Sem surpresas. É essa a melhor expressão para classificar o resultado das eleições presidenciais russas deste domingo, onde o Presidente russo Vladimir Putin renovou o mandato por mais seis anos, ao vencer a primeira volta com mais de 70% dos votos.
“Putin nem sequer está interessado na própria campanha, porque tem a certeza da sua eleição”, tinha resumido ao Observador Dmitry Gudkov, ex-deputado russo, dois dias antes da votação. “Não há sequer possibilidade de haver uma segunda ronda”, previu à altura. A previsão cumpriu-se, como seria de esperar. E a oposição toda junta não conseguiu chegar aos 30% — desses, mais de 10% dos votos foram concentrados num único candidato, o comunista Pavel Grudinin.
O resultado esmagador beneficiou do facto de que o homem que poderia fazer mais frente a Putin, Alexei Navalny, ter sido impedido de concorrer e limitou-se a observar os resultados a partir da sua sede de campanha. Mas até políticos como Dmitry Gudkov, conhecidos pela sua oposição feroz a Putin, admitem que mesmo com Navalny, o desfecho seria este: “Ele conseguiria unir muita gente, recrutar muitos voluntários e unir a oposição — mas isso não significa que conseguisse sequer uma segunda volta. Putin continua a ser o político mais popular no país. Está no poder há 18 anos e controla os media, o dinheiro, as regiões, tudo”, resume Gudkov.
Aqui chegados, os russos têm pela frente pelo menos mais seis anos de Vladimir Putin. “Novo czar”, “pai da Nação”, “imperador Putin”, todos estes epítetos têm sido atribuídos ao líder russo ao longo dos últimos anos que, entre os cargos de primeiro-ministro e Presidente, moldou a Rússia à sua imagem e personalizou o cargo. Quando este novo mandato terminar, Putin terá acumulado quase 25 anos no poder, ultrapassando Brejnev (18) e sendo derrotado em endurance apenas por Estaline (29).
Mas terminados os seis anos de mandato, de acordo com as regras da Constituição russa, não poderá voltar a candidatar-se ao cargo de Presidente, o que deixa em aberto a corrida para a sua sucessão. O tema ensombrará todo este mandato: como será a Rússia pós-Putin? E, até lá, que marcas quererá deixar um líder a quem talvez não desagradasse a expressão “o Estado sou eu”?
Combate ao Ocidente é para continuar
O mandato arranca logo com a realização do Mundial de futebol, que o Kremlin espera que seja, à semelhança do que aconteceu com os Jogos Olímpicos de Sochi, uma oportunidade para promover a imagem do país como grande potência: “Tal como o seu antecessor soviético, o regime de Putin tem tentado usar o desporto como uma forma de exortar emoções patrióticas no plano doméstico e de demonstrar força para fora”, explica ao Observador Brian Whitmore, analista especializado na Rússia e responsável por vários programas de rádio sobre o país na Radio Free Europe. “Os escândalos de doping, contudo, têm minado este esforço de propaganda.”
Se a nível internacional a imagem da Rússia pode estar irremediavelmente manchada para alguns, a nível interno tal está longe de ser o caso — ou não tivesse Putin sido reeleito com mais de 70% dos votos. Mas, “quando a euforia do pós-Mundial desvanecer”, como descreve a analista Carolina de Stefano, onde irá Putin apostar?
Muito provavelmente, na área que lhe tem trazido os maiores ganhos: a política externa. Depois de ter levado a cabo ações como a anexação da Crimeia e o envolvimento no conflito ucraniano, de ter reforçado a participação russa na guerra da Síria, de se ter gabado do seu poderio nuclear e de, acusam os EUA, ter interferido no processo eleitoral norte-americano, o regime russo prepara-se para manter exatamente a mesma tónica. “Putin apostou muito em adquirir a sua legitimidade através do reavivamento do estatuto de grande potência da Rússia e do império soviético. Ele quer que o Ocidente reconheça a ‘esfera de influência’ russa no antigo espaço soviético, que é algo que o Ocidente não pode e não vai conceder-lhe”, resume Whitmore.
“A guerra política de Moscovo ao Ocidente — os ataques cibernéticos, a intervenção na política doméstica de outros países, o apoio a partidos extremistas, a campanha de desinformação e o uso das finanças, da energia e da corrupção como armas — vai continuar”, acrescenta o analista, dando como exemplo o envenenamento do ex-espião russo Sergei Skripal em território britânico, que Whitmore crê ter sido levado a cabo pelo Kremlin. “A postura agressiva de Putin para com o Ocidente vai continuar neste quarto mandato.”
