Ao fim de uma semana de conflito armado, a guerra entre a Rússia e a Ucrânia escalou para o nível que o mundo temia — e os perigos de um desastre nuclear estão agora no centro da preocupação mundial relativamente a uma guerra que já fez milhares de mortos, incluindo centenas de civis ucranianos, e que corre neste momento o risco de se transformar num verdadeiro conflito nuclear. Em fevereiro, antes de invadir a Ucrânia, a Rússia tinha realizado exercícios nucleares supervisionados pelo próprio Vladimir Putin, que esta semana, já com as suas tropas em território ucraniano, colocou as forças nucleares russas em alerta máximo.
Na quinta-feira, o ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Sergey Lavrov, disse que Moscovo não está a planear começar uma guerra nuclear, mas fez questão de advertir que a Rússia tem um manual que descreve as condições em que o país pode usar armas nucleares. “Se começarem uma verdadeira guerra contra nós, terão de pensar nisso cuidadosamente”, avisou Lavrov.
Mas o receio dos perigos nucleares não vem apenas da ameaça russa de recorrer ao seu poderoso arsenal nuclear. Esta semana, uma parte considerável dos conflitos armado concentrou-se em redor das centrais nucleares ucranianas, uma parte central do passado e do presente do país. Um dos primeiros alvos das tropas russas foi a central nuclear desativada de Chernobyl, um dos símbolos maiores da queda da União Soviética. Sinónimo de um dos maiores desastres nucleares da história, ocorrido em 1986 e contribuindo decisivamente para o acentuar do declínio do regime soviético, a cidade de Chernobyl é ainda hoje uma zona de exclusão nuclear devido à presença de radiação prejudicial à saúde humana. Esta semana, as tropas russas tomaram o controlo da cidade e da central nuclear desativada, onde ainda trabalham vários funcionários para assegurar as operações de manutenção das instalações e de contenção da radioatividade.
Chernobyl encontra-se atualmente sob controlo dos russos e a Agência Internacional de Energia Atómica denuncia que os ocupantes estão a levar os trabalhadores da central nuclear desativada à “exaustão moral” devido à “pressão psicológica” que estão a exercer sobre os funcionários encarregados da manutenção da estrutura. Há relatos de que os trabalhadores estão impedidos de descansar e de se organizar por turnos. Com a central de Chernobyl fora do controlo ucraniano, há risco para a “segurança das instalações nucleares”, avisou a agência internacional.
Depois de tomarem o controlo de Chernobyl, as forças russas também já conseguiram capturar a central nuclear de Zaporíjia — a maior central nuclear do continente europeu. Os confrontos entre as forças russas e as forças ucranianas concentraram-se naquela central nuclear, na região sul da Ucrânia, nos últimos dois dias, mas intensificaram-se na quinta-feira. A dada altura, chegou mesmo a ser possível ver os confrontos armados em direto através das câmaras de segurança da central, cujas imagens são transmitidas em direto através da internet. Segundo os relatos das autoridades locais, as forças armadas russas terão entrado na cidade com uma coluna de 100 veículos militares, impossibilitando a defesa da central nuclear por parte das forças ucranianas. Na madrugada desta sexta-feira, já era dado como certo pelas autoridades ucranianas que a central nuclear de Zaporíjia estava nas mãos dos russos.
Para trás ficou uma madrugada intensa de combates que levaram à morte de três soldados ucranianos e um incêndio de grandes dimensões que chegou a levantar a preocupação de uma grande libertação de radioatividade.
Se a tomada de Chernobyl aparenta estar essencialmente carregada de simbolismo, a captura de Zaporíjia já levanta questões mais pragmáticas e de risco real. Para já, a Agência Internacional de Energia Nuclear garante que não houve libertação de material radioativo — mas condenou duramente a ofensiva russa, salientando que os confrontos armados podem causar danos irreversíveis na infraestrutura nuclear e levar à libertação de radiação perigosa. O ataque russo à maior central nuclear ucraniana deixa a nu a enorme dependência da Ucrânia em relação à energia nuclear e não representa apenas mais uma cidade tomada pelos russos: pode ser uma ferramenta geoestratégica vital para fazer vergar a Ucrânia.
