têm mantido a distância. Mas é difícil. Aquilo que a senhor diretora-geral da Saúde mais diz é que não devem mexer nos olhos, não abraçar. Naturalmente, que, com a emoção, o que mais vai acontecer num funeral é isso. Estejam dez pessoas, estejam as que estiverem”, afirma Carlos Almeida.
Mas por que razão está o presidente da ANEL a aplicar já os procedimentos que foram recomendados pela DGS apenas para os casos de infeção?
Todos somos potenciais transmissores da doença. Fomos mais longe do que a DGS, porque quem nos garante com segurança, por exemplo, que uma pessoa que morreu numa unidade de cuidados paliativos, que estava com um ventilador, não tem a doença? Alguém foi fazer testes a essas pessoas? É esta a nossa preocupação. E não se esqueça também que se um dos meus funcionários ficar doente, todas as pessoas com quem ele contactou ficam em quarentena”. São, portanto, cuidados redobrados para “tempos excecionais”, justifica.
Carlos Almeida dá mesmo exemplo de uma família que acompanhou recentemente, e que resistiu à ideia de não realizar um velório. Perante a explicação do presidente da ANEL, a família acabou “por resignar-se”. “As coisas têm de funcionar um pouco assim, com resignação, com cedência, dentro do possível. Eu percebo que é duríssimo para eles… eu também quereria despedir-me da minha mãe. Mas a principal preocupação agora são os vivos”.
Práticas divergem de funerária para funerária
As recomendações da ANEL são isso mesmo: recomendações. Por isso, Carlos Almeida não tem garantias de que todas as associadas — e outras agências funerárias — estejam a cumpri-las.
O primeiro decreto do estado de emergência contempla que tem de ser garantida a inexistência de aglomerados de pessoas e é obrigatório o controlo das distâncias de segurança. Para isso, deve fixar-se um limite máximo de presenças, que é determinado pela autarquia local que exerça os poderes de gestão do respetivo cemitério. O objetivo é evitar situações como a que aconteceu em Espanha — em que mais de 60 pessoas ficaram infetadas com o novo coronavírus num funeral, no final de fevereiro, naquele que se tornou o principal foco de propagação do vírus no país até agora.
Ainda antes de conhecidas as indicações do Governo português, as agências já realizavam velórios e funerais com mudanças. A funerária Servilusa disponibiliza no site informações sobre o funcionamento de velórios e funerais em tempos do novo coronavírus. Embora refira que os velórios não são recomendados para falecidos com Covid-19, não aplica o mesmo procedimento de Carlos Almeida no caso dos velórios. “Podem-se efetuar velórios, contudo deve-se procurar limitar ao mínimo possível o numero de participantes“.
A empresa de funerárias aconselha ainda que as cerimónias fúnebres sejam reduzidas, optando-se pela “encomendação” (uma cerimónia conduzida por um padre em que este lê excertos do Novo Testamento, sendo comum nos velórios) “sem a celebração da palavra”. E pede que se respeitem “as regras de higiene, etiqueta respiratória e contingência social”.
Ao Observador, Paulo Moniz Carreira, diretor-geral de negócio da Servilusa, explica que a empresa adotou várias normas desde o início do surto em Portugal. Por exemplo, o contacto dos profissionais com o familiar/amigo de defunto é feito com máscara a luvas e o comercial “oferece uma máscara ao cliente, se este não a tiver”.
Sugerimos que a contratação do serviço funerário se faça na loja, onde há separadores de plástico para atendimento; por telefone e e-mail, nos casos de óbito por Covid-19 ou infeção respiratória. Ou eventualmente em casa do cliente, não sendo possível uma das outras”, acrescenta.
Nas regras desta funerária, mantêm-se os velórios no caso de mortes de pessoas que não estavam infetadas, mas com medidas de contenção: redução de pessoas e medidas de proteção reforçadas. “Se o contexto piorar é possível alargar proibição de velórios”, adianta Paulo Moniz Carreira, acrescentando que tudo depende das recomendações da DGS.
Pela experiência da Servilusa, nas duas últimas semanas, as famílias e amigos presentes em funerais estão “conscientes” dos riscos de contágio e acatam as recomendações de higiene e distanciamento.