Se a Ocidente há amargos de boca, de Oriente podem soprar ventos mais favoráveis. A parceria Moscovo-Pequim irá, segundo a maior parte dos analistas, ser reforçada ao longo deste mandato. “Os eventos de 2018 vão demonstrar o grau de compromisso do Kremlin com a ligação do seu futuro económico à China e com o equilíbrio nesta parceria, ao investir em capacidades militares e em manter um perfil internacional destacado”, escreviam há duas semanas Ivan Krastev e Gleb Pavlovsky, do Conselho Europeu de Relações Internacionais.
“A relação com a China é mais complexa. A China é uma potência em ascensão e a Rússia está em declínio”, acrescenta Whitmore. “Têm uma ambição comum de minar a liderança ocidental, mas este é um objetivo mais imediato para a Rússia do que para a China, que crê que o tempo está do seu lado e que está disponível para ser paciente. Para além disso, na aliança sino-russa, a China é claramente o parceiro sénior. E a Rússia vai ficar desconfortável com isto.” Ou seja, até nessa frente, nem tudo corre às mil maravilhas para Putin.
Pobreza e baixos salários a nível interno — descontentamento à vista?
Contudo, o esforço de projeção da imagem internacional da Rússia como uma potência forte — que pode vir a determinar as condições em que se fará a paz na Síria e que, para alguns, faz do Presidente dos EUA seu refém — continuará. Só não é certo se essa cartada chegará para manter os russos felizes.
Dmitry Gudkov, por exemplo, relembra que as sanções impostas por EUA e Europa à Rússia desagradam a alguns membros da elite russa, sobretudo aos que estão ligados à área dos negócios. “Não sei se isso vai fazer com que a política externa de Putin se altere”, admite Gudkov, que em 2014 foi um dos únicos quatro deputados da Duma que não votaram a favor da anexação da Crimeia. “Mas a divisão vai aumentar, porque há um consenso entre alguma elite de que a Rússia deveria ter relações com o Ocidente. Só que não podem opor-se a Putin neste momento, porque ele ainda está forte.”
A popularidade do líder russo tem chegado para contornar todas estas pequenas oposições internas. É por isso que se revela tão fulcral para Putin garantir algumas mudanças a nível económico e não será por acaso que, no dia em que fez o anúncio sobre as novas armas nucleares russas, o Presidente aproveitou para falar também do que considera “inaceitável” no seu país, como a taxa de pobreza, que está a aumentar ao ritmo mais acelerado dos últimos 20 anos — e que Putin se comprometeu a cortar para metade. “O bem-estar da Rússia e dos nossos cidadãos deve ser a base de tudo e é nesta área que temos de conseguir fazer progressos”, disse o líder russo.
Num país onde metade dos baixos salários da maior parte da população só chegam para a comida e onde mais de 25% da população diz ter o ordenado frequentemente atrasado ou cortado, a mudança na política económica pode ser decisiva — e, para alguns, até necessária. Whitmore crê que Putin o sabe, mas está “preso num paradoxo”. “Os economistas mais espertos percebem que a Rússia precisa de diversificar a sua economia para ser mais competitiva. Mas, por outro lado, Putin e o seu círculo íntimo sabem que fazer isto torna a economia mais descentralizada e isso traz consigo centros de poder económico que podem vir a tornar-se centros de poder políticos. Neste sentido, a economia russa está refém da política”, diz.
O equilíbrio entre não ceder esse poder e, ao mesmo tempo, avançar com reformas que aumentem o nível de vida dos russos é um dos grandes desafios do novo mandato. O baixo nível de vida pode redundar em protestos, como tem acontecido com os camionistas, que desde 2015 se opõem a um novo imposto que afeta a área da camionagem. E a corrupção agrava esse descontentamento das bases, ou não ocupasse a Rússia o lugar número 135 em 180 países no ranking da Transparência Internacional.
Tal não significa, contudo, que esse desagrado resulte em revolução, ou não fosse este um país onde, como relembra a revista Ozy, os manifestantes pedem ajuda ao próprio Putin, “tal é o caráter paternalista que ele conseguiu implementar ao longo dos anos”. Para além disso, há sempre a possibilidade de o Presidente reprimir mais os dissidentes: é essa a previsão da analista Carolina De Stefano, que fala na possibilidade “de se apertar ainda mais a malha à sociedade civil”. Putin deve ter cuidado com os jovens, avisa Dmitry Gudkov: “Se a polarização bate à nossa porta, tornamo-nos mais ativos na política. As ações deste Parlamento tornaram os jovens mais ativos. Por exemplo, hoje podemos ser presos por causa de um ‘gosto’ ou de um ‘retweet’ numa publicação. As pessoas estão a ficar zangadas com isso.”
