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Foi uma autobiografia que quase matou Caetano Veloso. Depois da repressão da ditadura militar, prisão e décadas de beleza pura, o cantor baiano estava em 1997, e pela primeira vez, a considerar a possibilidade de suicídio. A vida passou a correr entre os dedos, sujos de tinta, acabados de escrever páginas e páginas da autobiografia, Verdade Tropical, uma prova irrefutável que era mortal. Hoje, 20 anos depois, Caetano lança-se numa reedição, não apenas da autobiografia, mas de si mesmo, com força e ativismo político como se estivesse novamente sozinho contra o mundo. Sozinho não, com as canções do seu lado.
“Carmen Miranda não sabia dançar” é a grande novidade na reedição da obra que foi um marco literário no Brasil, um capítulo novo recheado das características divagações proustianas do cantor-escritor, que delineiam a narrativa destas quase 300 páginas. Há 50 anos, Carmen Miranda já tinha sido devidamente homenageada na canção “Tropicália”, agora serve de pretexto para Caetano refletir sobre a autobiografia, revelar a profunda depressão após a escrita em 1997, e acima de tudo, apresentar o que preocupa o cantor neste período conturbado brasileiro de impeachments, operações policiais e uma verdadeira guerra cultural entre conservadores e liberais.
“Devemos estar no bom caminho”
“Enquanto escrevo, o Brasil está em perpétua convulsão e há coisas demais sugerindo que não temos por que ser otimistas”, diz no capítulo inédito, sugerindo a máxima de Fernando Pessoa que “nós nos extraviamos a tal ponto que devemos estar no bom caminho”. Se este tipo de consideração político-social lhe parece descabido num livro sobre a vida de tipo que canta sobre a juba de leãozinho, é porque ainda não leu Verdade Tropical. Num primeiro plano, é uma autobiografia clássica, como a matriz escrita por Benvenuto Cellini no Renascimento, ou seja, sobre a infância, os amigos célebres, a ascendência (Tropicália) e a queda (prisão e exílio). Porém, é também um livro sobre a importância da música na composição do mito brasileiro, e uma reflexão profunda sobre a arte e vida durante o período de ditadura militar.
“Eu sempre quis muito/ Mesmo que parecesse ser modesto”, avisou Caetano em “Muito”. Em 1997, casado com Paula Lavigne, e um recém nascido ao colo, Caetano assistia enquanto o Brasil discutia os méritos e deméritos de livro, sendo possuído por uma repulsa incontrolável, uma reação física de ter escrito muito e muito.
“Eu não conseguia dormir nem comer. Emagreci muito. O surtos tinha semelhanças com os momentos de horror experimentados com o uso das drogas. Tinha sobretudo parecença com o que senti ao chegar de casa depois da prisão”, conta, ao lembrar duas partes memoráveis do livro, as experiências fracassadas com drogas e a saída tortuosa da prisão. Numa depressão inesperada aos 55 anos, motivada sobretudo pelo nascimento do filho mais novo, ainda consegue lançar Livros, o álbum que tem a canção “Um Tom”, que não por acaso, este ano faz parte do repertório dos concertos familiares ao lado dos filhos, Tom, Zeca (filhos de Paula) e Moreno (filho de Dedé, a primeira mulher e companheira ao longo da Verdade Tropical, desde a Bahia a Londres).
“Mas estou bem melhor que naquela altura, agora é só uma reedição”, desabafou a rir o cantor numa entrevista ao jornalista Pedro Bial. Só uma reedição, que chega no mesmo ano que Caetano, Uma Biografia, outro apontamento com história, a primeira biografia lançada no Brasil depois do sistema judicial dar sinal verde à publicação de biografias não autorizadas.
“Nesse contexto de incertezas, a primeira editora desistiu e nenhuma outra teve coragem de assumir o projeto. Isso foi em 2004”, conta ao Observador o escritor e poeta Carlos Eduardo Drummond, que assina esta obra com Marcio Nolasco. “Esperámos 11 anos até a mudança da lei, em 2015”. Caetano mantém uma atitude blasé em relação à obra, e indica até em “Carmen Miranda não sabia dançar” que nunca teve paixão pela proibição das biografias. Sobre Verdade Tropical, Carlos não tem dúvidas da qualidade, “é a versão de um dos períodos mais férteis e conturbados da música popular brasileira narrada por um de seus principais protagonistas”, com um “estilo literário particular”, e “uma forma complexa de pensar o mundo, que tornam o livro ainda mais singular.”
“De Noite na Cama”. Mas e a política?
