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Talvez ainda ninguém tivesse visto semelhanças entre o Colégio Militar e um clube de futebol. Mas a verdade é que, no Colégio Militar, não importa ser o João, a Manuela ou a Vanessa. Nem importa ser o Carvalho, o Lopes ou o Monteiro, como se apelidam habitualmente de militares para militares. Aqui, o que enche o orgulho é ser o 35, o 225 ou o 410 — como no futebol o que interessa é ser o 7 ou o 10. Aqui, os alunos são números. E isso não é mau. É um privilégio.
“Há famílias que passam o mesmo número do avô para o pai, para o filho e para o neto”, conta ao Observador o diretor da escola, Coronel Sardinha Dias. São todos ex-alunos e pedem o mesmo número para o próximo membro da família a ingressar na escola. É o valor da herança a funcionar. “Quando os filhos têm 2 ou 3 anos, os pais já solicitam a reserva do número. Há pais que reservam o número de aluno para os filhos logo à nascença. É como fazê-los logo sócios do Benfica!“, exclama, entre risos de orgulho. “Nós quando perguntamos a um aluno ‘quem és?’, eles não dizem ‘Filipe’ ou ‘Manuel’. Eles dizem ‘99’”, conta Luísa Vasconcelos, mãe do aluno “99” (ou seja, de Manuel Vasconcelos, do 12.º ano).
Esta escola agarra-se à pele dos alunos como um adepto que esmaga o cachecol contra o peito num jogo tenso. Eles sabem os ideais de cor, elogiam o rigor e a disciplina e assumem os tabus da escola: drogas, roubos e homossexualidade. Como qualquer equipa, o Colégio Militar gera amores e ódios. Para uns, é uma instituição de referência. Para outros, é sinónimo de disciplina excessiva.
“Elas estudam mais que nós”
A equipa da escola é mista desde há quase três anos. Na altura, vários pais, alunos e antigos alunos do Colégio Militar manifestaram-se contra a entrada de meninas. Alguns chegaram a dizer que queriam “matar” o Colégio Militar, porque se iria desvirtuar a essência da escola.
Por decisão ministerial, encerrou-se o Instituto de Odivelas (IO), colégio interno exclusivamente feminino, e as meninas do IO foram conviver com os meninos da Luz, habituados há 211 anos a uma escola exclusivamente masculina. A reforma foi defendida pelo então ministro da Defesa, José Pedro Aguiar-Branco. Segundo o responsável, o custo por aluno nas escolas militares era muito superior ao custo por aluno na generalidade das escolas públicas. Em setembro de 2015 foi inaugurado o internato feminino. Aguiar-Branco aproveitou a convivência de género para falar de um “momento histórico” e do fim da discriminação.
O primeiro ano não foi fácil. Nem para eles, nem para elas, nem para os responsáveis. Para Tomás, 16 anos e a frequentar o 11.º ano, a chegada das raparigas foi “muito esquisito”. Afinal, “foram quase seis anos só com rapazes”, de manhã à noite. “De repente aparecem raparigas e nós ficamos: hummmm”, recorda, enquanto solta uma gargalhada. “A maneira de pensar delas é muito diferente da nossa. Elas apareceram aqui com outras ideias…”
E até nos professores terá havido mudanças. Como qualquer orador que se preze, alteraram o discurso porque o público se alterou. Palavra do n.º 192. “Elas contam que no Instituto de Odivelas falavam muito umas com as outras durante as aulas. Aqui no colégio é um bocadinho mais rígido. E os professores mudaram. Não podiam ser tão rígidos com elas porque elas estavam a habituar-se à nova casa. É normal, eu compreendo. Agora já estão mais habituadas e os professores estão a ser um bocadinho mais rijos”. Elas até podiam falar muito na sala, mas o cérebro e a disciplina não saíam de cena. “Algumas são um bocadinho melhores alunas do que nós. Estudam muito, elas”, exclama Tomás Bastos, com risos pelo meio.
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Em 2013 foi anunciada a reforma das três escolas de ensino militar: Colégio Militar, Instituto de Odivelas e Pupilos do Exército. Os Pupilos têm ensino técnico-profissional e também têm alunas.
