A ministra da Justiça foi ouvida esta quarta-feira, no Parlamento, a respeito do processo que resultou na escolha do procurador José Guerra para a Procuradoria da União Europeia, um órgão independente e recém-criado que ficará responsável pelo combate à fraude. Com uma polémica em mãos, pela forma como o nome foi escolhido, Francisca Van Dunem defendeu que o “importante” era assegurar que “não houvesse interferência do Governo” em todo o processo. E garantiu: “Não houve. Não houve interferência do Governo. Esta é a essência da questão.” Mas a afirmação não está factualmente correta.

José Eduardo Moreira Alves d’Oliveira Guerra foi um dos três nomes apresentados por Portugal para aquele cargo, a par de Ana Carla Almeida (e de um terceiro procurador, João Conde dos Santos), e acabou por ser nomeado pelo Conselho Europeu, no final de julho, depois de ter obtido a melhor classificação entre os concorrentes em jogo (três procuradores, avaliados anteriormente pelo Conselho Superior do Ministério Público). É a esse processo que Van Dunem se refere — e pelo qual tem sido questionada pela oposição — quando assegura que o Governo não teve qualquer intervenção.

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José Guerra começou por ser o melhor classificado, na avaliação que o Conselho Superior do Ministério Público (CSMP) fez dos candidatos ao cargo, numa fase inicial do processo. Depois, a ministra da Justiça apresentou os três ao painel de magistrados europeus que teriam de se pronunciar sobre os candidatos portugueses. No final dessa avaliação (que não tinha caráter vinculativo), o júri acabou por apontar Ana Carla Almeida — uma procuradora com experiência na investigação de crimes relacionados com fundos europeus — como o nome mais consensual entre os membros daquele coletivo. Um grupo que reunia “antigos membros do Tribunal de Justiça e do Tribunal de Contas, antigos membros da Eurojust, membros dos Supremos Tribunais nacionais, procuradores de alto nível e juristas de reconhecida competência”.

É a partir desse momento, quando Ana Carla Almeida ultrapassa José Guerra, que a história sofre uma reviravolta. E que o Governo tem um papel ativo no processo, ao contrário do que foi dito pela ministra da Justiça.

O episódio, e a forma como a própria Van Dunem intervém no processo, está, de resto, descrito num comunicado que o Ministério da Justiça enviou, na quarta-feira à noite, às redações. Um e-mail em que se descreve a “cronologia do processo de seleção para procurador europeu nacional” e que, a determinado momento, destaca o seguinte:

Verificando-se uma discrepância radical entre a hierarquização dos candidatos feita pelo painel de seleção e pelo Conselho Superior do Ministério Público, o Estado português, representado no Conselho de Justiça e Assuntos Internos (JAI) pelo membro do Governo responsável pela área da justiça, suscitou a questão ao Conselho, o que desencadeou uma avaliação autónoma do 1.º e 2.º candidatos hierarquizados pelo Painel de Seleção”

Logo a seguir, o comunicado do Ministério da Justiça ainda esclarece mais. Diz que Van Dunem “pronunciou-se no sentido do respeito pelo resultado da seleção feita internamente pelo Conselho Superior do Ministério Público”. E fê-lo, continua a descrição, por considerar que “a escolha deste [José Guerra] seria aquela que menor disrupção causaria na articulação harmoniosa que deve necessariamente existir entre as estruturas da Procuradoria Europeia e as do Ministério Público nacional”.

Não havia nada no regulamento que determinasse essa intervenção da ministra da Justiça. Aliás, apenas a Bélgica e a Bulgária (de um conjunto de 22 países) tiveram uma atitude em linha com a de Portugal, preterindo o nome considerado mais apto pelo painel de magistrados europeus e, na prática, levando à escolha de um outro nome. Essa decisão levou quatro eurodeputadas (da Alemanha, de Itália e da Holanda e membros das famílias políticas dos Populares Europeus, Socialistas, Verdes e Liberais) a questionar a Comissão Europeia e o próprio conselho de ministros da Justiça sobre as razões pelas quais estes três países seguiram um modelo diferente daquele que guiou a escolha dos procuradores dos restantes países.

Conclusão

Francisca Van Dunem garantiu no Parlamento que não houve “interferência” do Governo português no processo que levou à escolha de José Guerra para a Procuradoria Europeia. Mas a afirmação não é verdadeira. Ao contrário da maioria dos colegas do Conselho de Justiça e Assuntos Internos, a ministra portuguesa suscitou questões com a escolha do painel de magistrados europeus que resultaram numa escolha diferente. E José Guerra — e não Ana Carla Almeida — acabou por ser o escolhido.

ERRADO

NOTA: este artigo foi produzido no âmbito de uma parceria de fact-checking entre o Observador e a TVI

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