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Haverá sempre algo a dizer e que tem de ser dito pelo espectador, "porque o filme, mal se realiza, passa a ser vosso", disse o realizador
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Haverá sempre algo a dizer e que tem de ser dito pelo espectador, "porque o filme, mal se realiza, passa a ser vosso", disse o realizador

Haverá sempre algo a dizer e que tem de ser dito pelo espectador, "porque o filme, mal se realiza, passa a ser vosso", disse o realizador

Víctor Erice de olhos bem abertos, 30 anos depois: "O cinema, esse organismo vivo"

Há três décadas que o realizador espanhol não filmava uma longa-metragem. No LEFFEST apresentou "Fechar os Olhos" (que agora se estreia em sala) e falou de memória e do cinema como organismo vivo.

Em 2023 vimos obras de diferentes cineastas em homenagem ao cinema que os levou de espectadores a realizadores. Como uma despedida de um tempo perdido, marcado por memória sem métodos apressados, distantes das exigências comerciais das plataformas de streaming e de fórmulas comuns entre tantas criações. Wes Anderson, com o seu Asteroid City, olhou para a figura do ator, esse bicho de várias peles, como quem olha, com fascínio, para uma obra por acabar. Kléber Mendonça, em Retratos Fantasmas, voltou à casa mãe, ao seu Recife, para fazer um elogio fúnebre e divertido às salas de cinema da sua terra, substituídas por igrejas evangélicas. Nani Moretti, com Sol do Futuro, atacou de frente os tempos modernos, os dias do algoritmo, do cinema em casa, das cenas de ação aparentemente baseadas em marionetas, num tempo que não volta para trás.

Fechar os Olhos, o novo filme que interrompe uma ausência de trinta anos de Víctor Erice, chega às salas de cinema portuguesas no próximo dia 7 de dezembro. Resume, quase em jeito de conclusão melancólica, toda esta vontade de contrariar lógicas massificadas da indústria. O realizador fez uma passagem pelo LEFFEST em novembro (durante o qual foi premiado por este filme) e foi voz principal numa conversa sobre o seu objeto sensível, que é muito sobre o cinema dentro do cinema e das suas possibilidades em continuar a mover-nos para outra dimensão. Fechar os Olhos é um filme que pega na memória para nos falar sobre consciências — a do espectador, a do cidadão e a do ator.

É um filme sobre envelhecer, arte que Víctor Erice garante ainda não dominar aos 87 anos de idade. E sobre nomes, os que damos aos nossos filhos, os que nos dão sem que nos peçam licença, os de personagens — da literatura à sétima arte — que nos ficam na cabeça. Fica difícil explicar o que é, afinal, Fechar os Olhos, título inspirado nesse ato aparentemente banal que tem tanto de poético. Haverá sempre algo a dizer e que tem de ser dito pelo espectador, “porque o filme, mal se realiza, passa a ser vosso”, disse o realizador. Foi sobre essa missão que o espanhol veio deixar um testemunho pessoal perante a audiência do Cinema Nimas.

[trailer oficial do filme “Fechar os Olhos” de Víctor Erice:]

Em Fechar os Olhos estamos nos anos 40, dentro de uma mansão que pertence a um ser fantasmagórico de grande porte. Chama-se Senhor Levy, toca músicas sefarditas ao piano. Está à espera de um tipo responsável por ajudar outros a fugir da ditadura de Franco, de cabelos encaracolados e gabardine verde, desafiado por este “Rei Triste” — é assim que se apresenta na primeira cena do filme, “O Último Olhar” — a encontrar a filha de mãe asiática. O senhor Levy está prestes a morrer e quer ver a sua filha pela última vez. O detetive improvisado é Julio Arenas, ator espanhol, bon vivant e bom de mãos para ofícios mecânicos, visto pela última vez naquela cena em que se despede do senhor Levy.