Manuel Vasconcelos está no 12.º ano e é graduado — e isso implica liderar e enquadrar os mais novos. Foram seis anos de rapazes com rapazes e, agora, orientar os dois géneros é outra coisa. “Os rapazes funcionam de uma maneira e as raparigas funcionam de outra. Rapazes e raparigas juntos é um mundo diferente. A forma de pensar é diferente, a organização das ideias é diferente”, analisa. Mas o que é que os separa? “Por exemplo, a energia de manhã. Isso nota-se muito. Os rapazes demoram mais a aquecer”.
Elas são mais cuidadosas nos estudos, asseguram os dois rapazes. “Os rapazes são mais desarrumados, mesmo nos cadernos e nos livros. As raparigas fazem as coisas com mais antecedência”, explica Vasconcelos. Dificuldade acrescida: “Temos a questão hormonal, naturalmente. Altera o pensamento dos rapazes e o pensamento das raparigas em relação aos estudos”. Vasconcelos não se refere às hormonas, mas refere-se àquilo que as hormonas provocam: as paixões.
Se os rapazes são de Marte e as raparigas são de Vénus, agora têm de conviver todos no Planeta Colégio Militar e, para dois ecossistemas habituados a viver sozinhos, até o timbre do outro faz comichão. “Elas disseram que o mais estranho foi haver muita voz grossa no dia a dia. Nós somos muitos, todos a falar com esta voz grossa, elas acharam esquisito. Estão habituadas àquelas vozinhas mais agudas (risos)”, diz Tomás.
Duas das “vozes fininhas” a pisar terreno árido foram Carolina e Mariana Vaz, mais conhecidas como 286 e 287. Primeiro ano de raparigas, primeiro ano delas no colégio. “Foi um pouco difícil por ser o primeiro em 211 anos que havia raparigas. Foi difícil porque éramos trinta e duas e os rapazes punham-nos um pouco de parte, mas agora ao longo do tempo fomos convivendo. Não se davam muito connosco. Brincávamos um pouco mas havia sempre aquela distância”, lembram as gémeas, hoje no 7.º ano.
As hormonas saltitam. Mas é proibido namorar
Quando os “meninos da Luz” se juntaram às novas “meninas da Luz”, agitaram-se as hormonas e apareceram as primeiras paixões. Tomás Bastos foi um dos atingidos. Namora há alguns meses com uma aluna da escola e assume-o entre sorrisos inocentes. Mas as palpitações não o deixam desviar-se das regras e da disciplina. “Sou amigo dela cá dentro e lá fora temos a nossa vida. Ao fim de semana fazemos as nossas coisinhas”.
É mesmo preciso esperar pelo fim de semana, segundo o Regulamento Interno/Guia do Aluno do CM. No capítulo “Deveres do Aluno”, ponto 30, lê-se como regra a cumprir: “Para além da normal convivência, solidariedade e camaradagem, não praticar ou adotar qualquer comportamento, atitude ou manifestação de relacionamento afetivo dentro do Colégio, ou no exterior, quando fardado, que possa comprometer os princípios inerentes a um ambiente pedagógico saudável”. Beijinhos e abraços apertados sim, mas só fora do Colégio e vestidos à civil. Fardados, não. Lá dentro, podem falar. “Sentamo-nos, falamos. Como se fosse um amigo meu”.
Como não se pode namorar na escola, tem de se namorar fora dela. E se só se pode namorar fora dela, os pais têm de saber.“Pois, isso é complicado”, assume a mãe. “É preciso conter. É um treino.” O pai reforça: “No cumprimento das regras do Colégio, ele é implacável. Desde miúdo”. E brinca com a situação: “Mas agora namora-se com os polegares, não é? E não é só no colégio”.
Nuno Vaz, pai das pequenas gémeas agora no 7.º ano, ainda não se preocupa com paixões das filhas. “Está regulamentado mas é algo que ninguém consegue controlar. É um bocadinho o amor platónico: olha-se, uns bilhetinhos… (risos). Isso não nos preocupa. Há restrições, sim. Mas costuma dizer-se que o coração vence sempre. Eles lá hão de arranjar os seus momentos para poderem tocar pelo menos a mãozinha com a mãozinha (risos)”.