Ucrânia depende da energia nuclear
Há um dado fundamental para perceber a relevância do ataque russo à central nuclear de Zaporíjia: a Ucrânia é atualmente o terceiro país do mundo mais dependente da energia nuclear. Segundo dados compilados pelo Our World in Data, a produção nuclear foi responsável por 52,34% da eletricidade produzida na Ucrânia em 2020. O país fica atrás apenas da França (com uma percentagem na ordem dos 69%) e da Eslováquia (acima dos 53%). Ao contrário do que poderia supor-se, o desastre nuclear de Chernobyl não fez a Ucrânia afastar-se da energia nuclear. Pelo contrário, a dependência dos ucranianos em relação à energia nuclear mais do que duplicou desde essa altura — em 1985, a energia nuclear era responsável por apenas 19,6% da eletricidade produzida no país.
Atualmente, de acordo com a Agência Internacional de Energia Atómica, existem 15 reatores nucleares operacionais na Ucrânia, distribuídos em quatro centrais nucleares. A estes, somam-se os quatro reatores nucleares da central de Chernobyl, permanentemente desativada, e dois reatores nucleares em construção na central nuclear de Khmelnytskyi, cuja capacidade de produção deverá ser sensivelmente duplicada com a entrada em funcionamento destes dois novos reatores.
A central de Zaporíjia é indiscutivelmente a maior de todas. Com seis reatores nucleares em funcionamento, aquela estrutura é responsável pela produção de 20% de toda a eletricidade consumida na Ucrânia, segundo a Bloomberg. Ou seja, é uma localização vital para o funcionamento do país. Sem ela, a Ucrânia vê-se privada de um quinto da sua produção elétrica, não só deixando milhões de cidadãos sem luz em casa como também colocando em risco o funcionamento de serviços centrais do país. Depois de ter sido capturada pelos russos, a central nuclear foi parcialmente desativada, de acordo com a AIEA. Esta sexta-feira, apenas um dos seis reatores nucleares estava em funcionamento — e apenas a 60% da sua capacidade máxima.
Isto significa que, neste momento, a captura da central nuclear por parte dos russos já desativou efetivamente a maior fonte de energia da Ucrânia. Além disso, a AIEA confirmou que já não tem contacto com os responsáveis ucranianos da central nuclear, pelo que não consegue continuar a sua missão de controlar os trabalhos da infraestrutura. A situação motivou uma reunião de emergência do Conselho de Segurança da ONU e o diretor da AIEA, Rafael Mariano Grossi, já se disponibilizou para viajar até à Ucrânia e para negociar com as forças armadas russas o acesso dos responsáveis da organização à central nuclear, para garantir o funcionamento seguro da infraestrutura.
Mesmo depois de partes da central, incluindo um dos seis reatores, terem sido atingidas pela artilharia russa e de as forças ocupantes terem tomado o controlo da estrutura, não foi registada qualquer fuga de radiação e os trabalhadores ucranianos continuam a operar a central, sob controlo russo. Ainda assim, o diretor a AIEA salientou que a situação “podia ter sido dramática”.
O Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, acusou a Rússia de espalhar o “terror nuclear” com os ataques à central e o ministro dos Negócios Estrangeiros ucraniano, Dmytro Kuleba, não poupou nas palavras quando, na noite de quinta-feira, lançou o alerta: “O exército russo está a disparar de todos os lados sobre a central nuclear de Zaporíjia, a maior central nuclear da Europa. O fogo já começou. Se houver uma explosão, será 10 vezes maior do que Chernobyl. Os russos têm de cessar fogo imediatamente, permitir a passagem aos bombeiros e estabelecer uma zona de segurança.”
Russian army is firing from all sides upon Zaporizhzhia NPP, the largest nuclear power plant in Europe. Fire has already broke out. If it blows up, it will be 10 times larger than Chornobyl! Russians must IMMEDIATELY cease the fire, allow firefighters, establish a security zone!