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Fechar os Olhos conta a história de um filme nunca terminado porque o tal protagonista, Julio Arenas, desapareceu subitamente sem deixar rasto. Deixou o realizador e o melhor amigo, Miguel Garay, com uma obra inacabada nos anos 90 e uma vida em silêncio, à beira mar, junto do seu cão, de um par de amigos e de contos por escrever no sul de Espanha. Um programa de televisão que investiga crimes por resolver contacta o antigo realizador para reconstruir toda a história. A ficção e a realidade misturadas num produto televisivo. Começa assim a jornada de Miguel Garay, que revisita velhos amigos como o seu antigo montador, zelador de um “cemitério” de fitas em película, antigos amores comuns com Julio Arenas como Lola ou a filha do ator, que só conheceu o pai através das vozes de personagens que encarnava. Sempre à procura do seu ator, do seu amigo e, diga-se, de conseguir encerrar aquele episódio inacabado que lhe custou a possibilidade de viver uma outra vida.

“Só algumas ideias permanecem no tempo de um realizador. A experiência pessoal de ser um realizador que não pode acabar um filme também me pertence. Fiz o Sul em 1983 e acho que está inacabado. O eco dessa experiência permaneceu. Vivi o cinema como um feito existencial, que é diferente do compromisso profissional. O existencial pode integrar o exercício da profissão, mas vai mais além. É um compromisso total, permanece no tempo. Essa frustração, está na raiz deste projeto. Finalmente consegui chegar lá.” Assim começou a apresentação de Víctor Erice.

"O cinema tem sido uma aventura do conhecimento. Faço filmes para ir ao encontro de detalhes que não conheço dentro de um determinado tema. Agora acho que começo a entender algumas partes", garantiu. Um "praticante-não-crente", como quase todas as suas personagens, de uma ideia de cinema clássico, que, apesar de tudo, também pode ser encontrada no cinema contemporâneo.

O realizador fez muito poucas longas-metragens, sendo a mais destacável uma de 1973, Espírito da Colmeia — isto num carreira também feita de curtas. Todas falam entre si: da história de Espanha, da memória e das relações mutantes que vamos tendo uns com os outros. Manteve-se quase sempre à margem da indústria, estudou cinema em Madrid mas nunca guionismo e sente que, neste momento, a indústria do audiovisual está a estragar a experiência da cinefilia, do jogo entre o autor e o espectador, duplamente participantes na busca por respostas. “O cinema tem sido uma aventura do conhecimento. Faço filmes para ir ao encontro de detalhes que não conheço dentro de um determinado tema. Agora acho que começo a entender algumas partes”, garantiu. Um “praticante-não-crente”, como quase todas as suas personagens, de uma ideia de cinema clássico, que, apesar de tudo, também pode ser encontrada no cinema contemporâneo.

O objetivo continua a ser “fazer com que o espectador saia diferente da sala”. Víctor Erice, sempre calmo, é firme em cada palavra que diz. Parece praticante de um cinema a desaparecer lentamente. E não tem medo de envelhecer. Ou pelo menos não parece ter. “O montador do Miguel Garay diz-lhe que ele não aprendeu a envelhecer. Que tem de ser ‘sem temor nem esperança’, como na lenda dos gladiadores romanos, muito comentada ao longo dos anos por filósofos e escritores. Não sei se é possível aprender a envelhecer. O extraordinário em qualquer expressão artística é que fixa esse sentimento”, contou.

Dentro desse sentimento que atravessa Fechar os Olhos, todas estas personagens avançaram mas não esqueceram. O mistério do desaparecimento de Julio Arenas, a dúvida sobre o que terá feito ou não, os filmes que cada um deles fez (e continua a fazer) para justificar essa ausência de explicação, o luto. Tudo isto é aproveitado por Víctor Erice para despertar na reflexão do público a mesma pergunta que o elenco tem: o que é que realmente aconteceu? “Joguei com uma certa convenção de que o ator é uma crónica de sucessos, ou seja, há por detrás um enigma. Um dos grandes desafios era passar do enigma para o mistério, que é uma categoria superior. Os filmes de enigmas policiais resolvem-se no final. O mistério, pela sua natureza, não se pode fechar. O final é aberto, oferece-se ao espectador, é ele que, no seu interior, terá a resposta. Nem eu tenho a resposta definida nem quero ter”, referiu.

