Numa altura em que o sub-diretor da Direção-Geral da Saúde (DGS), Rui Portugal, sugeriu que se partilhassem compotas como presente simbólico este Natal, um conteúdo tornou-se quase tão viral como essas declarações: uma mensagem que afirma que uma compota de maçã testou positivo num teste PCR de deteção do novo coronavírus.

O vídeo do procedimento está a percorrer as redes sociais e a ser instrumentalizado para sugerir que estes testes de diagnóstico não são fiáveis. “Ou o Covid está em tudo ou tudo virou Covid”, atira um dos utilizadores que partilhou o conteúdo e que, em tom de ironia, termina a descrição do vídeo desejando “uma recuperação rápida” à compota utilizada na experiência.

A publicação em análise sugere que os testes de diagnóstico à Covid-19 não são fiáveis. Captura de ecrã.

Mas há várias afirmações falsas e descontextualizadas nesta publicação. Em primeiro lugar, o teste que surge nas imagens partilhadas na publicação não é um teste PCR, como é alegado na descrição do vídeo, mas sim um teste rápido de antigénio. Ambos foram projetados para detetar determinadas partes do vírus, mas o primeiro deteta porções do material genético do vírus, enquanto o segundo identifica proteínas que entram na arquitetura dele.

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A diferença entre os testes PCR e os testes de antigénio

Outra diferença fundamental é o modo como funcionam. Os testes RT-PCR foram concebidos para reconhecer genes únicos e exclusivos do SARS-CoV-2. Para isso, utilizam-se peças de material genético complementares às porções genéticas que se pretende encontrar — os primers.

Quando uma amostra chega a um laboratório, os investigadores extraem o ARN do vírus e submetem-no a uma transcrição reversa seguida de reação em cadeia da polimerase — uma técnica laboratorial que usa uma enzima, a transcriptase reversa, para transformar o ARN viral em ADN e copiá-lo muitas vezes.

Nesse procedimento, o ARN (a molécula que contém a informação genética do vírus) é colocado em contacto com uma mistura que contém a transcriptase reversa, os primers para partes específicas do material genético do SARS-CoV-2 e nucleótidos. Se essas partes específicas do material genético do vírus estiverem presentes, então, os primers ligam-se a eles. Se não estiver, o processo que vamos agora explicar não acontece e o teste é negativo.

Quando o primeiro primer se liga, a transcriptase reversa sintetiza uma cópia de cadeia única de ADN que preenche o resto do gene — o ADN complementar ou cDNA. Neste momento, a temperatura é elevada para 95ºC, o que desnatura as moléculas e remove a cadeia de ARN viral que serviu de molde a este processo.

Depois, a temperatura volta a baixar. É então que um novo primer se liga ao lado oposto do ADN complementar e uma segunda enzima, a Taq polimerase, sintetiza uma outra cadeia para produzir uma cópia de ADN da região específica da informação genética viral.

Esta nova molécula de ADN — que não é mais do que uma transformação do ARN viral — sofre então várias amplificações. As duas cadeias do ADN são separadas por um processo de desnaturação, os primers ligam-se às sequências específicas e a Taq polimerase volta a sintetizar novas cadeias para dar origem a mais moléculas de ADN.

O processo é repetido até que se obtenham milhares de milhões de cópias do ARN viral. Com esta quantidade de ARN viral disponível na amostra, é possível analisá-lo através de outras técnicas, como a sequenciação do próprio material genético. Se não houver nenhum vírus na amostra recolhida, este processo simplesmente não ocorre e o resultado é negativo.

Fact Check. Testes PCR não fazem distinção entre os vários coronavírus?

Os testes rápidos de antigénio funcionam de modo muito mais simples, por isso é que são mais baratos e podem revelar um resultado positivo ou negativo em poucos minutos. O dispositivo é composto por uma tira de papel que contém que contém anticorpos capazes de se unirem a proteínas específicas na proteína do novo coronavírus.  Se essas proteínas estiverem na amostra, duas faixas fluorescentes ou escuras surgem na área de leitura e o resultado é positivo, tal como acontece num teste de gravidez.