O que muda com o estado de emergência. Que direitos vão poder ser suspensos e quais são intocáveis?
Já nos casos em que a morte se deva a Covid-19, “a Servilusa fará funeral sem velório, seguindo direto do hospital para local de destino final. Aconselhamos ainda a cremação, sem abertura da urna”, tal como preveem as recomendações da DGS. O cadáver será acondicionado de forma específica, “não sendo manuseado diretamente por nós”.
Quando vamos recolher um corpo, levamos a urna e dois bodybags [sacos para o corpo]. O corpo é colocado no primeiro body bag, fechado e selado. Colocamos um litro de produto desinfetante dentro deste body bag e depois fechamos o segundo saco. Por fim, é fechada a urna e é colocada uma fita isolante, para uma maior segurança”, explica.
“Igreja não está a ser profilática o suficiente”
O Patriarcado de Lisboa também publicou recomendações para batismos, matrimónios e cerimónias fúnebres. Nos dois primeiros, o conselho geral é simples: adiar. Caso não seja possível, é necessário limitar o número de participantes. No caso de funerais, a Igreja Católica sugere que os padres devem assegurar “as exéquias cristãs aos fiéis”, e, diz fonte do Patriarcado ao Observador, optar por funerais mais breves. Deve também haver um limite de pessoas nas casas mortuárias, de acordo com “as normas de segurança indicadas pela DGS para evitar os contágios que se dão por proximidade”.
Com a suspensão das missas decidida pela Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) e pelo Governo, foram, assim, proibidas as missas em velórios. Mas Carlos Almeida, da ANEL, apela a que a Igreja seja mais proativa, e recuse, efetivamente, fazer missas em velórios. “A Igreja devia fechar as capelas e não ceder aos pedidos mais insistentes de missa num velório, como tive conhecimento. Continuam a acontecer. Acho que a posição da Igreja não está a ser profilática o suficiente”.
Fonte do Patriarcado de Lisboa garante, porém, que, embora não haja fiscalização, não tem informação de que as igrejas não estejam a cumprir as regras. “Muitos sacerdotes optaram por fazer só as exéquias no cemitério“, refere.
Numa nota divulgada na semana passada, a Conferência Episcopal define que cada bispo é responsável por definir como orienta as celebrações. Segundo a agência Ecclesia, a orientação mais comum é a reserva de um espaço para o velório, mas apenas no dia do sepultamento, sem a abertura do caixão e apenas com a presença de familiares mais próximos. O rito incluiu apenas a Última Encomendação e a Despedida, mas sem missa. O caixão segue para o cemitério, sem o habitual cortejo fúnebre.
Falta de velório e funeral deixa familiares “num vazio”
Em Itália, o país europeu mais afetado pelo surto do coronavírus que ultrapassou esta quinta-feira a China em número total de vítimas (3.405 mortos), multiplicam-se as imagens e os relatos sobre funerais.
Os funerais realizam-se a um ritmo acelerado — dois jornalistas da Reuters testemunharam na segunda-feira uma cadência de dois funerais a cada hora. E o diretor da maior funerária local dá conta de que a média de 120 funerais mensais disparou para 600. Há mesmo vídeos que mostram camiões militares a transportar dezenas de caixões na cidade de Bérgamo, no norte de Itália. Nalguns casos, nem sequer é possível realizar uma cerimónia com os familiares mais próximos.
Outras imagens, como “cadáveres colocados em cápsulas”, impressionaram a psicóloga clínica Celeste Carvalho. Ao Observador, explica que o velório e o funeral fazem parte do processo de luto. “São tradições em que muitas vezes as famílias se reúnem, após anos afastados. Unem-se e cumpre-se o ritual.” Quando não existe esse ritual, o processo de luto complica-se ainda mais.
“A falta de ritual, da presença dos familiares, da possibilidade de chorar, deixa nas pessoas um vazio. E os rituais têm uma função importante: ajudam a pessoa a superar aquela fase, a entrar numa outra, de aceitação.” Sem eles, há uma “maior possibilidade de a pessoa vir a sofrer uma depressão”. “Não é só a morte. É o medo, o pânico“, conclui a psicóloga.
Texto atualizado com medidas do decreto de emergência