Um partido irresponsável, radical, que se “cansou” de negociar, que faz “bravata ideológica” e bloqueia as soluções. De frente para a antiga parceira de geringonça, foi assim que António Costa definiu o Bloco de Esquerda, radicalizando ao máximo a imagem do partido para apontar ao eleitorado a quem quer falar nestas eleições: o do centro. Do outro lado da mesa esteve uma Catarina Martins concentrada em apontar os pontos fracos dessa estratégia: a maioria absoluta “toda a gente sabe que não teremos”, sentenciou, e por isso será preciso falar de “soluções para o dia seguinte”. Pelo meio, o esquecimento que houve quase seis anos de governação em parceria.

Ora o debate na RTP, esta terça-feira à noite, era um dos que se antecipavam mais quentes e não foi lugar para discutir soluções, mas antes expor as estratégias que os dois levarão para a campanha, que arranca este fim de semana. Do lado de Costa, o apelo à maioria absoluta — que não classifica como “um objetivo em si”, antes uma consequência do abandono dos parceiros de esquerda — e a garantia de que o Bloco não é um aliado de confiança. “Há dois Blocos, o que aparece na campanha, que é muito mel, e o que está na Assembleia da República, que é cheio de fel”, atirou logo no arranque do debate.

A ideia de apresentar um Bloco radicalizado começaria logo por aí, quando caracterizou o Bloco como um partido que vota “para parar e não para avançar”. Exemplo? “Foi capaz de juntar o seu voto à direita e à extrema-direita para chumbar um Orçamento no PS, mas não é capaz de o fazer para aprovar um Orçamento da direita”. Mais: ao longo do debate, foi acusando o Bloco de romper não apenas com o PS, mas também com PCP e PEV, numa tentativa de isolar aquele que nunca foi o seu parceiro preferencial (e a quem pode ir buscar votos, sobretudo com a arma do apelo ao voto útil).

Apelo ao centro e esquecer que este é o mesmo BE com que governou seis anos

Ainda assim, neste debate, Costa estava mesmo concentrado no centro — daí a referência a propostas do Bloco como tentativas de provocar “um rombo na Segurança Social” e “minar a confiança na sustentabilidade do sistema” (a propósito das propostas do BE para acabar com parte dos cortes nas pensões antecipadas) ou até, para rematar, medidas a que chamou “bravata ideológica” e que calculou que custassem “duas vezes a bazuca europeia” (em referência ao valor que custaria o plano de “desprivatizações” do partido — desprivatizações, ou nacionalizações, que já eram referidas nos programas do partido em 2015 e 2019, anos em que Costa se tornou primeiro-ministro com o apoio do Bloco e em que fez campanha a pedir a continuação da geringonça ao lado do partido).

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Do lado de Catarina Martins, a estratégia passava por atribuir ao tal desejo de maioria absoluta a culpa por estas eleições antecipadas. Era preciso contrariar a imagem de irresponsabilidade com garantias do passado — o “orgulho” que assegura sentir na geringonça e o historial do BE como “único partido de esquerda” a acompanhar todos os estados de emergência na pandemia — e pedir acordos de futuro.

Apesar de Costa ter do seu lado o argumento sobre o voto contra no OE, colando ao Bloco a imagem da irresponsabilidade, a coordenadora bloquista insistiu uma e outra vez em garantir não só que acredita que será possível chegar a um acordo à esquerda assente em medidas para a Saúde e para o Trabalho — pelo que ir buscar as medidas mais radicais do Bloco foi apenas uma tentativa de desconversar, sugeriu — como será mesmo inevitável, uma vez que “toda a gente sabe” que não haverá maioria absoluta.

Catarina tentou, por isso mesmo, discutir os pontos em que PS e BE discordaram e podem voltar a tentar convergir, a começar pela exclusividade dos médicos no SNS, que o BE defende. “A alternativa que temos é se temos uma maioria do PS ou uma maioria de direita que quer revogar a lei de bases da saúde e o BE abriu a porta a esta mudança”, chutou Costa, quase de imediato.

Nas trincheiras até 30 de janeiro. Depois, ninguém sabe

Nas pensões, que Costa disse agora serem o grande motivo de desentendimento entre os dois partidos no Orçamento que a esquerda chumbou em outubro, uma ameaça semelhante: “Se minarmos a confiança no futuro da Segurança Social, ganha a direita que propõe um sistema misto e vem dizer que o Estado não tem capacidade de garantir a sustentabilidade”. E muitas discussões sobre números: Costa garantiu repetidamente que “bastava um terço” dos candidatos a reformados elegíveis ficarem isentos dos cortes, para que o custo da medida fosse de 480 milhões de euros por ano; Catarina falou em contas exageradas e lembrou que em 2020 apenas 10 mil pessoas pediram a reforma nessas condições, o que nas suas contas daria 16 milhões de euros (ver em baixo este diálogo em pormenor).