Luísa Vasconcelos, advogada, aplaude o ponto 30 do código escolar. “Por um lado, estamos a contrariar a natureza humana, mas eles não estão aqui para namorar. Estão aqui para estudar. É como aquelas empresas que não gostam que haja maridos e mulheres a trabalhar juntos. A ideia é que eles se concentrem no estudo porque isto não é uma colónia de férias”.
Os espaços dos internatos são mesmo ao lado um do outro, mas há sempre alguém a ver as movimentações. Há duas vigilantes no internato feminino e dois vigilantes no internato masculino. Fazem turnos de oito horas, 24 horas por dia. Há também videovigilância nos corredores das camaratas, mas não nos quartos.
Manuel Vasconcelos, aluno do 12.º A, não tem nada a declarar no campo do amor. Namoradas: zero. Mas tem opinião — e tem a disciplina apreendida. “Os relacionamentos são inevitáveis. Essas coisas são naturais. Tem é de se ver o local onde são feitas. Tem de haver respeito e postura quando se está dentro do colégio”. Ponto final.
O subdiretor da escola explica a regra: “Eles internamente tratam-se como irmãos, convivem como irmãos, partilham o espaço como irmãos. O assumir efetivo de afinidades cá dentro, para além de ir contra os princípios militares, ia transtornar essa relação pura e fraterna entre eles. E eles respeitam-no. Têm conseguido manter um ambiente saudável para a instituição”. Há luz verde apenas para a “conversa”. E para o aperto de mão.
“Alunos homossexuais são excluídos”
“Nós temos três tabus no colégio: drogas, homossexualidade e roubos”. A tríade é apontada por Tomás Bastos. O n.º 192 já soma seis anos a estudar, a viver e a dormir no Colégio Militar. Sabe o certo e o errado dentro daquelas paredes. “Homossexualidade aqui não é aceitável”, reitera. E se um amigo lhe disser que é homossexual? Aqui, Tomás hesita. “Isso é um bocadinho complicado porque nunca aconteceu… Deve ser muito difícil para um homossexual estar a dormir todos os dias com rapazes. É como um homem e uma mulher, ele vai acabar por apaixonar-se. Ele vai mostrar algum afeto”.
O diretor defende que “essas situações têm de ser tratadas com algum cuidado”. Lembra que “aqui há uns anos, no Exército, era motivo para expulsão direta, quer do quadro permanente, quer contratados”. Mas o Colégio Militar não é um conjunto de mini-tropas e, aqui, “as situações têm de ser tratadas com os pais”. Mas garante: “Não expulsamos ninguém por ser homossexual”.
Questionado sobre se a homossexualidade é ou não realmente um tabu, o subdiretor faz alguns segundos de silêncio. Está a medir as palavras, está a elaborar uma resposta. “Hummm… Como é lógico, a sexualidade é um tema aberto na sociedade e a homossexualidade é aceite legalmente. Podemos dizer que [haver esse tabu] é uma maneira de salvaguarda do são relacionamento entre eles no internato. Repare, eles não se cobrem para nada, não se escondem para nada, não têm armários fechados… para poderem viver como irmãos que são. E na salvaguarda desse relacionamento, é bom que não haja afetos”.
Mas esta tríade de tabus é passada para eles? “Não é passada para eles. É deles. Sempre que ocorre qualquer situação dessas, sabemo-lo imediatamente. Eles próprios se encarregam disso“. Mas o plano de ação não é o mesmo para quem rouba, para quem consome drogas ou para quem é homossexual. “Nas situações de furto e de droga é transferência imediata de escola. Nas situações de afetos [homossexuais], obviamente não podemos fazer transferência de escola. Falamos com o encarregado de educação para que percebam que o filho acabou de perder espaço de convivência interna e a partir daí vai ter grandes dificuldades de relacionamento com os pares. Porque é o que se verifica. São excluídos”, garante o responsável.
https://soundcloud.com/observadorpt/alunos-homossexuais-sao-excluidos
Se se sabe a reação a uma situação, é porque ela já se verificou. Não aconteceu muitas vezes, assegura o Tenente Coronel António Grilo. “Lembro-me de uma. Um aluno tentou acarinhar outro aluno. Os pais ainda quiseram que ele se mantivesse na escola mas a partir daí perdeu o espaço. Foi completamente excluído, o que num ambiente de internato, 24 horas por dia, é extremamente pesado para o bem estar e para o equilíbrio de uma pessoa”.