No Brasil futebolístico, Mick Jagger é o “pé frio” mais famoso do mundo, isto é, uma pessoa azarada, de tal maneir que a sua simples presença significa a derrota certa da equipa que estiver a apoiar, no caso mais extremo, sete a zero, sendo que o próprio admitiu culpa de pelo menos um golo da Alemanha. Os mesmos pés frios deram passos de dança no ano passado em casa de Jorge Ben Jor no Rio de Janeiro, e como ninguém teve coragem de lhe dizer não, o vocalista dos Stones publicou no instagram uma foto na festa, ao lado de Caetano e Paula Lavigne, que supostamente estavam separados há 11 anos depois de duas décadas de casamento. Além de ser também personagem em Verdade Tropical, agora Mick é narrador da história recente de Caetano, pois foi este reencontro público que motivou o baiano a assumir a relação e voltar para o ativismo político ao lado de Paula, mesmo que isso implicasse combater no ringue mais perigoso dos nossos dias, a internet.
Sexo e internet são duas palavras de uma mesma conjugação, e para o compositor “De Noite na Cama”, sexo é assunto sério, papo reto, como se diz no Brasil. “Não sou nem heterosexual, nem homosexual, nem bissesexual” reflete no capitulo inédito, sobre a eterna questão da orientação do menino do Rio, um tema recorrente no livro, especialmente quando se trata de apreciar as feições de Chico Buarque. No fundo, Caetano é um ser sexual, que pensa profundamente, sofre na prisão com disfunção, e é livre de andar por aí a “caetanear o que há de bom”, nas palavras de Djavan:
Este ano, quando uma exposição queer em Porto Alegre fechou por protestos em relação à sexualidade explícita das obras, o cantor decidiu intervir contra o fecho, posicionando-se mesmo a jeito para levar de tabela dos famosos trolls das redes sociais. Quem fez os protestos originais contra a exposição “Queermuseu” foi a MBL (Movimento Brasil Livre), que acusaram as obras de zoofilia e pedofilia, e dias depois, orientaram a mesma fúria online para uma performance em São Paulo, começando uma guerra cultural no Brasil entre conservadores e liberais que se arrasta até agora.
“O maior problema do Brasil é a desigualdade. É disso que eles querem fazer a gente se esquecer, criando essas cortinas de fumaça, mas nós não nos esqueceremos”, disse na altura no programa de televisão Altas Horas. “Havemos de vencer a desigualdade. E é isso que nós temos que ter coragem de mudar, não ficar discutindo se um rapaz nu deitado e uma menina que foi levada pela mãe é pedofilia, é claro que não é pedofilia.” Atrás das telas dos computadores, os trolls decidiram quem seria o próximo inimigo abater.
Articulado por Paula Lavigne, o Movimento 342 junta artistas que querem combater os protestos conservadores, e também, lutar pelo fim de governo vigente brasileiro. Caetano assinou em baixo e seguiu para a luta, a combater de frente o MBL, que começou há cerca de duas semanas uma campanha de difamação para acusar Caetano de pedofilia, pelo início da relação com Paula enquanto a carioca era menor de idade, nos anos 80.
O criador da hashtag #CaetanoPedófilo foi agora proibido pela justiça de usar esta ferramenta de ataque, e uma figura bem conhecida entre os portugueses foi também proibida de fazer qualquer referência ao cantor, o “ator” Alexandre Frota, sob pena de multa pesada. “Nos últimos tempos, minha inclinação para à esquerda viu-se obrigada a explicar-se, dada a intensidade com que as forças conservadoras se levantaram no Brasil”, explica no novo capítulo. “Para muita gente isso foi um combustível para a polarização e a volta a classificações e desclassificações fáceis.”
A última batalha desta história ainda está para se desenrolar, depois de Caetano ter sido obrigado a descer do palco em São Bernardo do Campo, São Paulo. “Dá a impressão que não é um ambiente propriamente democrático” disse na hora aos jornalistas que noticiaram a ordem de tribunal a proibir o concerto. “No período democrático é a primeira vez” (que é impedido de tocar).
Na mesma entrevista improvisada, começa a cantar “Gente”, com os versos de “Gente quer comer/ Gente que ser feliz”. A gente são as sete mil famílias trabalhadoras e desalojadas, que improvisaram casa num descampado em São Bernardo do Campo, a quem o cantor tentava em vão entreter, sobre a alça da organização MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto). O concerto foi remarcado para dia 10 de Dezembro, num comunicado da atriz Sónia Braga.
https://www.youtube.com/watch?v=ICGByWJHDfo
“Juíza fascista e arbitrária” foi a acusação de Ciro Gomes sobre o cancelamento do concerto, um assumido candidato de esquerda à presidência em 2018, o único com o selo de aprovação de Caetano. Se o cantor sempre foi o tipo de esquerdista que critica a esquerda e apoia certos conceitos capitalistas, agora deu a definitiva guinada para a esquerda, confirmando que nós nunca o vamos conhecer de verdade, mesmo depois de 300 páginas da autobiografia. “You don’t know me/ Bet you’ll never get to know me/ You don’t know me at all”, cantou durante o exílio em Londres.