Nos últimos anos, o regime russo limitou a ação de várias ONG (que acusa de serem agentes de poderes estrangeiros), reforçou a vigilância na internet e deteve muitos adversários políticos — alguns, como Sergei Udaltsov, foram mesmo condenados a penas de prisão; outros, como Gary Kasparov, exilaram-se. “Muitos observadores do Kremlin estão a antecipar um degelo doméstico por parte da Rússia depois do dia das eleições. Eu estou cético”, reforça Brian Whitmore. “Putin parece estar assombrado pelo legado da perestroika, parece temer que o alívio do controlo político leve à queda do regime. Poderemos ver algumas mudanças de cosmética, mas não espero nenhum tipo de ação que leve a um pluralismo real no sistema.”
Depois de 2024: Vladimir Putin, o “ayatollah russo”?
Uma voz grossa na política externa, equilíbrios mais delicados na economia a nível interno. Estes parecem ser os principais desafios do último mandato de Vladimir Putin como Presidente — mas será mesmo o último?
Num sistema que há tantos anos convive com o mesmo líder, muitos encaram com dificuldade a perspetiva de uma Rússia sem Putin. “Não há conversas de corredor sobre a sucessão. É como se as pessoas achassem que ele vai cá estar para sempre”, resumia há alguns dias uma fonte do Governo à Reuters.
Mas em 2024, Putin terá 71 anos. Mesmo que não se reforme logo, o Presidente não é eterno, o que lança a discussão sobre a sucessão e agita a corte que rodeia o Presidente. “Assim que a máquina política decidir que a hora final chegou, os grupos rivais vão lutar ativamente até à última gota — por posições ministeriais, empresas, poços de petróleo, recursos nos media e fluxos financeiros”, resumiu Ekaterina Schulmann, cientista política russa.
Antes da eleição, a analista política Tatiana Stanovaya previa ao Observador que Putin deverá cumprir o limite de mandatos previsto na Constituição, mas poderá arranjar uma alternativa para manter a sua influência, “como líder estratégico do país”. O próprio Presidente admitiu recentemente que “não tem planos para mudar a Constituição” e permitir eternizar-se no poder, o que afasta para já o cenário de um quinto mandato, depois de 2024.
A “máquina perfeita” do Kremlin para anular os adversários de Putin
A possibilidade de poder apenas trocar de cargo e regressar ao lugar de primeiro-ministro temporariamente, como fez com Dmitry Medvedev entre 2008 e 2012, continua sempre em cima da mesa. O regresso a eleições presidenciais, contudo, só poderia acontecer em 2030, altura em que Putin já teria 78 anos.
É claro que há sempre a hipótese de Putin simplesmente se reformar. Só que esta decisão é dificultada pelo facto de não haver um claro sucessor. Krastev e Pavlovsky asseguram que o Presidente gostaria de ver uma transferência de poder não para um sucessor específico, mas sim da sua geração para uma nova geração, “que inclui políticos que se formaram durante o reinado de Putin e que foram moldados por ele”. Os nomes avançados — o primeiro-ministro Medvedev, o autarca de Moscovo Sergei Sobyanin, o governador Igor Dyumin — são, segundo a Reuters, nada mais do que rumores. O mais importante é que, diz a agência “o sucessor consiga manter-se no poder, consiga proteger Putin e não desfaça o sistema que ele construiu”.
Para garantir que tal acontece, o mais provável é que o homem que liderou a Rússia por 18 anos — e que provavelmente chegará quase aos 25 — não saia completamente de cena. “Não consigo imaginar uma situação em que ele dê controlo total ao sucessor, ele não confia em ninguém”, resumia há alguns dias um analista ao New York Times. Brian Whitmore concorda: “Há muita especulação na imprensa russa e nos canais informados de que há planos para criar uma posição pós-presidencial para Putin que o tornasse o líder de facto, mesmo depois de deixar a presidência. Uma notícia usava mesmo a frase ‘Ayatollah da Rússia’”.
Seja através de um cargo especial, seja através do controlo de bastidores do seu sucessor, muitos crêem que Vladimir Putin, mesmo depois de 2024, continuará a andar por aí. “A questão, contudo, é como conseguirá fazê-lo. Essa é uma das grandes questões que se coloca a partir de 2018”, resume Brian Whitmore. O dia 18 de março de 2018 pode ficar para a história como o dia em que os russos concederam a Putin o seu último mandato — mas talvez não seja ainda recordado como o princípio do fim do líder russo mais marcante desde o fim da União Soviética.