Um vídeo de mais de seis minutos mostra a Polícia de Segurança Pública (PSP), a meio do mês de outubro, a deter um homem com recurso à força após vários minutos de tentativas infrutíferas, em Chelas. Num primeiro momento, é possível ver os agentes a tentar conversar com o suspeito e colocar-lhe as algemas. Mas o homem acaba por resistir, ao mesmo tempo que várias outras pessoas se aproximam dos agentes e os começam a insultar. A PSP acaba então por chamar reforços e deter, com recurso à força, o suspeito, que começa a agredir os polícias. Nas redes sociais, o vídeo começou a ser partilhado por utilizadores que acusam a PSP de abuso de autoridade. Mas será que houve aqui algum tipo de abuso? Códigos da PSP enquadram atuação e advogado especialista em Direito Penal explica ao Observadir: “Autoridades têm de agir de acordo com esse critério de proporcionalidade.”

O vídeo já foi partilhado por mais de 500 utilizadores

O que se vê no vídeo? Tem pouco mais de seis minutos e terá sido gravado por uma pessoa que, pelos comentários que vai proferindo e que são audíveis, está contra a atuação da PSP. Logo no início, é possível ver três agentes junto a um carro branco, de onde está a sair um homem. Ao mesmo tempo, outros dois homens aproximam-se do primeiro.

O momento inicial do vídeo em que o condutor sai do carro

Depois, um dos polícias fez um sinal com a mão para que o condutor o acompanhasse até ao outro lado da estrada — mas um outro indivíduo insiste em ir atrás deles. “Não é nada consigo, está bem?”, explica o agente. “É meu filho, ó otário, é meu filho, está bem? Estou a dizer para falar com calma. Você está aqui armado em [impercetível], ó boi“, responde-lhe esse mesmo homem.

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O agente ignora e acaba então por conversar com o homem que estava dentro do carro, enquanto outros dois agentes da PSP se posicionam perto deles. “Foi da maneira que falaram para mim. Nem boa tarde disse. Primeiro, quando chegam ao pé de mim, têm de dizer boa tarde. É da maneira que entram. Primeiro têm de me dizer boa tarde. Só fiquei lixado por causa disso“, ouve-se o homem a dizer à polícia.

Os momentos em que o agente afasta o condutor das restantes pessoas para conversar com ele

O PSP acaba então, num tom de voz baixo e calmo, por informar o condutor que terá de se “virar de costas” para “ser algemado” e “conduzido à esquadra”. E o homem reage dizendo, repetidamente: “Não vou ser conduzido à esquadra”. O polícia aproxima as algemas do indivíduo, mas este recusa colocá-las e começa a afastar-se. O agente acaba então por agarrar na camisola do homem que começa a gritar: “Tira as mãos. Quer-me algemar porquê? Não vou. Eu fiz algum mal?”.

Neste momento, três outros homens aproximam-se dos agentes da PSP — um deles com um copo de cerveja na mão — enquanto se começam a ouvir outras pessoas, tal como o condutor, a questionar a atuação da polícia, ofendendo os elementos daquela força de segurança. O agente acaba por alertá-lo para o facto de que ele “não está a falar com os amigos” e que tem de respeitar a PSP. “Se me respeitar, eu vou respeitar. Chegaram ao pé de mim, nem boa tarde disseram”, disse.

A polícia tenta algemar o condutor, mas ele recusa e outras pessoas aproximam-se dos agentes

Seguem-se alguns segundos de silêncio, interrompidos pelo condutor que começa a insinuar que os agentes — “estão à espera da força” —, o que efetivamente se verifica: dois carros da PSP aproximam-se nesse momento, alguns agentes saem do carro e o polícia que já estava a tentar algemar há vários minutos o condutor, volta a insistir em algemá-lo.

É aqui que os ânimos se alteram: dois agentes tentam algemar o homem, que resiste e começa a pontapear a polícia. Ao mesmo tempo, outros agentes tentam afastar as pessoas que ali se concentraram e vão gritando palavrões e insultando a polícia. “Olha o abuso do poder”, diz um. Já no chão, o condutor continua a pontapear os três agentes que o tentam algemar. Só quase dois minutos depois o homem acaba por entrar no carro da polícia, já algemado.

O momento em que mais agentes chegam e que a polícia tenta deter o condutor, que os agride

O vídeo capta apenas o momento em que a polícia abordou o suspeito: não mostra o que aconteceu antes e que motivou a intervenção da PSP. Ainda assim, é notório que a polícia nunca gritou ou agrediu o homem: apenas recorreu à força para o algemar, depois de ele próprio ter recusado, ter começado a afastar-se dos agentes e de os ter agredido. Por outro lado, o condutor e as pessoas que se encontravam nas imediações também gritaram e insultaram os agentes da polícia.

PSP explica que carro estava mal estacionado, homem recusou-se a mostrar os documentos e quis fugir à polícia

Para tentar percebeu o que levou a polícia a abordar o homem, o Observador questionou a Direção Nacional da PSP, que alertou desde logo que a intervenção policial é “parcialmente documentada pelo vídeo”. O que o vídeo não mostra é que o homem em causa estava numa “viatura estacionada de forma irregular” e que, quando abordado pela polícia, recusou-se “terminantemente a identificar-se ou disponibilizar os documentos do veículo” — “procedimentos a que, na qualidade de condutor, se encontra obrigado”, lembra a PSP.