De Carmen Miranda a Salvador Sobral
“Caetano é uma pessoa muito sensível a questões que já o atormentaram em outras épocas, sobretudo no período militar, na década de 1960. Alguns fatos lhe trazem à memória passagens traumáticas e isso desperta nele um desejo incontrolável de se manifestar, de se posicionar e lançar sua voz contra ou a favor das questões”, explica o seu biógrafo. “Os assuntos mais recentes, por exemplo, estão muito ligados à questão da censura: a tentativa de extinguir o Ministério da Cultura, a proibição de uma peça, o fechamento de um museu, etc. Diante de assuntos dessa natureza, Caetano se posiciona com a veemência que lhe é peculiar.”
Durante “Carmen Miranda não sabia dançar”, descreve a recente desolação brasileira e a existência trémula da União Europeia, e dá um exemplo único de superação e possível caminho: os nossos grandes hits de sucesso em 2017, a geringonça e Salvador Sobral. “Um governo de esquerda que resiste às fórmulas de austeridade da União Europeia e mostra bons resultados com isso. A vitória de um refinado Salvador Sobral no cafona festival da Eurovisão chega-me com gosto de sintonia com essa conquista política — e me leva a lembrar o pessoano e desaforado brado de Agostinho da Silva: ‘Portugal já civilizou Ásia, África e América: falta civilizar Europa.”
Não estamos em 1997, mas as questões políticas que motivaram parte de Brasil a não comprar o livro ainda são as mesmas. “Vi que saiu nova edição do Verdade Tropical, de Caetano Veloso. Não li, e não gostei. Também não li o primeiro, do qual não gostei à época”, remata o colunista Miguel de Almeida, acusando o livro de ingenuidade política, que na altura apoiava algumas medidas do ex-presidente Collor. “Lula e Dilma foram os únicos que deixaram o Ministério Público e a Polícia Federal trabalharem em paz por muito tempo”, sugere o cantor na reedição, a lançar mais achas para a fogueira. Incapaz de ser mero passivo, este é o Caetano de 2017, que chega a receber em casa o controverso Deltan Dallagnol, procurador da Lava-Jato, para num tête-à-tête ouvir os argumentos da operação policial que tem criticado ao longo do ano.
“Como toda obra, essa também não é uma unanimidade”, confirma Carlos Eduardo Drummond sobre Verdade Tropical, “conheço gente que não terminou de ler, principalmente por conta do estilo ensaísta empregado pelo cantor.” As divagações proustianas em estilo de tese corrida, influenciado pela literatura francesa, ainda surpreendem, sobretudo no capítulo da prisão, “Narciso em Férias”, quase um livro à parte. “Se quem me está lendo é uma ou um jovem que vê este livro pela primeira vez, aconselho que, assim como veio a este parágrafo, vá direto ao capítulo Narciso em Férias”, sugere o próprio no início, aconselhando a ler somente sobre a prisão política de 1968 ao lado do colega e fundador da Tropicália, Gilberto Gil, evento de que já falámos mais detalhadamente por aqui.
Caetano, não imite Proust
“De início devo dizer que não sou a pessoa mais indicada para comentar a autobiografia de Caetano Veloso, pois não tenho bom conhecimento de música nem das composições do autor”, começa em ensaio Roberto Schwarz, o reverenciado crítico literário e estudioso de Machado de Assis. “Entretanto gosto muito do livro como literatura.” Para Roberto, a “prosa de ensaio” é perfeita para a surpreendente “conjugação de músico popular ao intelectual de envergadura”, resumindo que “a novidade que o livro recapitula e em certa medida encarna é a emancipação intelectual da música popular brasileira”. Roberto Schwarz acerta na mouche, e ainda deixa umas críticas para as tendências políticas do livro, que Caetano rebate também no capítulo inédito, apesar de aceitar a parte elogiosa do crítico literário.
A meio de Verdade Tropical, o escritor confessa que uma vez lhe contaram que a primeira regra para escrever bem é não imitar Proust. Fez o inverso, mas como não pode ser exatamente Proust, é Caetano Veloso, o compositor que mora na filosofia, que rima amor e dor, desorganizado nos pensamentos, que vamos reconhecendo como notas musicais, sons de Brasil e mais qualquer coisa, seja questões políticas ou sociais, como o próprio canta, “esse papo meu tá qualquer coisa e você tá pra lá de Teerã”:
Teerã ou Marraquexe, mas lá vamos concentrados a pescar umas pistas de dentro da cabeça do baiano. A solução é reler o livro, o caminho é longo, mas pode ser que seja desta que conseguimos perceber o que é que o baiano tem. “It’s a long, long, long, long way”.