Mas como é que a informação chegou à direção? “Passados 30 segundos, toda a gente sabia. O colégio parece um Big Brother. Tudo se sabe. A informação passa. Agora repare o que é um aluno numa situação crítica e complicada, e que deveria ter alguma salvaguarda de identidade… Passado uma hora, 600 sabem e 600 estão a comentar. É complicado“. O aluno acabou por sair da escola.
Disciplina boa ou disciplina má?
27 de fevereiro de 2007. Este é um dos dias que as chefias do Colégio querem esquecer. O episódio saltou para as páginas dos jornais, as palavras “violência” e “maus-tratos” eram associadas ao Colégio, seguiram-se debates na televisão com pais e ex-alunos a defenderem o bom nome da instituição.
O caso terá acontecido assim: um miúdo chegou à camarata e viu a sua cama desfeita. Irritado, proferiu um insulto. Um dos graduados, de 17 anos, calçou uma luva castanha de cabedal e deu-lhe uma bofetada na cara. Acertou-lhe no ouvido e o aluno sofreu uma perfuração do tímpano. Esteve 688 dias em convalescença.
Código de honra do aluno do Colégio Militar
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1- Amar e honrar a Pátria
2- Dignificar a farda que enverga
3- Cultivar a disciplina
4- Dedicar à sua formação todo o seu esforço e inteligência
5- Ser verdadeiro e leal, assumindo sempre a responsabilidade dos seus atos
6- Praticar a camaradagem sem denúncia nem cumplicidade
7- Ser modesto no êxito, digno na adversidade e confiante face às dificuldades
8- Ser generoso na prática do bem
9- Repudiar a violência, a delapidação e o despotismo
10- Ser sempre respeitador, afável e correto
Este e outros casos de agressões chegaram a julgamento. Oito ex-alunos do CM foram constituídos arguidos, acusados de seis crimes de maus tratos, entre 2006 e 2008. O ex-aluno que provocou a perfuração do tímpano haveria depois de pedir “desculpa” à vítima mas argumentou que estava apenas a seguir a prática habitual. “Certo tipo de castigos corporais e físicos eram normais no Colégio Militar. Se algum aluno cometia um erro, como não fazer a cama, chegar atrasado ou faltar ao respeito tinha de ser castigado. Não havia nada escrito, mas era um código de conduta que foi passando de geração em geração que todos no Colégio sabiam existir”, afirmava o arguido na primeira sessão do julgamento que decorreu a 10 de outubro de 2013, na 6.ª Vara Criminal de Lisboa, relatava a Lusa.
Na altura, uma das possíveis justificações dadas para os episódios foi o facto de os alunos mais velhos, os graduados, educarem os mais novos sem a vigilância dos adultos. De facto, grande parte da identidade da escola continua a ser passada pelos maiores: “Os valores são passados pelos mais velhos. Os alunos graduados, os do 12.º, têm essa tarefa de os instruírem para as regras e tradições do colégio”, explica o Coronel José Sardinha Dias.
Mas o que é que os graduados podem e não podem fazer? “Eles podem exercer autoridade sobre os alunos mais novos. Podem mandá-los formar, controlam-nos para sentar e para levantar no refeitório, controlam as horas do recolher e do deitar. São eles que os orientam através dessa autoridade que lhes é conferida pela direção”.
Mas essa autoridade não é absoluta. O Coronel José Sardinha Dias está à frente do Colégio Militar desde agosto de 2015, pelo que os episódios descritos acima não são do seu tempo. Ainda assim, o responsável garante: “Existiam excessos que acabaram. Havia uma série de tradições que desapareceram completamente. Neste momento o internato está completamente amigável”.
O Tenente Coronel António Grilo é subdiretor da instituição desde outubro de 2013 mas já tem a escola na sua vida desde 1978, altura em que entrou para o 6.º ano. Já viu “muitos colégios militares”, destaca. Adota a tranquilidade da função ao falar sobre os problemas do colégio. Diz que a situação do aluno com a perfuração no tímpano foi “um caso localizado” e uma “situação desagradável”. Na altura, o aluno responsável foi expulso, conta o subdiretor. “Eles tentam apoiar, tentam tirar o melhor dos miúdos, quando aquilo não correu bem alguém explodiu e fez aquilo que não devia ter feito”.