— Dmytro Kuleba (@DmytroKuleba) March 4, 2022
Os potenciais riscos de segurança para a Ucrânia e para toda a Europa caso a central nuclear perca a capacidade de manter o combustível nuclear a baixas temperaturas lançaram o pânico sobre o mundo ocidental. Com a maior central nuclear da Europa em mãos russas, os governantes europeus e dos EUA coordenaram-se para uma reunião de emergência do Conselho de Segurança da ONU. Falando perante os representantes mundiais nas Nações Unidas, a embaixadora britânica Barbara Woodward foi dura nas acusações à Rússia. “Foi a primeira vez que um estado atacou uma central nuclear abastecida e em funcionamento”, disse, salientando que tal ataque é “claramente ilegal à luz da lei internacional da convenção de Genebra”.
Mas, além dos riscos óbvios de segurança que colocam em causa a sobrevivência do continente europeu, o ataque russo à central nuclear poderá ser também estratégico na invasão da Rússia. É indiscutível que a central de Zaporíjia é um dos lugares vitais da economia ucraniana, sem a qual o país se vê profundamente enfraquecido, com a sua principal fonte de eletricidade desativada e sem capacidade para manter serviços fulcrais em funcionamento.
A particular importância deste ponto estratégico para a Ucrânia sugere que o objetivo da Rússia seria o de tomar o controlo da central nuclear, passando a controlar o abastecimento de eletricidade do país, e não o de provocar um desastre nuclear na região, que teria consequências igualmente devastadoras para o território russo.
De acordo com o investigador britânico James Acton, diretor do programa de política nuclear do think-tank Carnegie Endowment for Internacional Peace, é improvável que os russos quisessem deliberadamente atingir com artilharia partes da central nuclear, pelo que o incêndio e a destruição parcial de algumas estruturas terá sido um efeito colateral das operações militares com vista ao controlo da central nuclear. “Especularia que a central não foi deliberadamente visada como alvo e que foi, essencialmente, um dano colateral”, escreveu Acton. “A campanha russa tem sido brutal e desajeitada.”
James Acton destacou também que o grande problema técnico em causa prendia-se com a possibilidade de o incêndio que deflagrou na central cortar as ligações da estrutura à energia elétrica, que alimenta o sistema de arrefecimento do combustível nuclear. Sem arrefecimento, as temperaturas dentro de um reator poderiam atingir valores altíssimos, derretendo o combustível e conduzindo a explosões que poderiam levar à libertação de material radioativo. O incêndio, contudo, ocorreu num edifício usado para exercícios, pelo que não foi posto em causa o funcionamento dos reatores, que foram gradualmente arrefecidos e desativados.
Putin quer fazer ucranianos sofrer para derrotar regime de Kiev
Vários especialistas concordam que a intenção dos russos ao capturar a maior central nuclear europeia é a de usar a população civil como arma contra os ucranianos.
“Este é o modus operandi da Rússia”, disse ao jornal britânico Mirror o investigador Andrew Wilson, professor de estudos ucranianos na University College de Londres. “Eles atacam a população civil para a fazer sofrer e a fazer perder a fé nos seus líderes democráticos por não estarem a receber serviços básicos. A esperança da Rússia é a de que Ucrânia se renda, algo que penso que não vai acontecer.”
Wilson diz também não acreditar que o bombardeamento de partes da central nuclear não terá sido intencional. “Esperamos que não. Que tenha sido uma unidade local num ato de rebeldia, porque estas coisas são construídas para aguentar terramotos, mas não para mísseis ou bombardeamentos”, diz o académico, lembrando que a Ucrânia é profundamente dependente da energia nuclear e que é essa dependência que a Rússia está a procurar explorar. “Uma leitura otimista diz-nos que esta é uma estratégia brutal para retirar à população serviços básicos e não para fazer explodir o local.”
O investigador diz também que o facto de a Rússia ser vizinha da Ucrânia não sustenta a tese de um bombardeamento intencional da central nuclear: “Se o vento soprar na direção errada, vai atingi-los também.”
Uma perspetiva semelhante é apontada por Graham Allison, um especialista em segurança nuclear da Universidade de Harvard, que disse à BBC que o motivo mais provável por trás do ataque russo era a intenção de “fechar o fornecimento de eletricidade à área envolvente”, e não a de causar um desastre nuclear.