“Ainda assim, e porque o cidadão manteve inicialmente uma conduta não violenta, os polícias mantiveram igualmente uma atitude cordial, mas firme, não permitindo que o cidadão abandonasse o local, não obstante a pressão do grupo de amigos para que tal ocorresse“, explicou a Direção Nacional da PSP, numa resposta enviada por escrito ao Observador.

Só que o condutor não só continuou a recusar “identificar-se e disponibilizar os documentos” do carro como ainda manifestou “intenção de abandonar o local” e “afastar-se dos polícias”. Assim, os agentes tiveram “de recorrer à força para impedir o cidadão de se ausentar e, dessa forma, evitar ser fiscalizado enquanto condutor”.

A Direção Nacional da PSP considerou que o recurso à força ocorreu “de forma gradual e proporcional” uma vez que ela foi necessária para deter o cidadão. O homem acabou por ser detido “por suspeita da prática de crimes contra a autoridade pública, ofensa à integridade física, injúrias e ameaças contra os polícias“, informou fonte a mesma.

Uso da força está prevista nos códigos da PSP e pode ser usada quando “esgotados os meios de diálogo”

Os códigos de conduta e deontológicos das forças de segurança preveem que os agentes usem “meios coercivos” apenas “quando estes se mostrem indispensáveis, necessários e suficientes ao bom cumprimento das suas funções e estejam esgotados os meios de persuasão e de diálogo“. Ora, foi o que se verificou neste caso, já que os agentes estiveram durante vários minutos a tentar deter o condutor com esses “meios de persuasão e de diálogo”, sem sucesso.

A própria Direção Nacional da PSP é a primeira a admitir que a força é um último recurso, que só deve ser utilizado “quando nenhuma outra solução levou a que o cidadão acatasse uma ordem policial” — o que se verificou neste caso. Segundo explicou a mesma fonte, o recurso à força só pode durar enquanto também “durar a resistência à concretização da atividade policial” — o que também se verificou neste caso, uma vez que a polícia, assim que conseguiu algemar o suspeito, deixou de exercer força.

Em declarações ao Observador, o advogado de Direito Penal, João Luz Soares, considerou que, com base naquilo que é possível ver no vídeo, não houve excessos por parte da PSP. Desde logo, a abordagem inicial, em que a polícia pede a identificação do suspeito, estava justificada por várias razões: por aquela ser uma zona de tráfico de droga, mas também “pelo momento de pandemia que vivemos”. “Havia ali um patamar mínimo de suspeitas”, resumiu.

Depois, o suspeito não só recusou identificar-se como reagiu com resistência e agressões. “Quando são confrontados com isso, as autoridades têm de agir de acordo com esse critério de proporcionalidade para manter a ordem pública”, explicou o advogado. O tipo de força terá de ser “proporcional, não só em relação ao ilícito praticado mas, igualmente, à violência com a qual o polícia se depara”, segundo explicou a Direção Nacional da PSP ao Observador.

Assim, este vídeo mostra algum tipo de abuso de autoridade por parte da PSP? Não. Desde logo, o abuso de autoridade não é um crime: é a forma como a secção III do Capítulo IV do Código Penal é denominada. Esta secção engloba vários crimes, entre eles, o abuso de poder — um crime previsto para um “funcionário que abusar dos seus poderes ou violar deveres inerentes às suas funções com intenção de obter para si um benefício ou causar prejuízo a outra pessoa”, explica o advogado João Luz Soares. Por exemplo, poderíamos estar perante um abuso de poder se a pessoa detida com recurso à força fosse um idoso de 80 anos com dificuldade em mover-se e desprotegido.

Neste caso, o suspeito recusou identificar-se perante a polícia, apesar de preenchidos os pressupostos para pedir a sua identificação. Também mostrou intenções de fugir, resistiu à detenção, mesmo após a polícia ter dialogado com ele, e acabou por agredir os agentes enquanto estava a ser detido. Mais: a polícia estava rodeada de outras pessoas que insultavam e ameaçavam os elementos daquela força de segurança. O advogado João Luz Soares lembra que os agentes têm também de “avaliar o perigo que ele e os colegas estão a correr e aplicar medidas que podem passar pela força física, mas que às vezes é o único mecanismo para eles terem a sua dignidade física salvaguardada“.

Conclusão

O recurso à força está previsto pelos códigos de conduta da PSP e pode ser aplicado quando esgotados os meios de persuasão e de diálogo. Foi o que se verificou neste caso, uma vez que os agentes tentaram, durante vários minutos, deter o suspeito, recorrendo a esses meios de persuasão e de diálogo, sem sucesso.

Desde logo, o suspeito recusou identificar-se perante a polícia, apesar de preenchidos os pressupostos para pedir a sua identificação, mostrou intenções de fugir, resistiu à detenção, mesmo após a polícia ter dialogado com ele, e acabou por agredi-los enquanto estava a ser detido. E mais: a polícia estava rodeada de outras pessoas que os insultavam e ameaçavam.

Assim, de acordo com o sistema de classificação do Observador, este conteúdo é:

ERRADO

No sistema de classificação do Facebook este conteúdo é:

FALSO: as principais alegações do conteúdo são factualmente imprecisas. Geralmente, esta opção corresponde às classificações “falso” ou “maioritariamente falso” nos sites de verificadores de factos.

Nota: este conteúdo foi selecionado pelo Observador no âmbito de uma parceria de fact checking com o Facebook.

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