Depois da polémica, foi preciso introduzir mudanças. “Toda a publicidade motivou uma maior relação e uma maior ação de enquadramento dos adultos com os alunos mais novos. Neste momento estamos sempre presentes e temos imediatamente conhecimento de todo e qualquer assunto. Eles não assumem autonomia nesse campo”, assegura.
Os abusos de poder hoje são outros, conta o diretor da escola. “Tivemos uma situação recente de um aluno que foi desgraduado por ter usado a autoridade para além daquilo que lhe é permitido. Esse aluno deu autorização a alunos mais novos para terem acesso à sala de televisão a partir de uma hora que já não era permitida. E também desafiou o poder do oficial de comandante de companhia”. E o que é desafiar? “Desafiar é não acatar imediatamente as ordens que lhe foram dadas” e ser desgraduado é perder o distintivo. “A partir do momento em que um aluno é desgraduado, os alunos mais novos já não têm de lhe obedecer”.
Luísa Vasconcelos é mãe orgulhosa de um graduado. “Quem os ensina a marchar, a comportarem-se, os princípios, a vivência colegial, são os alunos, não são os militares. Eles é que transmitem de geração em geração. É como de irmão mais velho para irmão mais novo”, destaca. O filho sempre foi “muito cumpridor”. “É muito ponderado, não tem atritos com colegas”. Nada a apontar.
A postura, o rigor e a disciplina são passados pelos alunos mais velhos e pelas aulas de Instrução Militar. A disciplina é de caráter obrigatório. Desde o 5.º ao 12.º ano, todos têm uma hora por semana. O que dá o cunho militar à escola é a Instrução Militar, juntamente com a esgrima e a equitação. O resto do ensino segue os planos do Ministério da Educação e é “à civil”, como qualquer outra escola pública.
689 alunos
O Colégio Militar tem neste momento 689 alunos, dos quais 423 são rapazes e 266 são raparigas. Destas, 100 são internas. Dos 423 rapazes, 275 são internos.
Há mais alunos com pais civis (367) do que alunos com pais ligados às Forças Armadas, PSP, GNR e outras forças militares (322).
E o que é que se aprende nas aulas de Instrução Militar? No 2.º ciclo, ensina-se as regras do colégio, ensina-se a marchar, a formar, a fazer a continência — os movimentos básicos de ordem unida que praticam diariamente.
Depois, estuda-se a Pátria, ou não fosse o amor ao país o 1.º mandamento da Lei do Colégio Militar. É preciso conhecer o significado e a história da bandeira, a diferença entre bandeira e estandarte nacional, o hino. “Explica-se as deferências que se deve ter com esses símbolos. Eles sabem que, sempre que toca o hino, se estiverem fardados, têm de se colocar em sentido e fazer continência. Estando à civil, devem assumir uma posição de respeito”, explica o Major Castanho, coordenador da Instrução Militar.
É preciso também conhecer os mandamentos do Código de Honra. Mesmo que quisessem, seria difícil esquecê-los, porque o conjunto de mandamentos está afixado em cada sala de aula, está nos espaços de internatos, está por todo o lado.
Há testes de avaliação para a disciplina de Instrução Militar — teóricos e práticos. “Ver se respeitam os horários e se são aprumados na farda que vestem, por exemplo. Sabem que não podem andar com a camisola fora das calças, não podem andar com os botões desapertados. Tudo tem normas que têm de ser cumpridas”, diz o Major Castanho.
Mas como é que se explica essa importância a alunos tão pequenos? Dizendo: “Se querem vir a ser alguém, terão de cumprir regras. E elas devem ser cumpridas não porque são impostas, mas porque é o correto. Se as coisas têm de ser feitas, então que seja corretamente, senão depois custa mais. Porque se não fizerem à primeira, vão ter de repetir”.
Todos os pais ouvidos pelo Observador concordam num ponto: uma das primeiras coisas que os meninos adotam do colégio é marchar. “É logo. Estão os pais a ir embora e estão eles a marchar”, diz Rui Bastos, pai de Tomás. E Tomás também decorou logo o conceito de punição. “Houve uma vez em que ele se portou mal e veio ter comigo e disse: ‘Oh pai, olha, eu já decidi qual é que vai ser a minha autopunição’. Era pequenino. Mas pronto, são coisas impossíveis de se ver se ele tivesse andado noutro sítio”.