Um último ponto de discussão, que também foi motivo de discórdia no Orçamento, sobre Trabalho. De novo, sem consenso: Catarina até foi buscar as posições de Costa sobre o assunto quando o secretário-geral do PS era António José Seguro (e, nesse preciso momento, o Bloco rapidamente disparou nas redes um vídeo antigo em que Costa assumia, num programa televisivo, que dificilmente aprovaria as leis laborais do tempo da troika), mas o primeiro-ministro lembrou a sua Agenda para o Trabalho Digno, que com a crise política não pôde chegar a ser aprovada.

Nessa proposta final do Governo — apresentada num último esforço de agradar a esquerda e conseguir o OE para 2022 aprovado — chegou a constar a compensação por despedimento, mas só para contratos a termo; o aumento do valor das horas-extra (para os valores pré-troika), mas só a partir da 120.ª hora; prazos da caducidade suspensos, mas não terminam. Ou seja, em três dos pontos mais caros à esquerda, a aproximação não foi total, como pode recordar aqui.

Os dois saíra do debate como entraram: entre ataques e contra-ataques, Costa pediu a maioria absoluta (ou uma “solução de estabilidade” que possa dar soluções aos eleitores, incluindo aos “500 mil” que votaram BE e podem estar desiludidos), mas disse que não sai só por não a alcançar: “Não faço chantagem, não sou o professor Cavaco”, atirou garantindo que sem maioria absoluta tentará encontrar uma maioria no Parlamento — só continua sem detalhar junto de quem fará essa tentativa. Catarina acabou a abanar a cabeça e a frisar que a esquerda precisa mesmo de discutir soluções para a Saúde e para o Trabalho de forma a construir um novo acordo — mas pelo menos até 30 de janeiro é quase impossível que saiam das respetivas trincheiras para que isso possa acontecer.

Diálogo esclarecedor

António Costa (AC): O que foi impeditivo de acordo este ano foi a posição que o BE assumiu de minar a sustentabilidade futura da Segurança Social. Temos de respeitar o equilíbrio entre gerações, as que têm pensões a pagamento mas também que os que descontam mensalmente tenham a garantia que vão ter Segurança Social no futuro. Fizemos grandes progressos, garantindo que não haja fator de sustentabilidade para todos os que começaram a trabalhar com 20 anos e que têm 40 anos de carreira contributiva aos 60, para as profissões de desgaste rápido e para as pessoas que têm incapacidade superior a 80%. Agora o que não podemos aceitar é a proposta do BE que implicava que se só um terço das 180 mil pessoas que podiam ser abrangidas pela proposta do BE, tinham impacto, entre quebra da receita e aumento da despesa da Segurança Social, de 480 milhões de euros por ano. 

CM: Isso não é verdade.

AC: 48 milhões de euros por ano. Senhora deputada , isto significaria um rombo brutal na Segurança Social: esta foi a razão fundamental que nos impediu de chegar a acordo neste Orçamento. Temos vontade que haja acordo mas há coisas que não podemos sacrificar e para nós a sustentabilidade da Segurança Social é sagrada. 

Moderador: Vamos virar a página então para a sustentabilidade do sistema de pensões. O recálculo das pensões em algumas carreiras e a suspensão do factor de sustentabilidade era uma proposta razoável? Significava perder esta receita?

CM: Os números não são assim, mas já lá vou. Antes quero explicar que o o BE nunca propôs uma exclusividade obrigatória no SNS mas sempre num regime facultativo. Quem chefia serviços não pode estar ao mesmo tempo a trabalhar num hospital privado do outro lado da rua.

AC: Certo.

CM: Mas o estatuto do SNS que aprovou em Conselho de Ministros diz que apenas é incompatível com o exercício de direção  técnica, coordenação e chefias no privado. Quer dizer que um médico pode estar a dirigir o SNS e e estar ao mesmo tempo a trabalhar num hospital privado (…)

Moderador. Porque é que o factor de sustentabilidade é tão importante?

CM: Neste momento há alguma s pessoas, poucas, residuais, que têm um duplo corte na pensão por via do factor de sustentabilidade (…) em 2020 só pediram pensões com duplo corte 1 em cada 10 mil pensionistas. Teria custado 16 mil milhões de euros não ter este corte nas pensões. As pessoas não precisam de caridade mas da pensão justa.

AC: Não vou dizer se o número é grande ou pequeno. São 180 mil pessoas que potencialmente podiam beneficiar dessa medida e temos de fazer opções, bastava que um terço desses aderisse para que o custo anual fosse de 480 milhões e euros por ano(…)

CM: Não há 180 mil pessoas a quererem reformar-se em Portugal com penalizações que seriam, ainda assim, de 40%. É disso que nos está a tentar convencer e isso não é possível…

AC: Não, o que estou a dizer que bastava um terço. 

CM: De qualquer maneira , o que arrecadámos com o adicional do IMI, conhecido por imposto Mortágua, mesmo nas contas exageradas que o Governo apresenta chegaria para pagar isto. Foram quase 500 milhões de euros nestes anos.

AC: Por amor de Deus, por amor de Deus!