Circula nas redes sociais uma publicação que alega que o Papa Francisco defende o “satanismo” como um “caminho válido para Deus”.
“O Papa Francisco declarou que adorar Satanás é um caminho válido para ter um relacionamento com Deus”, lê-se na publicação.
“Segundo Francisco, ‘toda religião é um caminho para chegar a Deus’, incluindo o satanismo e o paganismo”, acrescenta o texto, que acusa o Papa de “rasgar a Bíblia” e de votar ao “abandono” a “mais básica e fundamental base” da fé cristã.
A publicação remete, depois, para um artigo publicado no site “Planeta Prisão”, uma página que se apresenta como “o maior acervo do mundo sobre pandemia, protocolos para vacinados, Nova Ordem Mundial, Grande Reset, Geopolítica e bastidores do mundo” — uma significativa lista de famosas teorias da conspiração.
De acordo com uma nota de rodapé nesse artigo, o texto é simplesmente a tradução para português de um artigo publicado no site “The People’s Voice”, uma conhecida página que se dedica à difusão de teorias da conspiração.
É uma das mais prolíficas páginas de notícias falsas do mundo, sendo um dos sites mais escrutinados pelos meios de comunicação social que se dedicam ao fact-checking. As publicações desta página já foram alvo de múltiplos fact-checks do Observador, mas continuam a circular amplamente nas redes sociais.
O título do texto atribui ao Papa Francisco a frase “o satanismo é um caminho válido para Deus”. Contudo, quando lemos o texto que se segue, não é possível encontrar essa frase, mas apenas a seguinte declaração: “Todas as religiões são um caminho para chegar a Deus.” A expressão “incluindo o satanismo e o paganismo” é acrescentada pelo autor do texto e não surge na declaração do Papa.
A publicação também remete para o contexto em que a declaração terá sido feita: um encontro inter-religioso de jovens em Singapura na sua recente viagem pelo sudeste asiático.
Através do site oficial do Vaticano é possível chegar aos registos desse encontro, que decorreu no dia 13 de setembro deste ano no Catholic Junior College de Singapura. O Vaticano guarda não só o vídeo do momento como a transcrição completa do que o Papa disse, em várias línguas.
Esta publicação assenta, essencialmente, no momento em que o Papa se refere à necessidade de evitar tensões e conflitos entre religiões. Aqui fica a transcrição das palavras do Papa:
Uma das coisas que mais me impressionou em vós, jovens aqui presentes, foi a capacidade para o diálogo inter-religioso. Trata-se de algo muito importante, porque se começardes a discutir: “A minha religião é mais importante do que a tua…”, “A minha é a verdadeira, a tua não é verdadeira…”. Para onde é que isso vos leva? Para onde? Alguém pode responder? [Responde um: “Destruição”]. É isso. Todas as religiões são um caminho para nos aproximarmos de Deus. E faço esta comparação: são como línguas diferentes, diversos idiomas, para chegarmos lá. Mas Deus é Deus para todos. E porque Deus é Deus para todos, todos nós somos filhos de Deus. “Mas o meu Deus é mais importante do que o vosso!” Será que isto é verdade? Só há um Deus, e nós, as nossas religiões são linguagens, caminhos para chegar a Deus. Uns sikh, outros muçulmanos, outros hindus, outros cristãos, são caminhos diferentes. Entendido? Porém, o diálogo inter-religioso entre os jovens requer coragem. E a juventude é a idade da coragem. Porém, tu podes usar essa coragem para fazer coisas que não te ajudarão ou, em vez disso, ser corajoso para seguir em frente e para o diálogo.
Como é possível verificar, em nenhum momento o Papa Francisco se refere ao “satanismo” ou ao “paganismo”. Pode verificar no registo em vídeo, a partir dos 42 minutos, a declaração completa do Papa.
Francisco falava num evento em Singapura, uma cidade-estado conhecida pela grande diversidade religiosa e apresentada como um exemplo de convivência entre diferentes religiões. Budistas, cristãos, muçulmanos, hindus, sikhs e taoístas compõem um tecido social diversificado que o Papa Francisco estava a apresentar como um exemplo para a comunidade internacional.
O Papa Francisco tem sido um conhecido partidário do diálogo ecuménico e inter-religioso, promovendo com frequência fóruns e iniciativas em comum com líderes de outras denominações cristãs e com responsáveis de diferentes confissões religiosas.
Contudo, de acordo com os registos públicos das intervenções do Papa Francisco, em nenhum desses momentos o líder da Igreja Católica se referiu ao “satanismo”, não o classificou como uma confissão religiosa, nunca o colocou em pé de igualdade com outras confissões religiosas nem nunca contradisse publicamente a doutrina da Igreja Católica sobre a idolatria.
Aliás, o próprio termo “satanismo” é bastante difuso — e não fica claro qual o conceito que esta publicação pretende ilustrar com o uso da palavra.
No contexto da doutrina católica, o “satanismo” é condenado como a idolatria direcionada aos demónios ou à figura de Satanás, apresentado nos textos bíblicos como o autor do mal, o adversário de Deus, a fonte do mal e da mentira. O Catecismo da Igreja Católica, aliás, condena a idolatria, dizendo que “não diz respeito apenas aos falsos cultos do paganismo”, mas consiste em “divinizar o que não é Deus”.
“Há idolatria desde o momento em que o homem honra e reverencia uma criatura em lugar de Deus, quer se trate de deuses ou de demónios (por exemplo, o satanismo), do poder, do prazer, da raça, dos antepassados, do Estado, do dinheiro, etc.”, diz o Catecismo.
Mas o conceito de “satanismo” também tem sido usado, nas últimas décadas, para definir crenças e ideologias de caráter ateísta ou cético. O exemplo mais célebre é o da “Church of Satan”, criada na década de 1960 por Anton LaVey, autor da famosa “Bíblia Satânica”.
Trata-se de uma organização ateia que não se dedica à adoração do Satanás bíblico, mas sim à “aceitação da verdadeira natureza humana”, que é a natureza de um “animal carnal, que vive num cosmos indiferente à nossa existência”. Satanás é considerado por esta organização como o símbolo da natureza humana, da rejeição dos “combates entre os nossos pensamentos e sentimentos”, da recusa de uma “alma prisioneira de um corpo”, do “orgulho, liberdade e individualismo”.
Estas características são, considera a Church of Satan, “frequentemente definidas como o mal por aqueles que veneram divindades externas, que sentem que há um combate entre as suas mentes e as suas emoções”.
Conclusão
Independentemente do conceito de “satanismo” a que a publicação se possa referir, é fácil perceber que o Papa Francisco não o inclui entre as diferentes religiões — que considera serem “um caminho para chegar a Deus”. Por um lado, o “satanismo” pode descrever uma idolatria do demónio, condenada explicitamente pela Igreja Católica por representar um afastamento de Deus; por outro lado, pode descrever convicções próximas do ateísmo e do ceticismo que, por maioria de razão, não são religiões. De modo ainda mais simples, basta olhar para a transcrição e para o registo em vídeo das palavras do Papa para concluir que, em nenhum momento, o líder da Igreja Católica disse que “o satanismo é um caminho válido para Deus”.
Assim, de acordo com o sistema de classificação do Observador, este conteúdo é:
ERRADO
No sistema de classificação do Facebook, este conteúdo é:
FALSO: As principais alegações do conteúdo são factualmente imprecisas. Geralmente, esta opção corresponde às classificações “falso” ou “maioritariamente falso” nos sites de verificadores de factos.
NOTA: este conteúdo foi selecionado pelo Observador no âmbito de uma parceria de fact checking com o Facebook.