Mas enquanto os testes RT-PCR têm uma uma sensibilidade (proporção de pessoas infetadas que são corretamente identificadas como tal) de “aproximadamente 100%” e uma especificidade (proporção de pessoas que não estão infetadas corretamente identificadas como tal) de “até 100%”, tal como explicado pelo Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA) ao Observador neste artigo, os testes rápidos de deteção de antigénio têm maior probabilidade de fornecer falsos negativos porque podem ser muito menos sensíveis, entre 60% e 99%. É por isso que os testes PCR são considerados os mais fiáveis no mercado.

Podemos confiar nos números da DGS? Testes têm 98% de certeza — e os falsos positivos são muito raros

Ora, os testes RT-PCR exigem equipamento específico para processamento, material presente exclusivamente nos laboratórios, enquanto o teste rápido de antigénio pode ser efetuado em qualquer centro de saúde sem recurso a equipamento especial. O dispositivo que aparece no vídeo não é, portanto, um teste PCR mas sim um teste rápido de antigénio. Essa é a primeira afirmação falsa nesta publicação.

Teste pode ter sido destruído pela acidez da maçã

Mas não é a única. De acordo com Laura Brum, diretora médica do Synlab Portugal, os testes de diagnósticos são validados para amostras biológicas recolhidas na nasofaringe humana, não para outras substâncias como uma compota de maçã. Foi, aliás, um problema que também inviabilizou a experiência de um deputado austríaco, que testou uma amostra de Coca-Cola num teste rápido de antigénio.

Fact Check. Deputado fez um teste à Covid-19 com Coca-Cola e obteve resultado positivo?

O teste obteve resultado positivo, não porque tivessem sido detetadas proteínas do novo coronavírus no refrigerante testado, nem por incompetência do produto, mas sim porque a amostra depositada nele destruiu o material que o compõe e comprometeu os resultados. Aqui pode ter acontecido o mesmo, visto que a bula do produto também confirma que o teste examina “secreções nasofaríngea e/ou orofaríngea em seres humanos” e que “não se destina a ser utilizado para outros fluídos corporais e amostras”.

Kai Markus Xiong, porta-voz da MEDsan (a empresa produtora do teste que aparece nas imagens), também disse à Agence France-Presse que o manuseamento do produto pela pessoa que surge no vídeo pode não ter sido efetuado corretamente, existindo então uma possibilidade de contaminação da compota de maçã ou da zona do dispositivo onde se coloca a amostra.

Ao contrário do que tinha ocorrido com o teste à Coca-Cola (uma informação que também foi verificada pelo Observador aqui), o autor deste vídeo acrescenta uma solução tampão à compota — um químico que mantém o pH constante na amostra. No entanto, a solução tampão não foi produzida para neutralizar amostras tão ácidas como um produto feito à base de maçã, que tem um pH de 3 em 14 níveis.

Conclusão

Não é verdade que uma compota de maçã que aparentemente testou positivo à presença do SARS-CoV-2 prove que este tipo de produtos não são fiáveis. O surgimento das faixas que indicam um resultado positivo pode ter ocorrido por causa da destruição do teste quando exposto a uma amostra tão ácida como um alimento à base de maçã. Também é possível que este produto ou os materiais utilizados durante a testagem estivessem contaminados por má prática do protagonista do vídeo.

Também não é verdade que o teste que surge no vídeo seja um teste PCR, como afirmado na descrição da publicação. Esse tipo de testes de diagnóstico são de uma complexidade muito superior ao demonstrado nas imagens e exigem a utilização de processos e materiais de laboratório muito específicos. O vídeo mostra, isso sim, um teste rápido de antigénio, que é muito mais simples e barato, mas também mais propício a produzir falsos negativos.

Assim, de acordo com o sistema de classificação do Observador, este conteúdo é:

ERRADO

No sistema de classificação do Facebook este conteúdo é:

FALSO: as principais alegações do conteúdo são factualmente imprecisas. Geralmente, esta opção corresponde às classificações “falso” ou “maioritariamente falso” nos sites de verificadores de factos.

Nota 1: este conteúdo foi selecionado pelo Observador no âmbito de uma parceria de fact checking com o Facebook.

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