“Eles só enganam mesmo os estúpidos”, lê-se numa publicação que tem sido partilhada várias vezes pelas redes sociais, especialmente no Facebook. No referido post lê-se, de forma irónica, que “Portugal deve ter o melhor sistema de saúde pública do mundo”. Isto porque, de acordo com esse raciocínio, “para detetarem 10.000 casos positivos por dia, em média, teriam de testar 200.000 pessoas por dia”, o que significaria que só “nos últimos três meses” toda a população portuguesa já teria sido testada duas vezes.

Por outras palavras, a publicação referida procura levantar dúvidas sobre a contabilização de novos casos positivos para a Covid-19 que é comunicada diariamente. Este argumento, porém, é falso.

O primeiro problema surge logo no início da declaração, quando se lê que “Portugal deve ter o melhor sistema de saúde pública do mundo”. Essa afirmação sarcástica dá a entender que só o SNS é responsável por fazer/receitar testes à Covid-19 e tal não é verdade. Entidades públicas e privadas podem prescrever testes, desde que sejam reconhecidas e aprovadas pelo Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica (SINAVE). É a própria Direção-Geral de Saúde (DGS) que explica que “os casos confirmados de Infeção por SARS-CoV-2/ COVID-19 são contabilizados no SINAVE através de: notificações laboratoriais com resultado positivo, notificadas por laboratórios autorizados na plataforma SINAVE LAB; ou notificações clínicas com indicação de resultado positivo, notificadas por médicos na plataforma SINAVE MED.” 

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Importa esclarecer, já agora, que a contabilização diária funciona da seguinte forma, segundo esclarecimento da DGS: “Independentemente de quem prescreve o teste ou de quem o faz por iniciativa própria, a partir do momento que a entidade que o realizou e/ou o médico que o prescreveu tem conhecimento do resultado, o SINAVE é notificado e é assim feita a contabilização”. A DGS explica ainda que “o grande aumento na incidência de casos de infeção” registado nos últimos meses, especialmente a partir de setembro de 2020, levou a que “desde 16 de novembro de 2020 os casos passassem a ser contabilizados através de um novo sistema, o BI SINAVE”. O que este novo mecanismo garante é a unificação de “todas as notificações laboratoriais e clínicas” referentes à mesma pessoa (controlado através do número de utente), medida que minimiza eventuais casos duplicados.

Passando à correlação dos 10 mil casos em média para 200 mil testes, esta também não é correta. Dados oficiais cedidos pela DGS dão conta de que, por exemplo, “na semana de 18 a 24 de janeiro foram realizados 448 831 testes”, o que se traduz numa média de 64 118 testes por dia, num dos momentos em que se realizavam em Portugal mais testes diários. Olhando para os dados de novas infeções desse mesmo período  (também eles obtidos através dos boletins de atualização diária), vemos que foram contabilizados 86 389 casos positivos (6702 a 18/1; 10 455 a 19/1; 14 647 a 20/1; 13 544 a 21/1; 13 987 a 22/1; 15 333 a 23/1 e 11 721 a 24/1) , dando uma média de 12 341 por dia. Estas contas simples mostram que, para se alcançarem 10 mil (ou mais) novos casos diários, não são precisos 200 mil testes, muito pelo contrário — para se chegar à média de 12 341 por dia, na semana em questão, bastaram 64 118.    

Não é verdade e nem vejo sequer a lógica dessa afirmação, mesmo do ponto de vista matemático”, esclarece, em declarações ao Observador, Germano de Sousa, responsável pelos laboratórios com o mesmo nome e que já soma mais de 45 anos de experiência na área das análises clínicas. Enquanto dirigente de uma entidade que atualmente faz “à volta de nove a dez mil testes todos os dias”, Germano de Sousa refere a importância de se perceber que mesmo que se fizessem 200 mil testes todos os dias, isso não significaria que existisse “correlação direta entre o número de testes realizados e o número de pessoas infetadas”. Assim é porque uma só pessoa pode fazer mais que um teste até ter um negativo ou positivo confirmado, por exemplo. Isto prova que, mesmo que se fizessem os tais 200 mil testes por dia durante três meses, isso não seria equivalente a duas vezes toda a população de Portugal, como é afirmado na publicação que circula nas redes sociais.

O pneumologista Filipe Froes também defende que “a realidade desmonta esse argumento”, porque “nós, neste momento, estamos a diagnosticar mais do que 10 mil casos diários e estamos a fazer pouco mais de 50 mil testes por dia”, daí não fazer sentido a lógica defendida no post em análise. O experiente médico vai mais longe ao dizer que “se fizéssemos os tais 200 mil testes por dia chegaríamos aos 20 mil, 30 mil casos positivos diários”,  porque há sempre uma margem de pessoas infetadas que, por algum motivo, não chegam a ser testadas. “Que garantia nos daria fazer 200 mil testes? Em princípio não perderíamos nenhum caso positivo, todas as pessoas que precisassem de fazer testes, faziam-nos, e não nos escapava nenhuma infeção”, remata.

Conclusão

A correlação que este post tenta fazer, de que para termos 10 mil positivos por dia teríamos de fazer 200 mil testes  diários e, se assim fosse, em três meses toda a população do país já tinha sido testada duas vezes,  não tem fundamento. Não há nenhum dado oficial que comprove este raciocínio e a ideia subentendida dessa publicação de que os números estão a ser empolados ou falsificados não tem, também, qualquer razão de ser. A contabilização diária de novos positivos é explicada de forma transparente e não depende apenas da responsabilidade do setor público, mas também do privado. E, no limite, os números apresentados diariamente podem até ser maiores do que aqueles que são conhecidos: um assintomático, por exemplo, pode ter o vírus e não o saber, nunca fazendo o teste que o comprovaria.

Assim, de acordo com o sistema de classificação do Observador, este conteúdo é:

ERRADO

No sistema de classificação do Facebook, este conteúdo é:

FALSO: as principais alegações do conteúdo são factualmente imprecisas. Geralmente, esta opção corresponde às classificações “falso” ou “maioritariamente falso” nos sites de verificadores de factos.

NOTA: este conteúdo foi selecionado pelo Observador no âmbito de uma parceria de fact checking com o Facebook

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