Deixar os filhos internos com 10 anos não é fácil. Os alunos podem ir a casa às quartas à noite, mas a maioria opta por sair apenas ao fim de semana. É uma sensação semelhante à que muitos pais sentem quando os filhos vão para a faculdade. Mas dez anos antes.
“Estar em casa dos pais é outra coisa. Por exemplo, uma coisa simples que acontece sempre no primeiro ano: a roupa está guardada numa rouparia que está fechada e tem um horário. A roupa não está à discrição, como nas gavetas que têm em casa. Quando eles são crianças e se sujam, nós mães dizemos: ‘Olha, está suja, muda a camisola, toma lá uma camisola’. Aqui não. Aqui eles têm de ter a consciência de que têm de ir até determinada hora à rouparia buscar um polo ou uma camisa para mudar porque eles não podem andar sujos. Eu lembro-me de o Manel me dizer: ‘Aquilo de a rouparia estar fechada causa-me uns pesadelos!’ (risos). Porque eles não podem andar sujos. Eles são habituados a que tudo tem uma hora para ser tratado, tudo tem de ser planeado”, conta a mãe, Luísa Vasconcelos.
Há quem fique mais arrebitada em casa. “Vou contar-lhe uma história: faltava tipo 10 minutos para as 7h e uma das minhas filhas vira-se e diz ‘Ainda estás assim, pai?’ (com um tom autoritário). Apontou-me para o relógio e disse-me: ‘Tens 10 minutos para estares pronto’. E eu fiquei a olhar para ela e pensei: então mas o que é que se está aqui a passar? Estamos a inverter papéis?’”
Luísa Vasconcelos, com uma filha no 3.º ano também no Colégio Militar, já tirou a radiografia a quem pode ou não ser aluno da escola. “Uma pessoa que seja naturalmente desorganizada, uma pessoa que não gosta de fazer a cama, que não gosta de arrumar nada na gaveta, que não é pontual… Essa pessoa, se estiver aqui a estudar e se não se formatar, nunca vai ser feliz aqui”.
“Tenho duas famílias: a minha e a do Colégio”
Ser da mesma família não é só ter o mesmo sangue. Para que é que é preciso ter o mesmo sangue quando se têm as mesmas rotinas, as mesmas dúvidas e as mesmas histórias em comum? “O Tomás é filho único e ele próprio diz: ‘Oh mãe, tenho os irmãos que não vou ter’”. Tomás é do 11.º mas foi escolhido para ser graduado. Um orgulho e uma responsabilidade. “É uma carga de trabalho muito maior. Ele chega a estar às duas da manhã com um a chorar, outro que está doente”, aponta a mãe.
O internato desde o 5.º ano já pôs a rotina bem oleada. No fim de um dia de trabalho, é altura do descanso. “Às 21h30 é o toque de recolha para as camaratas. Aí fazemos almofadadas, juntamo-nos e contamos histórias uns aos outros, estudamos todos juntos quando alguém tem teste. Às 22h, tudo para a cama para acordar no dia seguinte”. O dia recomeça às 7h da manhã. Formaturas, aulas, refeições, atividades, estudos. Muitas horas, muitos laços. “Ajudo-os desde que os conheço, já sei os tiques todos de cada um. Já tenho aqui amigos para a vida”.
Manuel Vasconcelos está prestes a sair da escola. Foram também sete anos de Colégio, sete anos de internato, sete anos de missão. “Isto é uma grande família. Temos todos um objetivo: manter a continuidade da casa”. Os alunos internos têm a possibilidade de ir a casa à quarta-feira, mas o n.º 99 passa a vez a outro. “Ele vai cada vez menos a casa e prefere ficar cá. Ou porque há colegas mais novos para acompanhar ou para ajudar. Ele diz-me ‘A mãe sabe que há colegas de longe, que têm os pais longe, que não vêm jantar com eles?’”, conta. “A certa altura eu disse-lhe: ‘Bom, mais vale mudares-te para o colégio, já nem precisas de quarto em casa’”, sorri, resignada. “Ele passa semanas que fica cá… Nós habituamo-nos a viver nesta dupla casa. Como tenho a mais nova, que vai todos os dias a casa, isso ajuda”, confessa a advogada.
