A luta pelos direitos dos cuidadores informais é uma bandeira antiga do Bloco de Esquerda — e surgiu recentemente na campanha para as legislativas deste mês, durante o frente-a-frente entre Catarina Martins e António Costa. Durante um debate que ficou marcado pelas acusações lançadas pela coordenadora do Bloco de Esquerda contra António Costa, dizendo que o primeiro-ministro prometeu “mel” aos portugueses mas acabou a dar-lhes “fel”, Catarina Martins recuperou o tema dos cuidadores informais com um número sonante:

Foi mel dizer às cuidadoras informais que são tão esforçadas, que na verdade dedicam a sua vida ao apoio e que na pandemia foram quem mais sofreu, que teriam 30 milhões em cada Orçamento. Mas depois veio o fel e o Governo guardou 98% da verba que tinha para os cuidadores informais na gaveta.”

Na prática, segundo Catarina Martins, a quase totalidade do dinheiro destinado pelo Governo a apoiar os portugueses que se dedicam a tempo inteiro a cuidar de pessoas necessitadas ficou por aplicar. Será real este número sonante?

É preciso recuar ao verão de 2019 para conhecer o início da história. Nessa altura, o Parlamento aprovou o Estatuto do Cuidador Informal, uma proteção jurídica há muito ansiada pelos cuidadores informais que se estima que existam em Portugal (240 mil em estatísticas mais conservadoras, 1,4 milhões em estatísticas que alargam o conceito). O diploma previa, entre outros aspetos, uma forma de reconhecimento legal de um cuidador informal (que competiria à Segurança Social, através de mecanismos que seriam mais tarde regulados), e uma série de direitos, incluindo o direito a um subsídio específico, a períodos de descanso regulados, a regimes de conciliação com o trabalho, a apoio psicológico e ao acesso a informação de saúde relativo à pessoa de quem cuidam.

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Uma das questões fundamentais do estatuto prende-se com o subsídio de apoio ao cuidador informal, um montante atribuído a todos os cuidadores informais que provem necessitar dele, de acordo com uma série de regras estabelecidas pela lei.

Logo no final de 2019, quando apresentou o Orçamento do Estado para 2020, o Governo incluiu uma verba de 30 milhões de euros destinada aos cuidadores informais. A ideia, naquele primeiro ano de aplicação da nova lei, era testar o formato com projetos-piloto em 30 concelhos do país. A verba de 30 milhões de euros voltou a ser repetida no Orçamento do Estado para 2021 e, agora, pela terceira vez no Orçamento do Estado para 2022, que acabou chumbado no Parlamento. Isto significa que, desde 2019, já foram alocados um total de 60 milhões de euros ao apoio aos cuidadores informais.

Todavia, apesar de já haver uma proteção jurídica em vigor, os últimos dois anos têm sido de grande confusão e incerteza para os cuidadores informais. A pandemia da Covid-19, que eclodiu nos primeiros meses de 2020, atrasou a implementação dos projetos-piloto para 2020, mas não explica tudo. Basta um olhar pelas notícias dos últimos dois anos para perceber como uma grande parte dos cuidadores informais desconhecia a possibilidade de aceder ao estatuto, pelo que o número de candidaturas apresentadas aos serviços da segurança social tem sido muito reduzido. Além disso, dentro desse universo já reduzido, metade das candidaturas foram rejeitadas, por não cumprirem um complexo conjunto de condições financeiras e burocráticas necessárias à atribuição do estatuto. E o número de cuidadores informais a obterem o direito ao subsídio foi ainda menor. Nos 12 meses do projeto-piloto, os 976 cuidadores informais a quem foi atribuído subsídio receberam, em média, 310 euros mensais.

Para 2022 está previsto o alargamento do estatuto do cuidador informal a todo o país e a simplificação do processo de acesso aos subsídios, que a avaliação do projeto-piloto revelou ser excessivamente burocrática. O chumbo do Orçamento do Estado atrasou ainda mais este processo — e no final do ano passado isso foi motivo para manifestações organizadas pela Associação de Cuidadores Informais, no dia da discussão do OE, à porta do Parlamento.

Este contexto é fulcral para perceber os números que podemos encontrar na execução orçamental de 2020 e 2021.

No primeiro ano deste financiamento, 2020, a síntese de execução orçamental mostra que, dos 30 milhões previstos, foram executados apenas 300 mil euros, ou 1% do total. Em 2021, de acordo com a síntese de execução orçamental de novembro, a última disponível, foram gastos 1,4 milhões de euros, um valor superior ao do ano anterior, mas ainda assim apenas 4,6% do total orçamentado.

Somando os 300 mil euros de 2020 com os 1,4 milhões de 2021, conclui-se que o Estado gastou 1,7 milhões de euros com o apoio aos cuidadores informais nos dois anos em que houve verbas aprovadas para esse fim. No entanto, o Governo previra gastar 60 milhões, o que significa que ficaram por gastar 58,3 milhões de euros. Em percentagem, o valor que ficou por gastar corresponde a 97,2% do total — um número que bate praticamente certo com os 98% mencionados por Catarina Martins no debate com António Costa.

Conclusão

Nos anos de 2020 e 2021, o Governo previu gastar 60 milhões de euros a apoiar os cuidadores informais portugueses, mas apenas gastou 1,7 milhões, deixando nos cofres do Estado 58,3 milhões de euros, ou seja, 97,2% do orçamento total da área. Embora Catarina Martins tenha feito um arredondamento para cima e, no debate com António Costa, acusado o Governo de guardar na gaveta 98% das verbas destinadas aos cuidadores informais, o número apresentado pela líder bloquista corresponde genericamente ao valor real. Contudo, há vários motivos que explicam o não recurso à totalidade das verbas: desconhecimento dos beneficiários, candidaturas chumbadas, o adiamento do projeto-piloto devido à pandemia e alguma complexidade no processo, como apontou a comissão de acompanhamento do projeto (o que levou o Governo a prometer uma simplificação do processo de candidatura ao subsídio). Sendo assim, apesar dos números corretos, a atribuição da intenção de “guardar na gaveta” o dinheiro que não foi usado vai além da mera correção matemática.

Assim, de acordo com o sistema de classificação do Observador, este conteúdo é:

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