Quando Victor Erice destapa um pouco mais sobre o processo de criação deste Fechar os Olhos, entramos também num universo feito de acasos nas rodagens

Víctor Erice, sempre munido pelas suas referências, que vão da pintura à poesia de Jorge Luís Borges mas também da música uruguaia (música, sim, outra personagem transcendente que ajuda nos movimentos de cada peça de Fechar os Olhos) pode não parecer católico mas, dentro da sua militância por esse cinema que está a desaparecer, parece ainda acreditar em milagres.

“Já não há milagres no cinema desde o [realizador dinamarquês Carl Theodor] Dreyer”, refere o montador no filme, que não acredita que o plano que Miguel Garay desenhou para uma reconciliação com o seu melhor amigo vá resultar. “Depois de ver o Ordet [em português A Palavra, filme de 1955], mesmo quem é agnóstico perceber que a arte de Dreyer é um milagre verdadeiro através do tratamento artístico. É por isso que refiro que no cinema já não existem milagres. Também tive essa experiência através de vários filmes. É um sinal de identidade como espectador. Experienciei-o também com os filmes dos grandes maestros. Pode acontecer até com cinema contemporâneo. Acho que essa relação não existe no audiovisual. Vivemos nesse regime. Todos os filmes têm de seguir um cânone de tratamento, um cânone económico, onde é difícil chegar a esse de ligação emocional, quase”, refletiu o cineasta espanhol.

“O cinema”, lembra, “esse organismo vivo” que está a ser desrespeitado pela indústria do audiovisual. “Não existe só nas páginas de um guião. A imagem e o som têm de ter a mesma importância para o realizador. O sistema do audiovisual, em que as grandes corporações regulam como deve ser feita a rodagem, como deve ser a fotografia e quais os arquétipos, não é um organismo vivo”. Mas se não é isso, é o quê? “São projetos que nascem já mortos. Se há alguma arte nessas propostas é a de um taxidermista.”

"Acredito muito na intervenção do acaso, mete-se muito nas nossas vidas. O sistema de produção industrial de cinema trata, dentro do possível, de abolir o acaso. Digo isto por causa da música do 'Rio Bravo', que não estava prevista no guião. No dia anterior à rodagem descobri que o ator conhecia a música, mesmo sem saber se teríamos os direitos, decidimos usar. Nem sempre o acaso resulta. Produziu-se um certo milagre."

Frase letal digna de um combate entre cinema independente e cinema comercial que marca a posição deste autor. Quando Víctor Erice destapa um pouco mais sobre o processo de criação deste Fechar os Olhos, entramos também num universo feito de acasos nas rodagens, de músicas populares, de momentos improvisados. “Acredito muito na intervenção do acaso, mete-se muito nas nossas vidas. O sistema de produção industrial de cinema trata, dentro do possível, de abolir o acaso. Digo isto por causa da música do Rio Bravo [filme de 1959, um um dos clássicos de Howard Hawks, com John Wayne e Dean Martin], que não estava prevista no guião. No dia anterior à rodagem descobri que o ator conhecia a música, mesmo sem saber se teríamos os direitos, decidimos usar. Nem sempre o acaso resulta. Produziu-se um certo milagre.”

Na conversa que protagonizou no LEFFEST, Víctor Erice despediu-se da plateia com uma série de avisos e conselhos para a próxima geração de cineastas. É que os realizadores “são espectadores impossíveis do cinema”, porque costumam ver todos os defeitos do mundo nas suas obras. Pelo menos, acontece com o espanhol. “Um espectador é um cineasta em potência, passei mais tempo a ver do que a fazer filmes”, confessou. Deixou ainda um último ensinamento, que não é dele, mas sim de outro mestre, Jean-Luc Godard: a vida “é um filme mal realizado”. “Quem é que completa este filme? São vocês, vocês são os agentes. O escritor Joseph Conrad dizia que todos temos um interlocutor interno e que dialogamos com ele. O que não está no filme, não existe”. Não se sabe quando teremos outras confissões de Víctor Erice, alma inquieta, tal como Julio Arenas ou Miguel Garay, as figuras do filme que agora se estreia. Aproveitemo-la.

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