Tanto os pais das gémeas Vaz como os pais de Tomás Bastos e de Manuel Vasconcelos são civis. A escolha do Colégio prendeu-se com a oferta de atividades, desde a esgrima à natação, à ginástica e à equitação, e com o facto de essas atividades serem concentradas no mesmo sítio. Além disso, todos ouviram falar do colégio como uma “instituição de referência”.
Os pais não tinham nenhuma ligação ao mundo militar. Até agora. Foi só tomar o gosto e, agora, já não há volta a dar. Diz o pai de Tomás: “Sinto que ele tem orgulho em andar no Colégio Militar. E é importante a gente ter orgulho em algumas coisas na vida, não é?”
“Isto não é uma casa de correção”
Se o diretor pudesse ver o Colégio Militar que o público lá fora vê, o que é que via? “Acho que difere. Para muitos é uma escola de referência de onde saem miúdos preparados para a vida. Há outras pessoas que consideram uma escola idêntica a outras mas com a disciplina mais apertada. E há outras que acham que o Colégio Militar é uma casa de correção. Pensam que alunos, entre aspas, pequenos delinquentes, devem ser metidos no Colégio Militar porque o Colégio Militar vai corrigi-los. Não é isso que acontece. O Colégio Militar não é para alunos que tenham esse tipo de problemas”, adverte o Coronel.
Os “pedidos de reparação” batem à porta da escola. “Tivemos um pedido de uma mãe que escreveu uma carta a dizer que tinha muitas dificuldades em controlar o filho. Já efetuava pequenos roubos, partia tudo em casa, faltava ao respeito aos professores, batia nos outros, fazia tudo e mais alguma coisa. E queria pôr o filho no Colégio Militar para ele se corrigir, porque nas outras escolas não conseguiam fazer nada dele. Ora, nós aqui não permitiríamos que isso acontecesse”.
Fora do mundo do Colégio Militar, há quem estranhe as fardas ou, pelo menos, quem fique surpreendido com o estilo dos “Meninos da Luz”. O pai Nuno Vaz sabe disso. “Por exemplo, nós saímos daqui à sexta-feira e vamos ali ao Colombo [muito perto do Colégio Militar]. E elas perguntam ‘Podemos ir a casa mudar de farda?’ E nós dizemos: ‘Filhas, não vamos andar aqui a fazer piscinas de um lado para o outro. O Colombo é já ali’. E eu pergunto: ‘Mas têm alguma vergonha de usar a farda?’ E elas respondem: ‘Não é vergonha pai, é que toda a gente olha para nós’.
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Pais civis pagam 681 euros pelo regime de internato. No externato, o preço é 480 euros. Já os militares pagam em função do rendimento do agregado familiar. Pode ir de 120 a 520 euros.
Os pais afirmam com orgulho que têm os filhos no Colégio Militar, mas a imagem de rigidez associada à escola é difícil de descolar. “Já me fizeram isto duas vezes. Dá-me vontade de rir, mas ao mesmo tempo fico triste porque a imagem que têm lá fora não corresponde à realidade. Estava na receção de um consultório médico. Perguntaram onde estudam os meus filhos e eu disse: ‘Colégio Militar’. A senhora pára de escrever, olha para mim muito séria e diz: ‘O que é que os meninos lhe fizeram?’ E eu disse: ‘Nada, eles é que quiseram ir para lá’. E a senhora pergunta: ‘Mas porquê?’. E lá estou eu depois a dizer que aquilo não é assim, que tem um ambiente ótimo, que eles são muito felizes. E as pessoas não acreditam”.
Conta o pai Rui Bastos: “Quando ele era mais pequenino, o que me diziam era: ‘Tu és maluco. Tu não estás bom’. Lembras-te?”, pergunta à mulher. “Os nossos amigos… Sobretudo as senhoras diziam assim: ‘O quê? Tu deixaste-o ir?’ Lembro-me perfeitamente disso”. A mãe lembra-se, sim, e acrescenta. “Eu respondia: ‘Então, ele gosta’. Porque é que hei de estar a prendê-lo, não é?”