Oficialmente, as autoridades de Moscovo recusaram ter levado a cabo qualquer ataque dirigido à central nuclear. De acordo com declarações de Igor Konashenkov, porta-voz do Ministério da Defesa russo, a região de Zaporíjia estava sob controlo das forças armadas da Rússia desde o dia 28 de fevereiro e a central nuclear estava em pleno funcionamento até as forças armadas ucranianas terem atacado os russos. “Na noite passada, no território adjacente à central nuclear, o regime nacionalista de Kiev fez uma tentativa de levar a cabo uma provocação monstruosa”, declarou Konashenkov, acrescentando que o ataque foi feito por um “grupo de sabotadores ucraniano” durante a noite de quinta-feira.
Ainda segundo Konashenkov, os russos conseguiram repelir o ataque ucraniano e os tais sabotadores teriam pegado fogo à central nuclear quando fugiram.
Trata-se de uma versão totalmente oposta à descrição feita pela Ucrânia sobre o ataque. O regime de Kiev sustenta que foram as forças armadas russas que atacaram a central nuclear com bombardeamentos e que as forças ucranianas procuraram defendê-la, mas sem sucesso. De igual modo, na transmissão em direto das imagens de videovigilância da central nuclear foi possível ver aquilo que pareciam ser bombardeamentos diretos num edifício da central nuclear.
Um ajuste de contas com a história?
Além da estratégia militar subjacente à captura da principal fonte de energia elétrica da Ucrânia, há especialistas que vêem no facto de a Rússia estar a empenhar recursos militares nas centrais nucleares ucranianas um meio de Vladimir Putin ajustar contas com a história — sobretudo no que respeita à captura de Chernobyl.
O desastre nuclear de Chernobyl, em 1986, ainda é um espinho na história da Rússia e da Ucrânia. Considerado o maior desastre nuclear da história humana, o colapso de um dos reatores da central nuclear de Chernobyl é habitualmente associado a uma aceleração do declínio da União Soviética, que viria a colapsar em 1991. Os seus impactos perduram até hoje e a região em torno da antiga central nuclear, agora desativada, é atualmente uma zona de exclusão. Trata-se de uma região delimitada num raio de 32 quilómetros em torno do lugar da antiga central onde praticamente não vivem seres humanos — muitas vezes considerado um museu a céu aberto, uma vez que é possível visitar a localidade e ver ainda muitos vestígios do que era a União Soviética. Apesar de encerrada, a antiga central nuclear ainda tem funcionários, que fazem turnos para assegurar os serviços de manutenção da estrutura e garantir a segurança do local, que continua a ser objeto de atividades de limpeza que deverão durar mais algumas décadas.
O modo como as autoridades soviéticas lidaram com o desastre nuclear, procurando esconder a verdade sobre o acidente (recentemente retratado numa minissérie da HBO que voltou a trazer o debate sobre o desastre para a atualidade), é muitas vezes associado ao colapso da União Soviética e à declaração de independência por parte da Ucrânia.
A memória do acidente continua bem presente na memória de russos, ucranianos e bielorrussos. “Os nossos defensores estão a dar as suas vidas para que a tragédia de 1986 não se repita”, disse o Presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, numa mensagem publicada no Twitter quando as forças russas tentaram capturar a central desativada de Chernobyl. “Isto é uma declaração de guerra contra toda a Europa.”
De acordo com o investigador britânico Taras Kuzio, especialista em assuntos ucranianos, é imperioso analisar a captura de Chernobyl por parte da Rússia com base na sua dimensão enquanto vitória simbólica para o próprio Vladimir Putin, um ex-operacional do KGB durante o período soviético que testemunhou o colapso da União Soviética já numa fase avançada da carreira. “Putin tem a mentalidade de alguém que não consegue ultrapassar o facto de a União Soviética se ter desintegrado há 30 anos e de tudo se ter começado a desintegrar depois de Chernobyl”, disse Kuzio à BBC, acrescentando que é necessário monitorizar ao detalhe as decisões de Putin. “O que ele está a fazer na Ucrânia não tem precedentes. Porque é que devemos assumir que ele não vai fazer mais nada?”