Um homem de 35 anos, que foi uma das vítimas do processo Casa Pia, foi detido terça-feira pela Polícia Judiciária por suspeitas de ter abusado sexualmente e devassado a vida íntima da filha. A menina tem agora 14 anos, mas alguns dos abusos denunciados terão acontecido desde os seus 11 anos. Presente a um juiz, o suspeito está agora em prisão preventiva.
Entre as vítimas do escândalo sexual que abalou a Casa Pia em finais de 2003, C. A. era considerado dos meninos mais frágeis. Desde os 5 anos que vivia numa instituição, levado como um órfão com um único laço familiar próximo: uma irmã. A partir dos 10 anos de idade acabaria por ser vítima de abusos sexuais por parte do médico que o seguia, Ferreira Diniz, e mais tarde pelo antigo aluno e funcionário da Casa Pia, Carlos Silvino (Bibi).
Aos 15 anos, C.A. teve a sua primeira tentativa de suicídio. Aos 18, ainda à espera de ser chamado a depor em tribunal num processo que se tornou mediático e dos mais falados no país, tentou novamente acabar com a vida com uma facada na barriga. Na instituição temiam pelo seu futuro, não o viam promissor.
Era uma criança “especialmente frágil”
O próprio Ministério Público, quando acusou Ferreira Diniz e Bibi — num processo em que acabariam condenados a 7 e 18 anos respetivamente, juntamente com o apresentador Carlos Cruz (a 7 anos), o provedor-adjunto da Casa Pia Manuel Abrantes (5 anos e 9 meses), o embaixador Jorge Ritto (6 anos e 8 meses) e o advogado Hugo Marçal (6 anos e 2 meses) –, reconheceu que, de entre as vítimas, C. A. era uma criança “especialmente frágil”.
Já em tribunal, durante a fase de julgamento que começou em novembro de 2004, ainda antes de as vítimas serem chamadas a depor, a então provedora da Casa Pia, Catalina Pestana, chegou mesmo a afirmar que C. A. era quem tinha a vida mais “estragada” e que se preocupava profundamente com seu futuro pessoal e profissional. “Precisará eternamente de apoio institucional”, disse. “Sonha com profissões que não pode ter e não tem condições intelectuais para fazer qualquer curso de aprendizagem”, acrescentou, antevendo uma vida toda numa instituição até porque C. A. não se aguentava em nenhum trabalho mais de 15 dias, oscilando entre estados eufóricos e de tristeza profunda. Nessa altura, C. A. tinha 18 anos. E já tinha sido internado várias vezes com crises.
Segundo a acusação, em 1997, tinha C.A. 12 anos, foi observado pelo médico Ferreira Diniz no posto médico da Rua do Alecrim. Durante as cerca de sete consultas que ali teve, o médico tê-lo-á despido e abusado dele. Cinco anos depois, teria sido Carlos Silvino a obrigá-lo a manter com ele atos sexuais por três ocasiões.
C. A. acabou por casar e ter uma filha mas, ao que o Observador apurou, disse à polícia, que o deteve na noite de terça-feira, estar desempregado. Agora, aos 35 anos, aguarda o desenrolar do processo preso preventivamente.
Vítima cansou-se dos abusos e da devassa da sua vida privada com o namorado
No último domingo C. A. terá obrigado a filha, no quarto dela, a despir-se e a abrir as pernas deitada sobre a cama. Ele terá fotografado a menor com o seu telemóvel. Uma semana antes, segundo a denúncia chegada à polícia, terá mesmo obrigado o namorado da menor a apalpar-lhe o peito como prova de amor. Por outro lado C. A. manifestava algum pudor com a relação da filha, por o rapaz ser mais velho. Tem 17 anos. E o namoro começara há dois meses.
O relatos que chegaram à polícia, porém, recuam até 2019, ainda antes da pandemia, e quando a menina tinha apenas 11 anos, também com toques e recolha de imagens. C.A. está agora indiciado de diversos crimes de abuso sexual de menores de forma agravada, assim como de crimes de devassa da vida privada.
Segundo o comunicado da Polícia Judiciária, enviado esta manhã de sexta-feira, há “fortes indícios da prática de inúmeros crimes de abuso sexual de crianças, de abuso sexual de menores dependentes ou em situação particularmente vulnerável e de coação sexual, todos na sua forma agravada, assim como de violência doméstica”. “Os factos foram cometidos sobre a sua filha, atualmente com 14 anos de idade e sobre o namorado da mesma, com 17 anos de idade”, lê-se.
Casa Pia. Vinte anos de um dos mais mediáticos processos que ainda está por encerrar
“Normalmente o trauma deixado nas crianças vítimas de abuso sexual deixa uma marca que fica sempre registada, mas a pessoa em adulto consegue fazer uma vida adequada à sua sobrevivência”, constata ao Observador o psicólogo Carlos Céu e Silva. Contudo, explica, na maior parte dos casos “não se consegue superar esse trauma e recicla-se esse trauma”. A vítima não o partilha, vive uma vida em segredo e isso pode afetar o comportamento e toda a dinâmica “no trabalho, nas relações familiares e na dificuldade em insistir no contexto de família”. Um contexto que pode, por um lado, cair num cenário de perfeição de “príncipes e princesas”, por outro, poderá ser de replicar aquilo que viveu.
Um estudo feito já em 2003 pelo Institute for Child Health, e que foi publicado na revista científica Lancet, concluiu de uma amostra de 224 homens abusados sexualmente em criança que 12% (26) tornaram-se abusadores. O trabalho baseou-se em registos policiais e hospitalares britânicos e a maioria abusou de vítima fora do seio familiar.