Durante a primeira vaga da pandemia de Covid-19, quando a maioria dos países europeus registava milhares de casos e centenas de mortos, Portugal conseguia ser menos castigado e apresentar números significativamente mais baixos. O país foi dos primeiros a tomar medidas, o que levou a que fosse bem sucedido nessa primeira fase da pandemia e dado como exemplo. A imprensa estrangeira começou até referir a existência de um “milagre português” que tinha permitido a Portugal ter números melhores do que, por exemplo, a vizinha Espanha. Na entrevista à RTP na segunda-feira, o Presidente da República ouviu do entrevistador que tinha sido um dos que falou na existência deste “milagre”. Marcelo contestou e disse que só falou em milagre para “dizer que não era milagre”. Afinal, o Presidente fez esta referência para embandeirar em arco e justificar o fim do estado de emergência ou apenas, como disse, para enaltecer o esforço coletivo do país?

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Na entrevista à RTP, após questionado pelo jornalista António José Teixeira, Marcelo disse que apenas falou em milagre “para dizer que não houve milagre”. E acrescentou, justificando: “Na altura disse, ninguém percebeu pelos vistos. ‘Dizem que houve milagre, mas não houve milagre nenhum’. O que houve foi a resistência dos portugueses, a resistência do pessoal de saúde, a resistência dos autarcas”.

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Marcelo referia-se à declaração que fez a 16 de abril de 2020, quando decretou o terceiro estado de emergência e fez essa referência ao “milagre”. Em rigor, e na íntegra, o que o Presidente da República disse sobre o assunto foi o seguinte:

Será mesmo um milagre? É bom que pensem que sim, que é. Sabemos que não é um milagre, é fruto de muito sacrifício, das fases cruciais. De quem tem responsabilidades políticas ter ouvido os especialistas, ter agido em conformidade, ter feito deste combate o combate da sua vida. Desde logo o primeiro-ministro e com ele o Governo como é justo reconhecer. O Presidente da Assembleia da República, a Assembleia da República, os líderes partidários, sociais, os partidos políticos, os parceiros económicos e sociais. Mesmo os que hoje divergem, no primeiro e decisivo momento não se opuseram e é isso que ficará para a história. Se isto é um milagre, o milagre chama-se Portugal”

Olhando para estas declarações, é factual que Marcelo Rebelo de Sousa falou no “milagre português”. É igualmente factual que Marcelo disse que esse “milagre” não era nenhuma inspiração divina ou obra acaso, mas fruto do tal esforço coletivo nacional que especificou. E, portanto, consequência daquilo a que chamou de “muito sacrifício” e das atitudes tomadas por todos “em fases cruciais”.

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Nas palavras também é possível verificar que Marcelo não contradiz na entrevista à RTP nesta segunda-feira o que disse há seis meses, uma vez que utilizou precisamente a expressão que o “milagre” não era um “milagre”. No entanto, ao mesmo tempo que elogiava vários setores do país que contribuíram para o sucesso português, Marcelo Rebelo de Sousa não deixou de validar a tese do milagre e até de utilizá-la como parte da justificação para abrir o país, que na altura estava a iniciar o seu terceiro e último estado de emergência.

Conclusão

Ainda que tenha aproveitado o soundbite do ‘milagre português’ que estava a ser veiculado pela imprensa internacional, Marcelo Rebelo de Sousa foi claro quando procurou explicar o que é que justificava o tal “milagre”: Muito sacrifício, ação nas fases cruciais, atores políticos com responsabilidade que agiram de acordo com o que os especialistas indicavam e o ter encarado o combate à pandemia da Covid-19 como “o combate da sua vida”. Se falou em milagre? Falou. Disse que o milagre não era um milagre? É igualmente factual. Apesar disso, Marcelo não foi, como chegou a sugerir na entrevista, muito prudente e cético do sucesso alcançado, tendo falado apenas do milagre para o negar. Não foi isso que aconteceu. O Presidente validou em abril a tese do “milagre”, do país-modelo no combate à Covid-19, ainda que dissesse que o milagre não era propriamente um milagre de inspiração divina, no sentido literal do termo, mas fruto da competência dos portugueses.

Segundo a classificação do Observador, este conteúdo é:

PRATICAMENTE CERTO

NOTA: este artigo foi produzido no âmbito de uma parceria de fact-checking entre o Observador e a TVI.

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